50º Aniversário da Conferência de Bandung
Por uma renovação da solidariedade dos povos do Sul
Entrevista de Samir Amin
[*]
,
conduzida por Rémy Herrera
[**]
Rémy Herrera: há 50 anos, em 1955, os principais Chefes de Estado
dos países de Ásia e de África que reconquistaram a sua
independência política, reuniram-se pela primeira vez, em Bandung.
Qual era o seu projecto comum?
Samir Amin:
A experiência dos novos poderes que eles representavam era ainda muito
recente, e a batalha para cumprir a tarefa histórica da
independência não terminara. A primeira guerra do Vietname
terminara há pouco, e já uma segunda se desenhava no horizonte; a
guerra da Coreia terminava num impasse; estávamos em plena guerra de
Argélia; a descolonização da África sub-sahariana
nem sequer se perspectivava; o drama palestiniano estava ainda na sua primeira
época. Os líderes asiáticos e africanos reunidos em
Bandung estavam longe de se identificar uns com os outros. As correntes
políticas e ideológicas que representavam, os diferentes
conceitos sobre o futuro da sociedade a construir ou a reconstruir e as suas
relações com o Ocidente, eram muitos temas da diferença.
No entanto, um projecto comum aproximava-os e dava sentido à sua
reunião. No seu programa mínimo comum constava o objectivo da
descolonização política da Ásia e de África.
Em absoluto, todos entendiam que a recuperação da
independência política era apenas um meio, sendo o fim a conquista
da libertação económica, social e cultural. Aqui, duas
posições dividiam os presentes em Bandung: havia uma
opinião maioritária dos que imaginavam o
"desenvolvimento" possível na
"interdependência" no seio da economia mundial, e outra, dos
líderes comunistas, que defendiam que sair do campo capitalista levaria
a reconstruir com a URSS, ou à sombra dela um campo
socialista mundial. Os líderes do Terceiro Mundo que não
perspectivavam "sair do sistema", ou "desligar-se",
não comungavam da mesma visão estratégica e táctica
do "desenvolvimento". Mas, em estádios diferentes, acreditavam
que a construção de uma economia e de uma sociedade desenvolvida
e independente assente numa interdependência global
implicava algum risco de "conflito" com o Ocidente dominante. A ala
radical entendia dever pôr termo ao controle da economia nacional pelo
capital dos monopólios estrangeiros. Para mais, ciosos de preservar a
independência reconquistada, recusavam entrar no jogo militar
planetário e de servir de base ao cerco dos países socialistas
que o hegemonismo dos EUA tentava impor. No entanto, pensavam também que
recusar a integração no campo militar atlântico não
implicava a necessidade de se colocar sob a protecção do
adversário deste, a URSS. Daí o "neutralismo", o
"não-alinhamento", nome do grupo de países e da
organização que iria sair do espírito de Bandung.
R H: Como evoluiu esse "não-alinhamento" ao longo do tempo.
S A:
De cimeira em cimeira, ao longo das décadas de 1960 e 1970, o
"não-alinhamento" entretanto institucionalizado como
"Movimento dos Não-Alinhados", reunindo a quase totalidade dos
países asiáticos e africanos, iria deslizar progressivamente de
posições de uma frente de solidariedade política centrada
no apoio às lutas de libertação e na recusa dos pactos
militares, às de um "sindicato de revindicações
económicas em relação ao Norte". Os
"não-alinhados" deveriam neste quadro aliar-se aos
países da América latina que à
excepção de Cuba nunca tinha encarado a ideia de se opor
à hegemonia dos Estados Unidos. O grupo dos 77 (o conjunto do Terceiro
Mundo) traduzia essa larga e nova aliança do Sul. A batalha por uma
"Nova Ordem económica mundial", iniciada em 1975, depois da
guerra de Outubro de 1973 e da revisão dos preços e
petróleo, coroa esta evolução, anunciando o seu fim.
R H: Qual foi a reacção das forças dominantes do
capitalismo mundial?
S A:
Nem no plano político, nem no da batalha económica, o Ocidente
iria aceitar de bom grado o espírito de Bandung e o
não-alinhamento. O verdadeiro ódio que as potências
ocidentais reservaram aos dirigentes radicais do Terceiro Mundo dos anos 1960
(Nasser, Sukarno, Nkrumah, Mobido Keita), todos depostos na mesma época,
nos anos de 1965 a 1968, período no qual se situa a agressão
israelense de Junho de 1967 contra o Egipto, a Síria e a Jordânia,
demonstra que a visão política do não-alinhamento
não era aceite pelas potências da aliança atlântica.
É, portanto, um campo não alinhado politicamente enfraquecido que
iria enfrentar a crise económica global a partir de 1970-1971. Neste
contexto, o conflito entre as forças dominantes do capitalismo mundial e
as que animaram o projecto de "desenvolvimento" de Bandung foi mais
ou menos radical conforme a política seguida visava suplantar o
capitalismo ou apoiá-lo. A ala radical do movimento defendia a primeira
tese, e por isso, entrava em conflito com os interesses imediatos do
capitalismo dominante, nomeadamente pelas nacionalizações e a
exclusão da propriedade estrangeira. A ala moderada, pelo
contrário, aceitava conciliar os interesses em conflito, oferecendo
maiores possibilidades de conciliação. No plano internacional,
esta distinção abraçava facilmente os termos do conflito
Este-Oeste, entre o sovietismo e o capitalismo ocidental.
R.H.: Como define a "ideologia do desenvolvimento" saída de
Bandung?
S.A.:
O que hoje se pode chamar de "ideologia do desenvolvimento"
entretanto entrada numa crise que lhe poderá ser fatal conheceu a
sua "grande época" precisamente entre 1955 e 1975. A economia
política, se bem que frequentemente implícita e pouco clara, pode
ser definida pelos elementos seguintes: 1) a vontade de desenvolver as
forças produtivas, de diversificar a produção,
nomeadamente industrializando; 2) a vontade de assegurar ao Estado nacional a
direcção e controle do processo. 3) a certeza que os modelos
"técnicos" constituem dados "neutros" que só
se podem reproduzir dominando-os. 4) a certeza que o processo não
implica, à partida, a iniciativa popular, mas apenas o apoio popular
às acções do estado; 5) a certeza que o processo
não é fundamentalmente contraditório com a
participação nas mudanças no seio do sistema capitalista
mundial, mesmo se provoca conflitos momentâneos com ele. As
circunstâncias da expansão capitalista dos anos 1955-1970
facilitaram, até certo ponto, o sucesso deste projecto.
R.H.: Que balanço se pode fazer desta ideologia do desenvolvimento?
S.A.:
Ao fim das quatro décadas de desenvolvimento pós-guerra, o
balanço dos resultados é de tal forma contrastante, que se
é tentado a renunciar à expressão comum de Terceiro Mundo
para designar o conjunto de países que foram objecto das
políticas de desenvolvimento destas décadas. Hoje, com alguma
razão, opõe-se um Terceiro Mundo recém industrializado,
parcialmente competitivo os países ditos emergentes ao
Quarto Mundo marginalizado os países
"excluídos". O objectivo das políticas de
desenvolvimento aplicadas na Ásia, África e América latina
foram rigorosamente idênticas no essencial, apesar das diferenças
de discurso ideológico que as acompanharam. Trata-se, em todo o lado,
dum projecto nacionalista que tinha por objectivo acelerar a
modernização e o enriquecimento da sociedade pela
industrialização. Entendemos sem dificuldade este denominador
comum se nos lembrarmos simplesmente que em 1945, praticamente todos os
países da Ásia à excepção do
Japão da África incluindo a África do Sul
se bem que com algumas particularidades da América Latina
estavam ainda desprovidos de qualquer indústria digna desse nome
excepto da extracção mineira aqui ou ali francamente
rurais pela composição da sua população, dirigidos
por regimes arcaicos as oligarquias latifundiárias da
América, as monarquias sob o protectorado do Oriente islâmico, a
China, etc. ou coloniais a África, a Índia, o
Sudeste Asiático. Para além da sua grande diversidade, todos os
movimentos de libertação nacional tinham os mesmos objectivos: a
independência política, a modernização do Estado, a
industrialização da economia.
R.H.: Mas terão estes países tentado realmente este tipo de
estratégia de desenvolvimento?
S.A.:
Não seria correcto dizer que não tentaram todos, desde que
estivessem em condições de o fazer. De facto, as variantes foram
tão numerosas quanto os países e parece legítimo, por
isso, tentar classificá-los em modelos que os agrupam. Mas corremos o
risco então de ser vítima de critérios escolhidos em
função, se não necessariamente de preferências
ideológicas, pelo menos da ideia que temos, ou melhor que
tínhamos na época, do desenrolar das experiências em
questão, das possibilidades e dos constrangimentos externos e internos.
Pelo contrário, acentuando o denominador comum que os une, recomendo
algum distanciamento relativamente a essas classificações e a
olhar a história a partir de hoje, portanto, a dar uma nova leitura do
que ela foi à luz do que ela conduziu.
R.H.: A industrialização era o objectivo prioritário
destas políticas de desenvolvimento?
S.A.:
Industrializar implicava, antes do mais, construir um mercado interno e
protegê-lo dos danos da concorrência, que impediria a sua
formação. As fórmulas podiam variar, consoante as
circunstancias
a dimensão do mercado interno, os recursos disponíveis
ou mesmo, segundo as teses mais ou menos teóricas, ou
ideológicas, dando prioridade à produção
rápida de industrias ligeiras de consumo, ou à
produção de bens que permitiriam, mais tarde, acelerar a
primeira, como propunha a tese das "indústrias
industrializantes" que racionalizava as teses soviéticas. O
objectivo final era idêntico. A tecnologia necessária à
industrialização só poderia ser importada, mas para o
fazer não era necessário aceitar a apropriação pelo
capital estrangeiro das instalações a construir. Isso dependeria
da capacidade de negociação. O capital financeiro deveria,
portanto, ser conseguido por convite a investir no país, ou por
empréstimo. Aqui também, a fórmula propriedade estrangeira
privada financiamento público assegurado graças à
poupança nacional, à ajuda externa em bem ou créditos
podia ser ajustada à previsão dos meios e dos custos. As
necessidades de importações que estes planos de
aceleração do crescimento pela industrialização
fatalmente implicavam só podiam ser cobertos, numa primeira fase, pelas
exportações tradicionalmente conhecidas, quer se trate de
produtos agrícolas ou mineiros. Era possível. Numa fase de
crescimento geral, como o era o pós-guerra, a procura de quase todos os
produtos possíveis, estava em crescimento contínuo, quer se
tratasse de energia, de matérias-primas minerais ou de produtos
agrícolas específicos. Os termos de troca variavam, mas
não anulavam sistematicamente, pela sua deterioração, os
efeitos do crescimento dos volumes exportados. A modernização, se
bem que assente na industrialização, não se reduzia a ela.
A urbanização, a criação de infra-estruturas, de
transportes e de comunicações, a educação e os
serviços sociais tinham como objectivo, em parte, servir a
industrialização em meios e em mão-de-obra
convenientemente qualificada. Mas estes objectivos eram também
perseguidos pelos seus próprios fins, para construir um Estado nacional
e modernizar os comportamentos, como se pode ler no discurso do nacionalismo,
trans-étnico por natureza à época.
R.H.: A intervenção do Estado era, portanto, considerada
absolutamente decisiva para o desenvolvimento?
S.A.:
Claro. Na altura, a diferença que hoje tanto se faz, entre a
"intervenção do Estado" sempre negativa, porque
na essência conflitua com o que se pretende ser a espontaneidade do
mercado e o "interesse privado" associado às
tendências espontâneas do mercado não existia. Esta
diferença nem era notada. Pelo contrário, o bom senso partilhado
por todos os poderes existentes, via na intervenção do Estado um
elemento essencial da construção do mercado e da
modernização. A esquerda radical, de aspiração
socialista na sua própria leitura ideológica, associava a
expansão da estatização à expulsão gradual
da propriedade privada. Mas a direita nacionalista, que não defendia
este objectivo, não era menos intervencionista e estatizadora: a
construção de interesses privados que propunha exigia, em sua
opinião, justamente uma vigorosa intervenção estatal. Os
lugares comuns que hoje alimentam os discursos dominantes, não teriam,
à época, qualquer eco.
R.H.: O desenvolvimento era portanto entendido por oposição ao
capitalismo?
S.A.:
Há hoje uma grande tentação de ler esta história
como a de uma etapa da expansão do capitalismo mundial, que teria
cumprido, melhor ou pior, algumas funções agregadas à
acumulação primitiva nacional, criando simultaneamente as
condições para a etapa seguinte, em que se entraria agora, etapa
esta marcada pela abertura ao mercado mundial e à competitividade no
terreno. Não proporia que se cedesse a esta tentação. As
forças dominantes no capitalismo mundial não criaram
"espontaneamente" o modelo, ou os modelos, do
"desenvolvimento". Este "desenvolvimento" foi-lhes imposto.
Foi produto do movimento de libertação nacional do Terceiro Mundo
da época. A leitura que proponho acentua portanto, as
contradições entre as tendências espontâneas e
imediatas do sistema capitalista que se guiam pelo único cálculo
financeiro a curto prazo que caracteriza este modo de gestão social, e
as perspectivas de longo prazo que animam as forças políticas
emergentes em conflito com as primeiras. Na verdade, este conflito nem sempre
é radical; o capitalismo a ele se adapta, não está na
origem do movimento.
R.H.: Que papel desempenharam as burguesias nacionais nesses movimentos da
libertação nacional? Terão sido esses movimentos
inspirados por burguesias?
S.A.:
Não. Todos os movimentos de libertação nacional
partilharam esta visão modernista, ao mesmo tempo capitalista e
burguesa. Isto não implica, de maneira nenhuma, que tenham sido
inspirados, e muito menos dirigidos, por uma burguesia, no verdadeiro sentido
do termo. Esta não existia, ou, mal existia, à data das
independências, e mesmo 30 anos mais tarde, apenas existe num estado
embrionário, na melhor das hipóteses. Mas a ideologia da
modernização, pelo contrário, estava bem presente e
constituía uma força dominante, dando um sentido à revolta
dos povos contra a colonização. Esta ideologia continha um
projecto, que eu qualificaria com o nome curioso, à primeira
vista de "capitalismo sem capitalistas".
"Capitalismo" pela concepção que tinha sobre a
modernização, chamada a reproduzir as relações de
produção e as relações sociais essenciais e
próprias do capitalismo: a relação salarial, a
gestão da empresa, a urbanização, a educação
hierarquizada, o conceito de cidadania nacional
Sem dúvida outros
valores, característicos do capitalismo evoluído, como o da
democracia política, eram cruelmente deficitários, o que era
justificado pelas exigências do desenvolvimento inicial exigível.
Todos os países da região, radicais e moderados, optavam pela
mesma forma de partido único, de farsa eleitoral, do líder
fundador da Pátria, etc. "Sem capitalistas" na medida em que,
na falta de uma burguesia empreendedora, o Estado e os seus tecnocratas
era chamado a substitui-la, mas também, por vezes, na medida em
que a emergência da burguesia era levemente suspeita, considerando a
primazia que esta dava aos seus interesses imediatos, em detrimento daqueles
que levavam mais tempo a construir. A suspeição tornava-se, para
a ala radical do movimento de libertação nacional,
sinónimo de exclusão. Esta ala radical concebia portanto,
naturalmente, o seu projecto como o da "construção do
socialismo". Tendo considerado o objectivo de apanhar o mundo ocidental
desenvolvido como o essencial das suas preocupações, este
projecto conseguiu, por uma dinâmica própria, construir um
"capitalismo sem capitalistas".
R.H: Quais eram as grandes tendências no seio dos movimentos de
libertação nacional?
S.A.:
Os movimentos de libertação nacional dividiam-se entre
tendências de radicalização, dita "socialista", e
tendências de moderação. A oposição assentava
num conjunto complexo de causas, tendo por um lado as classes sociais nas quais
o movimento se apoiava camponeses, habitantes dos meios urbanos, classes
médias, classes favorecidas
, e por outro as
tradições da sua formação política e
organizacional partidos comunistas, sindicatos, Igrejas
R.H.: Se nos detivermos no critério do movimento de
libertação nacional, isto é, na
"construção nacional" quais foram os resultados?
S.A.:
Os resultados continuam discutíveis, no seu conjunto. A razão
é que, enquanto o desenvolvimento do capitalismo, em tempos
anteriores, sustentava a integração nacional, a
mundialização operando na periferia do sistema, pelo
contrário, desintegra as sociedades. Ora, a ideologia do movimento
nacional ignorava esta contradição, permanecendo confinada ao
conceito burguês de "recuperação de um atraso
histórico", e concebendo este atraso pela
participação na divisão internacional do trabalho, e
não na sua negação pela desconexão. Sem
dúvida, conforme as características específicas das
sociedades pré-coloniais, pré-capitalistas, este efeito de
desintegração foi mais ou menos dramático. Em
África, onde o corte colonial artificial não respeitou a
história anterior dos seus povos, a desintegração
produzida pela periferização capitalista permitiu à
"etnia" sobreviver, mau grado os esforços da classe dirigente
saída da libertação nacional, para ultrapassar as suas
manifestações. Quando sobreveio a crise, aniquilando brutalmente
o crescimento das mais valias que tinham permitido o financiamento de politicas
trans-étnicas do Estado novo, a classe dirigente estalou ela
própria em divisões e, tendo perdido toda a legitimidade assente
nas realizações do "desenvolvimento", tenta criar novas
bases, muitas vezes associadas a um discurso etnicista.
R.H.: E se nos detivermos no(ou nos) critério(s) do
"socialismo", que balanço se pode fazer?
S.A.:
Se nos detivermos nos critérios do "socialismo", os
resultados são bem contrastantes. Claro que é necessário
considerar o "socialismo" como o entendia a ideologia populista
radical. Tratava-se de uma visão progressista, colocando a tónica
numa grande mobilização popular, na redução das
desigualdades de rendimentos, uma espécie de pleno emprego em zona
urbana, uma espécie de "
Welfare State
versão pobre". Deste ponto de vista, as realizações
de um país como a Tanzânia, por exemplo, dão um contraste
surpreendente com as do Zaire, da Costa do Marfim ou do Quénia, onde as
desigualdades mais extremas persistem continuamente há 40 anos, tanto
nos momentos de crescimento económico forte, como nos de
estagnação que se seguiram.
R.H.: E como vê a capacidade de ser competitivo nos mercados mundiais,
segundo o critério da lógica de expansão capitalista?
S.A.:
Deste ponto de vista os resultados revelam um contraste extremo e opõem
brutalmente o grupo dos principais países da Ásia e da
América latina, que se tornaram competitivos exportadores industriais,
ao conjunto dos países africanos, que ficaram acantonados na
exportação de produtos primários. Os primeiros constituem
o novo Terceiro Mundo a periferia de amanhã, na minha
análise ; os segundos, muitas vezes qualificados de "Quarto
Mundo" que se diz chamado à marginalização na
nova etapa da mundialização capitalista. O leque de progressos
conseguidos no quadro dos nacionalismos populistas de Bandung e do seu
equivalente da América latina é descartado em absoluto. É
impossível compreender este facto maior sem levar em
consideração, país a país como o conjunto dos
factores internos e externos operaram concretamente, seja para acelerar as
realizações, seja para as travar.
R.H.: Pode dizer-se que continua sempre a existir uma solidariedade dos povos
do sul?
S.A.:
Neste momento, a solidariedade dos países do Sul, que se afirmara
fortemente de Bandung (1955) a Cancun (1981), tanto no plano político
com o não-alinhamento como no plano económico
pelas posições comuns adoptadas pelos 77 nas instancias da
ONU, nomeadamente a CNUCED , parece já não existir. A
integração dos países do Sul, levada a cabo pelas
três instituições internacionais disso incumbidas, a OMC, o
Banco Mundial e o FMI, é sem dúvida, em grande parte,
responsável pelo enfraquecimento dos 77, da Trilateral que
já não existe e do Movimento dos Não-Alinhados, que
dão, no entanto, sinais de um possível ressurgimento. O aumento
das desigualdades de desenvolvimento no seio do Grupo dos 77, com, num
pólo, a emergência de países em séria via de
industrialização, tendo optado por operar no mercado mundial em
concorrência com os países da tríade EUA, Europa e
Japão e os do Sul que se situam no mesmo grupo, e noutro
pólo, os deslizes que atingem os países do denominado Quarto
Mundo, está também na origem deste evolução.
R.H.: Os países do Sul não teriam, então, os mesmos
interesses a defender colectivamente?
S.A.:
É verdade, para quem só tenha uma visão a curto prazo, e
olhe aos benefícios imediatos que uns ou outros possam obter ou
pensem poder obter da mundialização liberal. Não
é verdade a longo prazo, o capitalismo que realmente existe não
tem muito para oferecer, nem às classes populares do Sul, nem mesmo
às nações a quem não permite a "retoma",
isto é, a sua afirmação como parceiros iguais, em
posição análoga ás do centro a tríade
no posicionamento do sistema mundial. Mas é, mais uma vez, por via da
política que se desenha a tomada de consciência da exigência
de uma solidariedade dos países do Sul. A arrogância dos Estados
Unidos e a construção do seu projecto de "controlo militar
do planeta" com a contínua criação de guerras
planificadas e decididas unilateralmente por Washington, estão na origem
de uma forte tomada de posição da recente cimeira dos
Não-Alinhados em Kuala Lumpur, em Fevereiro de 2003.
R.H.: Esta cimeira de Kuala Lumpur foi uma surpresa para muitos, mas
poderá ser vista como um verdadeiro ressurgimento de uma frente do Sul?
S.A.:
Esta cimeira pode ter surpreendido algumas chancelarias adormecidas, que se
tinham convencido que, na nova mundialização liberal, o Sul
já não contava. Os países do Sul, sujeitos aos
devastadores planos de reajustes estruturais, sufocados pelo serviço da
dívida, governados por burguesias consumistas, pareciam não estar
em condições de pôr em causa a ordem capitalista
internacional, como tinham tentado entre 1955 e 1981. Surpresa geral: os
Não-Alinhados condenam a estratégia imperialista de Washington, o
seu objectivo desmesurado e criminoso de controlo militar do planeta, a sua
expansão pelo fomento de guerras "made in USA". Os
países do Sul tomam por sua vez consciência que a gestão
mundializada neoliberal não tem nada para lhes oferecer e que, por esta
razão, é levada a recorrer à violência militar para
se impor, fazendo assim o jogo dos Estados-Unidos. O movimento torna-se, como o
tínhamos sugerido, o do não-alinhamento com a
mundialização liberal e o hegemonismo dos Estados-Unidos. A queda
do "socialismo" soviético, a evolução que a
China levou a cabo, o desvio dos regimes populistas do Terceiro Mundo, tinham
criado a ideia errada segundo a qual não haveria
"alternativa"; inserir-se no quadro das exigências do
neoliberalismo mundializado, entrar no jogo e tentar, se possível,
tirar partido seria a única alternativa. A experiência havia de
desmentir em poucos anos as esperanças ingénuas assentes nesta
lógica que julgavam realista.
R.H.: Quais seriam as linhas orientadoras de uma grande aliança na base
da qual pudesse ser reconstruída a solidariedade dos povos e dos Estados
do Sul?
S.A.:
A partir das posições tomadas por alguns Estados do Sul e das
ideias que se desenvolveram, podem ler-se as linhas orientadoras da
renovação possível de uma "frente do Sul". Estas
posições dizem respeito tanto à orientação
política como à gestão económica da
mundialização. No plano político, passa pela
condenação do recente princípio da política dos
Estados Unidos "a guerra preventiva" e pela
exigência da retirada de todas as bases militares estrangeiras na
Ásia, em África e na América Latina. A escolha de
Washington para a zona de intervenções militares interrompidas
desde de 1990 recai sobre o Médio Oriente árabe Iraque e
Palestina (para esta através do apoio incondicional de Israel) os
Balcãs Jugoslávia, Hungria, Roménia e
Bulgária , a Ásia Central e o Cáucaso
Afeganistão, Ásia Central e Cáucaso ex-soviéticos.
Os objectivos seguidos por Washington são de vária ordem: 1)
controlar as regiões petrolíferas mais importantes do planeta e,
ao mesmo tempo, exercer pressão no sentido de submeter a Europa e o
Japão ao estatuto de aliados subalternizados; 2) estabelecer bases
militares americanas permanentes no coração do Velho Mundo
a Ásia Central, a igual distância de Paris, Joanesburgo, Moscovo,
Pequim e Singapura e, assim, a preparação de novas
"guerras preventivas", visando em primeiro lugar os grandes
países susceptíveis de se impor como aliados com os quais
"é preciso negociar": a China em primeiro lugar, mas
também a Rússia e a Índia. A realização
deste objectivo implica a instalação, nos países da
região envolvida, de regimes
fantoches
impostos pelo exército americano. De Pequim a Nova Deli e Moscovo,
percebe-se cada vez mais que as guerras "made in USA" constituem em
definitivo uma ameaça dirigida contra a China, a Rússia e a
Índia mais do que contra as suas vítimas imediatas, como o Iraque.
R.H.: Voltar à posição que foi a de Bandung
não às bases militares americanas na Ásia e em
África está na ordem do dia?
S.A.:
Sem dúvida. Mesmo se, nas circunstâncias actuais, os
Não-Alinhados aceitaram o silêncio sobre a questão dos
protectorados americanos no Golfo. Os Não-Alinhados tomaram, neste caso,
posições próximas das que a França e a Alemanha
defenderam no Conselho de Segurança, contribuindo assim para acentuar o
isolamento diplomático e moral do agressor. Por sua vez, a cimeira
franco-africana cimentou a aliança possível que se desenha entre
a Europa e o Sul. Porque esta cimeira, com a presença dos Estados
anglófonos do continente, não era a da
"Françáfrica".
R.H.: Quais seriam as linhas orientadoras de uma alternativa no plano
económico?
S.A.:
No domínio da gestão económica do sistema indiano,
vislumbram-se igualmente as linhas orientadoras de uma alternativa que o Sul
poderia defender colectivamente, porque os interesses de todos os países
que o constituem são nisso convergentes. A ideia que as
transferências internacionais de capitais devem ser controladas
está de volta. De facto, a abertura de contas de capitais, imposta pelo
FMI como um novo dogma do "liberalismo", tem um só objectivo:
facilitar a transferência maciça de capitais para os Estados
Unidos para cobrir o crescente défice americano resultante das
deficiências da economia dos Estados Unidos e da expansão da sua
estratégia de controlo militar do planeta. Não há qualquer
interesse para os países do Sul em facilitar a hemorragia de capitais, e
eventuais devastações provocadas por raids especulativos. Logo, a
submissão às incertezas do "câmbio
flexível", que surge na dedução lógica das
exigências da abertura de contas de capitais, devem ser questionadas. Em
seu lugar, a instituição de sistemas de organização
regionais assegurando uma estabilidade relativa dos câmbios, merecia ser
objecto de pesquisa e debate sistemáticos no seio dos
Não-Alinhados e dos 77. Aliás, na crise financeira
asiática de 1997, a Malásia tomou a iniciativa de restabelecer o
controlo cambial, e ganhou a batalha. O próprio FMI foi obrigado a
reconhecê-lo.
R.H.: Também a ideia de regulação do investimento
estrangeiro está de volta?
S.A.:
Não há dúvida que os países do Terceiro Mundo
não encaram, como foi o caso no passado de alguns, fechar a porta a todo
o investimento estrangeiro. Pelo contrário, os investimentos directos
são desejados. Mas a forma como se processa é de novo objecto de
reflexões críticas, às quais certos meios governamentais
do Terceiro Mundo não são insensíveis. Em estreita
relação com esta regulação, a
concepção dos direitos de propriedade intelectual e industrial
que a OMC pretende impor está a ser contestada. Compreende-se que esta
concepção, longe de favorecer uma concorrência
"transparente" em mercados abertos, visava pelo contrário
reforçar os monopólios das transnacionais.
R.H.: Em que situação está a agricultura, tão
importante para os países do Sul?
S.A.:
Neste ponto, muitos de entre os países do Sul, percebem de novo que
não podem excluir uma política nacional de desenvolvimento
agrícola, que tenha em conta quer a necessidade de proteger a
agricultura das consequências devastadoras da sua
desintegração acelerada pelo efeito da "nova
concorrência" que a OMC quer promover neste domínio, quer a
preservação da segurança alimentar nacional. Com efeito, a
abertura dos mercados de produtos agrícolas, que permite aos Estados
Unidos, à Europa e a alguns poucos países do Sul os do
cone Sul da América exportar os seus excedentes para o Terceiro
Mundo, ameaça os objectivos de segurança alimentar nacional, sem
contrapartidas para as produções agrícolas do Terceiro
Mundo que se deparam com dificuldades intransponíveis para penetrar nos
mercados do Norte. Ora, esta estratégia liberal, que desintegra a
agricultura e acentua a migração dos campos para bairros de lata
urbanos, provoca o ressurgimento de lutas camponesas no Sul que preocupam o
poder. A questão agrícola é muitas vezes discutida, em
particular no seio da OMC, na perspectiva exclusiva dos subsídios
atribuídos pela Europa e Estados Unidos, não só à
produção mas também à exportação de
produtos agrícolas. Esta fixação na questão
exclusiva do comércio mundial de produtos agrícolas afasta de uma
vez as preocupações maiores que acabo de invocar. Aliás,
ela conduz a curiosas ambiguidades, uma vez que leva os países do Sul a
defender posições ainda mais liberais que as adoptadas pelos
governos do Norte, aplaudidas pelo Banco Mundial mas desde quando o
Banco Mundial defendeu os interesse do Sul contra o Norte? Nada impede a
supressão dos subsídios atribuídos pelo governo aos
agricultores porque não? Se defendemos o princípio de
redistribuição do rendimento em nossa casa, os países do
Norte também têm esse direito! a subsídios
destinados a sustentar o dumping das exportações agrícolas
do Norte.
R. H.: Outro domínio fundamental, a dívida. Não
será a dívida economicamente insuportável?
S.A.:
A dívida já não é só ressentida como
economicamente insustentável. A sua legitimidade começa a ser
posta em causa. Vislumbra-se uma reivindicação que tem por
objectivo o repúdio unilateral das dívidas odiosas e
ilegítimas, tal como encetar um direito internacional da dívida
digno desse nome que ainda hoje não existe. Com efeito,
uma auditoria generalizada das dívidas permitiria estabelecer uma
percentagem significativa de dívidas ilegítimas, odiosas e mesmo,
por vezes, infames. Ora, só os juros a pagar atingiriam um volume tal
que a exigência do seu reembolso juridicamente assente
seria suficiente para anular a dívida em curso e faria aparecer toda
esta operação como uma forma verdadeiramente primitiva de
pilhagem. Para atingir esse objectivo, a ideia de que a dívida externa
deveria ser regulada por uma legislação normal e civilizada, tal
como a dívida interna, deve ser objecto de uma campanha que se inscreva
no sentido da progressão do direito internacional e do reforço da
sua legitimidade. Como se sabe, é precisamente porque o direito é
omisso neste domínio que a questão só está
resolvida por relações de força selvagens. Esta
relação de força permite, então, fazer passar por
legítimas as dívidas internacionais que, se fossem internas
pertencendo o credor e o devedor à mesma nação,
dependem da sua justiça levaria devedor e credor à barra
dos tribunais por "associação de malfeitores".
R. H.: Tendo em conta as novas perspectivas internacionais que acabam de ser
analisadas, um novo Bandung é hoje possível?
S.A.:
O sistema mundial de hoje é demasiado diferente nas suas estruturas
fundamentais do do pós-guerra para que um "remake" de Bandung
possa ser encarado. Os Não-Alinhados situavam-se num mundo militarmente
bipolar, impedindo por isso a intervenção brutal dos
países imperialistas nos seus negócios. Por outro lado, esta
bipolaridade consolidava os parceiros dos centros capitalistas Estados
Unidos, Europa Ocidental e Japão num campo unificado. O conflito
político e económico para a libertação e o
desenvolvimento opunha portanto a Ásia e a África a um campo
imperialista unificado. Os conceitos de "desenvolvimento
auto-suficiente" e de "desconexão" e as
estratégias que inspiravam, respondiam a este desafio nestas
condições. O mundo de hoje é militarmente unipolar.
Simultaneamente, fracturas parecem desenhar-se entre os Estados Unidos e alguns
países europeus no que diz respeito à gestão
política de um sistema mundializado, baseado no seu conjunto nos
princípios do liberalismo, pelo menos em princípio. A
questão seria de saber se essas fracturas são apenas conjunturais
e de alcance limitado, ou se anunciam mudanças duradouras. As
hipóteses sobre as quais são baseadas as propostas de
estratégia situadas neste espírito devem ser explicitadas, de
forma a facilitar a discussão da sua eventual validade.
R. H.: Defende que o imperialismo se tornou um imperialismo colectivo, o da
tríade?
S.A.:
Sim. Ao longo das fases anteriores da expansão da
mundialização capitalista, os centros de decisões
conjugavam-se sempre no plural. Estes mantinham entre si relações
de concorrência de permanente violência, ao ponto do conflito dos
imperialismos ocuparem um lugar de destaque na cena da história. O
regresso ao liberalismo mundializado, a partir de 1980, obriga a repensar a
questão da estrutura do centro contemporâneo do sistema. Porque,
no plano da gestão da mundialização económica
liberal, os Estados da tríade central constituem um bloco aparentemente
sólido. A questão incontornável à qual é
preciso responder é, portanto, a de saber se as evoluções
em causa traduzem uma mudança qualitativa duradoura tendo-se
tornado o centro de decisões definitivamente "colectivo"
ou se são apenas conjunturais. Poderíamos atribuir esta
evolução às transformações das
condições de concorrência. Há algumas décadas
atrás, as grandes firmas iniciavam a batalha concorrencial,
essencialmente, nos mercados nacionais, seja no dos Estados Unidos o
maior mercado nacional do mundo seja no dos Estados europeus, apesar da
sua modesta dimensão, o que os prejudicava em relação aos
Estados Unidos. Os vencedores desses "desafios" nacionais podiam
colocar-se numa boa posição no mercado mundial. Hoje em dia, a
dimensão do mercado necessária para levar a melhor, logo na
primeira série de desafios, aproxima-se dos 500 a 600 milhões de
consumidores potenciais. A batalha deve, desde logo, dar-se no mercado mundial
e ser ganha neste mesmo terreno. E são os que levam a melhor neste
mercado que se impõem, mais a mais nos seus terrenos nacionais
respectivos. A mundialização aprofundada torna-se o primeiro
cenário da actividade das grandes firmas. Ou seja, no casamento
nacional/mundial, os termos da causalidade invertem-se: outrora, o poderio
nacional ditava a presença no mundo; hoje em dia é o inverso. Por
isso, as firmas transnacionais, qualquer que seja a sua nacionalidade,
têm interesses comuns na gestão do mercado mundial. Esses
interesses sobrepõem-se aos conflitos permanentes e mercantis, que
definem todas as formas de concorrência próprias do capitalismo,
quaisquer que sejam.
R. H.: Neste sistema de imperialismo colectivo, os Estados Unidos tiram
vantagens económicas decisivas?
S.A.:
Não. A opinião corrente é que o poderio militar dos
Estados Unidos representa apenas a ponta do iceberg, prolongando a
superioridade deste país em todos os domínios, nomeadamente
económicos, até políticos e culturais. A submissão
ao hegemonismo ao qual pretende seria então incontornável. Na
verdade, o sistema produtivo dos Estados Unidos está longe de ser
"o mais eficiente do mundo". Pelo contrário, quase nenhum dos
seus segmentos teria a certeza de ganhar aos seus concorrentes num mercado
verdadeiramente aberto, como o pensam os economistas liberais. Exemplo disso
é o défice comercial dos Estados Unidos, que se agrava de ano
para ano, que passou de 100 mil milhões de dólares em 1989 a 450
mil milhões de dólares em 2000. Em contrapartida, este
défice
diz respeito a praticamente todos os segmentos do sistema produtivo. Até
o excedente de que beneficiavam os Estados Unidos no domínio dos bens de
alta tecnologia, que eram de 35 mil milhões de dólares em 1990,
deu lugar a um défice. A concorrência entre Ariane e os
foguetões da Nasa, ou entre a Airbus e a Boeing, testemunha a
vulnerabilidade da vantagem dos Estados Unidos. Face à Europa e ao
Japão, nos produtos de alta tecnologia, face à China, à
Coreia e aos outros países industrializados da Ásia e
América latina, nos produtos manufacturados banais, face à Europa
e ao cone Sul da América latina na agricultura, os Estados Unidos
provavelmente não levariam a melhor sem recorrer a meios
"extra-económicos" que violam os princípios do
liberalismo impostos aos concorrentes! De facto, os Estados Unidos só
beneficiam de vantagens comparativas estabelecidas no sector do armamento,
precisamente porque este escapa em larga escala às regras do mercado e
beneficia do apoio do Estado. Sem dúvida esta vantagem leva a algumas
recaídas para o sector civil a Internet constitui o melhor
exemplo mas está também na origem de sérias
distorções, que constituem desvantagens para muitos sectores
produtivos.
R. H.: Isto quer dizer que a economia americana é "um
parasita" em detrimento dos seus parceiros no sistema mundial?
S.A.:
Absolutamente. Os Estados Unidos dependem em 10% do seu consumo industrial de
bens cuja importação não está coberta pela
exportação de produtos nacionais. O mundo produz, os Estados
Unidos cuja poupança nacional é praticamente nula
consomem. O "benefício" dos Estados Unidos é de um
predador cujo défice é coberto pela contribuição
dos outros, consentida ou imposta. Os meios utilizados por Washington para
compensar as suas deficiências são de natureza diversa: repetidas
violações unilaterais dos princípios do liberalismo;
exportação de armamento; procura de proveitos
petrolíferos, que pressupõem o conluio dos produtores, verdadeiro
motivo das guerras na Ásia Central e no Iraque. Fica que o essencial do
défice americano é coberto pelas entradas de capitais
provenientes da Europa e do Japão, do Sul países
petrolíferos ricos e classes com poder de compra de todos os
países do Terceiro Mundo, incluindo os mais pobres aos quais se
juntará a punção exercida a título de
serviço da dívida imposta à quase totalidade dos
países da periferia do sistema mundial. A solidariedade dos segmentos
dominantes do capital transnacionalizado de todos os parceiros da tríade
é real e exprime-se pela sua adesão ao neoliberalismo
globalizado. Os Estados Unidos são vistos nesta perspectiva como os
defensores militares se necessário destes "interesses
comuns". Fica que Washington não pretende "dividir
equitativamente" os lucros da sua liderança. Os Estados Unidos,
pelo contrário, subjugam os seus aliados e com este espírito
só estão dispostos a consentir aos aliados subalternos da
tríade concessões mínimas.
R. H.: Estes conflitos de interesses do capital dominante acentuar-se-ão
ao ponto de provocar uma ruptura na Aliança Atlântica?
S.A.:
Não é impossível, mas pouco provável. Eu penso
é que o projecto de controlo militar do planeta está destinado a
compensar as deficiências da economia dos Estados Unidos. Este projecto
ameaça todos os povos do Terceiro Mundo. Esta hipótese resulta
logicamente do que precede. A decisão estratégica de Washington
de explorar a sua esmagadora superioridade militar e, nesta perspectiva, de
recorrer a "guerras preventivas" exclusivamente decididas e
planificadas por eles, visa arruinar qualquer esperança de uma
"grande nação", como a China, a Índia, a
Rússia e o Brasil, ou de uma coligação regional no
Terceiro Mundo que acedesse ao estatuto de parceiro efectivo no quadro do
sistema mundial, ainda que capitalista.
R. H.: Mas a opção americana por uma militarização
da mundialização não fere os interesses da Europa e do
Japão?
S.A.:
O objectivo dos Estados Unidos, nomeadamente com o controlo por meios
militares de todos os recursos decisivos do planeta, o petróleo em
particular, visa colocar os parceiros europeus e japoneses em
posição de vassalagem. As guerras americanas do petróleo
são guerras "anti-europeias". A Europa, e também o
Japão, podem responder parcialmente a esta estratégia com uma
aproximação à Rússia, capaz em parte de lhes
fornecer o petróleo e algumas outras matérias-primas essenciais.
R.H.: É por isso que pensa que a Europa se deva "libertar do
vírus liberal"?
S.A.:
Absolutamente, a Europa deve e pode libertar-se do vírus liberal. No
entanto, esta iniciativa não pode surgir do segmento do capital
dominante, mas dos povos. Os segmentos dominantes do capital, cujos interesses
os governos europeus continuam a acreditar dever defender como prioridade
exclusiva, são obviamente os defensores do neoliberalismo à
escala mundial e, por isso, aceitam pagar o preço da sua
subalternização face ao líder norte-americano. Os povos de
toda a Europa têm uma visão diferente do projecto europeu, que
pretendiam social, e das suas relações com o resto do mundo que
querem ver geridas pelo direito e a justiça, como o exprimem actualmente
com a condenação, por maioria esmagadora, da política
americana. Se esta cultura política humanista e democrática da
"velha Europa" prevalece, e é possível, então
uma verdadeira aproximação entre a Europa, a Rússia, a
China, toda a Ásia e toda a África constituirá o
fundamento em cuja base poderá ser construído um mundo
pluricêntrico, democrático e pacífico.
R.H.: Isto quer dizer que a maior contradição entre a Europa e os
Estados Unidos não está na oposição, aqui ou ali,
de interesses do capital dominante, mas antes no terreno das "culturas
políticas"?
S.A.:
O conflito prometedor situa-se efectivamente neste terreno, o das culturas
políticas. Na Europa, uma alternativa de esquerda continua
possível. Esta alternativa imporia simultaneamente uma ruptura com o
neoliberalismo e o abandono da esperança vã de submeter os
Estados Unidos às suas exigências, permitindo assim ao capital
europeu combater no terreno não minado da competição
económica e também a quebra do alinhamento com as
estratégias políticas dos Estados Unidos. O excedente de
capitais que a Europa até hoje se contenta em "colocar" nos
Estados Unidos poderia então ser afectado a um relançamento
económico e social, que de outra forma seria impossível. Mas
desde que a Europa escolhesse, desta forma, dar prioridade a um impulso
económico e social, a artificial saúde económica dos
Estados Unidos desmoronar-se-ia, e a classe dirigente americana seria
confrontada com os seus próprios problemas sociais. É este o
sentido que dou à minha proposta: "a Europa será de
esquerda ou não o será".
R.H.: Mas como chegar a esta Europa de esquerda?
S.A.:
Para lá chegar é preciso que os europeus abandonem a
ilusão de que o jogo do liberalismo deveria, e poderia, ser jogado
"honestamente" por todos, e que neste caso tudo estaria bem. Os
Estados Unidos não podem renunciar às suas opções
em favor de uma prática assimétrica do liberalismo, porque esta
é a sua única forma, já o disse, de compensar as suas
próprias deficiências. A "prosperidade" americana tem
como preço a estagnação dos outros. A "questão
europeia" encontra aqui o seu lugar. Não se pode ignorar a
importância, deste ponto de vista, de uma discussão profunda sobre
o que eu chamo de "areias movediças do projecto europeu". As
"culturas políticas" europeias são diversas, mesmo se,
em certa medida, elas contrastam com a dos Estados Unidos. Existem na Europa
forças políticas, sociais e ideológicas que sustentam,
muitas vezes com lucidez, a visão de uma "outra Europa"
social e amigável nas relações com o Sul. Mas há
também a Grã-Bretanha que fez desde 1945 a opção
histórica por um alinhamento incondicional com os Estados Unidos.
Há ainda as classes dirigentes da Europa de Leste, forjadas por uma
"cultura de servidão", ajoelhadas ontem diante de Hitler,
depois diante de Estaline, hoje diante de Bush. Há populismos de direita
estilo nostálgico do franquismo em Espanha e do mussolinismo em
Itália "pró americanos". As questões
importantes são então de saber se o conflito entre estas culturas
fará ou não estilhaçar a Europa, se se saldará por
um alinhamento com Washington ou pela vitória das culturas humanistas e
democráticas enunciadas.
R.H.: Voltando ao Sul, como reconstruir uma vasta frente anti-imperialista
entre os países do Sul?
S.A.:
A reconstrução de uma frente sólida do Sul implica a
participação dos seus povos. Os regimes políticos de
muitos países do Sul não são democráticos, pelo
menos que se possa dizê-lo, e por vezes francamente odiosos. Estas
estruturas autoritárias de poder favorecem as fracções com
poder de compra, cujos interesses estão ligados à expansão
do capitalismo imperialista global. A alternativa a
construção de uma frente dos povos do Sul passa pela
democratização. Esta democratização
necessária será difícil e longa. Mas o seu caminho
não passa seguramente pela instauração de regimes
fantoches que exponham os recursos dos seus países a pilhagem das
transnacionais americanas; regimes, neste caso, ainda mais frágeis,
menos credíveis e menos legítimos do que os colocados sob a
protecção do invasor norte-americano. Aliás, o objectivo
dos Estados Unidos não é o de promover a democracia no mundo,
apesar do seu discurso de pura hipocrisia sobre a matéria.
R.H.: Um novo internacionalismo dos povos associando europeus,
asiáticos, africanos e latino-americanos é possível?
S.A.:
Com certeza. Existem condições que permitem, no mínimo,
uma aproximação de todos os povos do Velho Mundo. Esta
aproximação cristalizar-se-ia, no plano da diplomacia
internacional, dando consistência ao eixo Paris Berlim
Moscovo Pequim, reforçado pelo desenvolvimento de
relações amigáveis entre este eixo e a frente
afro-asiática reconstituída. Escusado será dizer que os
avanços nesta direcção reduziriam a zero a
ambição desmesurada e criminosa dos Estados Unidos. Estes seriam
então obrigados a aceitar a coexistência com nações
decididas a defender os seus próprios interesses. No momento actual,
este objectivo deve ser considerado como absolutamente prioritário. A
expansão do projecto americano justifica o emprego de todas as lutas:
nenhum avanço social e democrático será duradouro enquanto
o projecto americano não for derrotado.
R.H.: As questões relativas à diversidade cultural não
deveriam ser discutidas no quadro destas novas perspectivas internacionais?
S.A.:
A diversidade cultural é um facto, mas um facto complexo e
ambíguo. As diferenças herdadas do passado, por mais
legítimas que possam ser, não são necessariamente
sinónimas de diferenças na construção do futuro que
é preciso não só aceitar, mas também procurar.
Invocar apenas as diferenças herdadas do passado islamismo
político, hinduísmo, confucionismo, negritude, chauvinismos
étnicos constituem muitas vezes um exercício
demagógico dos poderes autocráticos e esbanjadores que lhes
permite simultaneamente afastar o desafio que representa a
universalização da civilização e submeter-se de
facto aos ditames do capital transnacional dominante. Por outro lado, a
insistência exclusiva nestas heranças, divide o Terceiro Mundo,
opondo o Islão político ao hinduísmo na Ásia,
muçulmanos, cristãos e praticantes de outras religiões em
África
A refundação de uma frente política
unida do Sul é a forma de ultrapassar estas divisões sustentadas
pelo imperialismo norte-americano. O que são e podem ser os
"valores universais" na base dos quais se pode construir o futuro, ou
a forma de fazer avançar conceitos verdadeiramente universais,
enriquecidos pela contribuição de todos, eis alguns debates que
não poderão ser ignorados; mas deverá rejeitar-se uma
interpretação centrada no ocidente e restritiva de tais valores,
legitimando o desenvolvimento desigual, produto da expansão capitalista
mundializada de ontem e de hoje.
R.H.: Como pode o Sul libertar-se das ilusões liberais e envolver-se em
formas renovadas de desenvolvimento auto centrado?
S.A.:
Sem dúvida, no imediato, os governos do Sul parecem ainda bater-se por
um neoliberalismo "verdadeiro", em que os parceiros do Norte, como os
do Sul, concordariam com "as regras do jogo". Os países do Sul
apenas poderão constatar que esta esperança é totalmente
ilusória. Então terão que voltar à ideia
incontornável de que todo o desenvolvimento é necessariamente auto
centrado. Desenvolver-se é, antes de mais, definir objectivos nacionais
que permitam primeiro a modernização dos sistemas produtivos e a
criação de condições internas que a coloquem ao
serviço do progresso social, e em seguida submeter o relacionamento da
nação com os centros de capitalismo desenvolvido às
exigências desta lógica. Esta definição de
desconexão a minha situa o conceito nos antípodas
do princípio oposto o do liberalismo de "ajustamento
estrutural" às exigências da mundialização que
é necessariamente submetida aos imperativos exclusivos da
expansão do capital transnacional dominante, acentuando as desigualdades
à escala mundial.
R.H.: Isto significa que, para os países do Sul, a opção
por um desenvolvimento auto centrado permanece incontornável?
S.A.:
O desenvolvimento auto centrado
self-reliant,
em inglês constituiu, historicamente, o carácter
específico do
processo de acumulação do capital nos centros capitalistas e
determinou as modalidades do desenvolvimento económico que daí
resultaram; sabendo que é dirigido principalmente pela dinâmica
das relações sociais internas, reforçada por
relações externas postas ao seu serviço. Em contrapartida,
nas periferias, o processo de acumulação do capital derivou
sobretudo da evolução dos centros, incorpora-se nela e de alguma
forma é "dependente". O desenvolvimento auto centrado
supõe portanto o que se pode chamar o domínio das cinco
condições fundamentais da acumulação: 1) o
domínio local da reprodução da força do trabalho, o
que pressupõe num primeiro momento, que a política do Estado
assegure um desenvolvimento agrícola capaz de produzir excedente
alimentares em quantidade suficiente e a preços compatíveis com
as exigências da rentabilidade do capital, e, num segundo momento, que a
produção em massa de bens salariais possa acompanhar
simultaneamente a expansão do capital e a da massa salarial; 2) o
domínio local da centralização dos lucros, o que
pressupõe, não só a existência formal de
instituições financeiras nacionais, mas também uma
autonomia relativa em relação aos fluxos de capital
transnacional, garantindo a capacidade nacional de orientar o seu investimento;
3) o domínio local do mercado, de facto largamente reservado à
produção nacional, mesmo na ausência de uma forte
protecção tarifária ou outras, e a capacidade complementar
de ser competitivo no mercado mundial, pelo menos selectivamente; 4) o
domínio local dos recursos naturais, que pressupõe, para
além da sua propriedade formal, a capacidade do Estado nacional de os
explorar ou de os guardar em reserva neste sentido, os países
petrolíferos, que efectivamente não têm liberdade para
"fechar a torneira", se viessem a preferir guardar o petróleo
no seu subsolo, em vez de possuir meios financeiros que poderiam ser
expropriados a qualquer momento, não teriam capacidade para o fazer
; e finalmente 5) o domínio local das tecnologias, no sentido em
que, inventadas localmente ou importadas, estas podem ser reproduzidas
rapidamente sem que se seja obrigado a importar os inputs essenciais
equipamentos, know-how, etc.
R.H.: O debate sobre o desenvolvimento auto centrado ultrapassa, portanto, o
que opõe estratégias de substituição de
importações e estratégias viradas para a
exportação?
S.A.:
Exactamente. O conceito de desenvolvimento auto centrado, ao qual
poderíamos opor o conceito antinómico de desenvolvimento
"dependente", resultado do ajuste unilateral com tendências
dominantes que comandam a expansão do capitalismo à escala
mundial, não é redutível à antinomia
estratégias de substituição de importações /
estratégias orientadas para a importação. Estes dois
últimos conceitos são do domínio da economia
"vulgar", que ignora que as estratégias económicas
são sempre decididas por blocos sociais hegemónicos,
através dos quais se exprimem os interesses dominantes da sociedade da
altura. Aliás, mesmo no quadro da economia "vulgar", todas as
estratégias aplicadas no mundo real combinam a
substituição de importações e a
orientação exportadora, em percentagem variável consoante
as conjunturas do momento. A dinâmica do modelo do desenvolvimento auto
centrado baseia-se numa articulação mais importante: uma
articulação que põe em relação de
interdependência estreita o crescimento da produção de bens
de produção e o crescimento de bens de consumo de massa. As
economias auto centradas não são fechadas sobre si
próprias; pelo contrário, são agressivamente abertas, no
sentido que moldam, pelo seu potencial de exportação, o sistema
mundial na sua globalidade. A esta articulação corresponde uma
relação social cujas partes principais são
constituídas pelos dois blocos fundamentais do sistema: a burguesia
nacional e o mundo do trabalho. A dinâmica do capitalismo
periférico antinomia do capitalismo central auto centrado por
definição baseia-se em contrapartida numa outra
articulação mais importante, que relaciona a capacidade de
exportação, por um lado, e o consumo importado ou
produzido localmente por substituição de
importações de uma minoria. Este modelo define a natureza
consumista por oposição à nacional das
burguesias da periferia.
R.H.: Mas uma leitura crítica das tentativas históricas de
desenvolvimentos auto centrados, populares ou socialistas, não se
impõe igualmente?
S.A.:
Há 75 anos que a questão do desenvolvimento auto centrado e da
desconexão é colocada por todas as grandes
revoluções populares contra o capitalismo realmente existente:
nas grandes revoluções socialistas russa e chinesa, tal como nos
movimentos de libertação dos povos do Terceiro Mundo. Assim
sendo, as respostas históricas que foram dadas a esta questão, em
estreita relação com as que foram dadas a todos os outros
aspectos da problemática do desenvolvimento das forças
produtivas, da libertação nacional, do progresso social, da
democratização da sociedade
devem ser objecto de uma
leitura crítica permanente, retirando daí as lições
do seus sucessos e dos seus fracassos. Ao mesmo tempo, e porque o capitalismo
se transforma, evolui e adapta-se permanentemente aos desafios que representam
para ele as revoltas dos povos, as condições e os termos nos
quais se colocam estas questões são eles próprios objectos
de uma evolução permanente. Desenvolvimento auto centrado e
desconexão não podem portanto ser reduzidos a fórmulas
prontas e válidas para todas as situações e todos os
momentos da evolução histórica. Estes conceitos devem ser
repensados em função das lições da história
e da evolução da mundialização capitalista. A longa
vaga de libertação nacional que varreu o Terceiro Mundo a seguir
à Segunda Guerra Mundial saldou-se pela constituição de
novos poderes de Estado assentes principalmente nas burguesias nacionais que
controlaram, a vários graus, os movimentos de libertação
nacional. Estas burguesias produziram projectos de "desenvolvimento"
uma verdadeira "ideologia do desenvolvimento", como foi dito
projectos concebidos como estratégias de
modernização visando assegurar a "independência na
interdependência mundial". Estas estratégias não
encaravam então a desconexão no verdadeiro sentido do
princípio, mas somente uma adaptação activa no sistema
mundial, uma escolha que, como outras, exprime bem a natureza burguesa nacional
dos projectos em questão. A história iria demonstrar o
carácter utópico do projecto que, depois de se ter desenvolvido
aparentemente com sucesso, entre 1955 e 1975, não se aguentou,
conduzindo à "regressão compradora" das economias e das
sociedades da periferia, imposta pelas políticas ditas de
"abertura", de privatização e de ajusto estrutural
unilateral aos constrangimentos da mundialização capitalista. Em
contrapartida, as experiências do denominado "socialismo realmente
existente", na URSS e na China, tinham efectivamente desconectado, no
sentido que damos ao termo, e, neste espírito, tinham construído
um sistema de critérios de escolhas económicas independente do
imposto pela lógica da expansão capitalista mundial. Esta
escolha, como outras que a acompanhavam, traduz a origem autenticamente
socialista das intenções das forças políticas e
sociais na origem das revoluções em questão. Todavia,
confrontadas com as escolhas entre o objectivo de "alcançar a
qualquer preço" um desenvolvimento das forças produtivas
exigindo a adopção de sistemas de organização
à imagem dos existentes nos centros capitalistas e o de "construir
uma outra sociedade" socialista , as sociedades
soviética e chinesa deram progressivamente a prioridade à
primeira alternativa, a ponto de esvaziar a segunda de qualquer conteúdo
real.
R.H.: Verificou-se a formação de uma nova burguesia?
S.A.:
Com efeito, esta evolução, ela mesma produto da dinâmica
social é acompanhada pela formação progressiva de uma nova
burguesia. A história demonstrou o carácter utópico deste
projecto que se pretendia "socialista"; na verdade, de
construção de um "capitalismo (de Estado) sem
capitalistas" com a nova burguesia aspirando a um estatuto
"normal", análogo ao que tem no mundo capitalista. Ao mesmo
tempo, e logicamente, a nova burguesia pôs termo à
desconexão. O problema do atraso histórico dos países em
questão não ficou com isso resolvido; pelo contrário, o
restabelecimento de um capitalismo normal integrado no sistema mundial conduz
directamente à "reperiferização" das sociedades
em questão. A erosão e o falhanço dos projectos do
"desenvolvimentismo" dos países do Terceiro Mundo e do
sovietismo o dito "socialismo real" junto com o
aprofundamento da mundialização capitalista nos centros
dominantes do Ocidente, abriram caminho ao discurso unilateral dominante,
propondo a inserção na mundialização capitalista
como uma escolha "sem alternativa". Trata-se aqui de uma utopia
reaccionária, porquanto a submissão aos imperativos de
expansão do mercado mundial não permite ultrapassar a
mundialização polarizante. O desenvolvimento auto centrado
e a desconexão surgem, portanto, como a resposta incontornável ao
desafio da nova etapa da mundialização capitalista.
R.H.: As características da nova etapa de expansão capitalista
que se desenha não retiram as exigências por opções
autónomas e desconectadas. Mas a adesão da grande maioria das
classes dirigentes do mundo ao projecto de globalização
neoliberal não é indicador de que já não há
"capital nacional", e portanto de burguesias nacionais, em que a
dimensão dominante do capital, a mais dinâmica, é já
transnacional, ou "globalizada"?
S.A.:
Esta tese, apresentada em abundante bibliografia sobre o assunto, está
no centro de controvérsias. Em todo o caso, mesmo se fosse assim, o
capital transnacional em questão ficaria apanágio da
tríade, excluindo do seu clube fechado os países do Leste e do
Sul. Neste caso, haveria apenas burguesias consumidoras, isto é simples
correias de transmissão do domínio do capital transnacional da
tríade. É o que existe hoje em dia; e esta imagem é
evidente em muitos países, senão em todos. Mas mais uma vez,
é isto indicador de uma transformação duradoura? Neste
caso, o "mundo novo" seria apenas uma nova etapa de uma antiga
expansão imperialista, isto é polarizante num grau ainda mais
violento do que foi nas etapas precedentes. Será isto aceitável e
aceite, não só pelas classes dominadas que seriam as
vítimas de um empobrecimento maciço, agravado, mas também
por fracções de classes dirigentes ou de forças sociais e
políticas com aspirações a sê-lo? Entrámos
numa nova fase da mundialização capitalista e, por isso, a
polarização manifesta-se por formas e através de
mecanismos novos. Durante muito tempo, a polarização
manifestou-se no contraste países industrializados/países
não industrializados. A industrialização das periferias,
muito desigual, transfere o conflito para áreas novas: o controlo da
tecnologia, das finanças, dos recursos naturais do planeta, das
comunicações, do armamento. Renunciar à
construção de uma economia auto centrada, para lhe substituir a
criação prioritária de segmentos altamente eficazes,
capazes de ser competitivos no mercado mundial como a nova
expressão da velha teoria o propõe fazer esta
opção, seria perpetuar o contraste entre estes segmentos
modernizados, captando todos os recursos locais, e as reservas desintegradas,
mantidas na pobreza.
R.H.: Quais seriam então as condições de um
desenvolvimento digno desse nome?
S.A.:
Um desenvolvimento digno desse nome exige uma transformação
profunda e difusa, que permita à revolução agrícola
travar o seu caminho, e a uma rede densa de pequenas indústrias e de
cidades secundárias de preencher funções
insubstituíveis no apoio ao progresso geral da sociedade. Claro que as
escolhas concretas de etapas que se inscrevem nesta perspectiva geral dependem
das soluções das lutas sociais e implicam o sucesso de
alianças nacionais populares e democráticas, capazes de sair das
rotinas de compradorização. Na aplicação concreta
de políticas de etapas, deverão ser progressivamente
desenvolvidos conceitos de eficácia social, substituindo-se ao estreito
conceito comercial capitalista da "competitividade". Simultaneamente,
a perspectiva a longo prazo do universalismo planetário não se
perderá. Prepará-la exige uma certa abertura externa a
importação criteriosamente seleccionada de tecnologias ,
ainda que esta deva ser controlada tanto quanto possível para ser posta
ao serviço do progresso geral e não de lhe pôr entraves. A
evolução global impõe a construção de
grandes grupos regionais, particularmente nos espaços
periféricos, mas também noutros lugares, como na Europa, e a
colocação preferencial e prioritária, nestes quadros, dos
meios de preparar a modernização à escala mundial e a
transformar a sua natureza, libertando-a progressivamente dos critérios
do capitalismo. Esta construção exige, por sua vez, que se
ultrapasse os limites estreitos dos arranjos estritamente económicos
para vislumbrar a construção de grandes comunidades
políticas, fundamento de um mundo pluricêntrico. Claro, as
formulações do desenvolvimento auto centrado e da
desconexão a esta escala implicam a articulação negociada
das relações entre as grandes regiões consideradas, tanto
no plano das trocas e da determinação dos seus termos, do
controlo e da utilização dos recursos, como no das
finanças e da segurança política e militar. Isto obrigaria
a uma reconstrução do sistema político internacional,
libertando-se das tentações hegemónicas, para
avançar na via do pluricentrismo.
[*]
Director do Fórum do Terceiro Mundo (Dakar) e do
Fórum Mundial das Alternativas.
[**]
Investigador no CNRS, lecciona na Universidade
de Paris1 Panthéon Sorbonne.
Tradução de Marie Ruy Pimenta d'Aguiar.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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