A Revolução de Outubro, normal ou monstruosa?
por Annie Lacroix-Riz
[*]
A historiografia dominante está alinhada com a propaganda
antibolchevique e russófoba desenvolvida desde o final de 1917. Mas
pode-se, ainda, confrontar a ladainha dos grandes média e dos seus
historiadores fetiches com as muitas obras científicas que descreveram
corretamente a Revolução de Outubro. Lê-las, sobre o maior
acontecimento do século 20, permite aspirar uma grande lufada de ar
fresco. Não hesitem...
A Revolução de Outubro é tão lógica como a
Revolução Francesa, que só pode ser explicada
descrevendo-a, seguindo o exemplo dos grandes historiadores
Albert Mathiez
,
Georges Lefebvre
e
Albert Soboul
sobre a crise, a longo e curto prazos, do
Antigo Regime feudal, que precedeu e provocou esse terramoto.
Uma longa situação pré-revolucionária
Um país atrasado, lançado no capitalismo entre o
ukase
[1]
de 1861, que aboliu a servidão, e a imposição de
sacrifícios desta caverna de Ali Baba, a partir de 1890, pelas
potências imperialistas desenvolvidas. A massa de camponeses, mais de 80%
da população, foi privada de terra ou humilhada mais
gravemente, ao longo de gerações , com a dívida de
resgate obrigatório de terras tornadas
"livres",
com a superfície reduzida a quase nada (os camponeses franceses
tinham conseguido, em julho de 1793, depois de uma luta ininterrupta de quatro
anos, a abolição dos direitos senhoriais sem
indemnização). A classe operária saída deste
miserável mundo camponês foi sobre-explorada pela grande burguesia
nacional e, ainda mais, pelos tutores desta, os grandes grupos bancários
e industriais estrangeiros (franceses, britânicos, alemães,
suíços, americanos), que, depois do Ministro
de Witte
, controlavam
toda
a economia moderna. Concentrada, mais do que em qualquer outro
país, nas grandes cidades sobretudo na capital política,
São Petersburgo-Petrogrado, com a enorme fábrica de armamento
Poutilov , era muito combativa: antes de 1914, 40% dos 3 milhões
de operários trabalhavam em fábricas com mais de mil
operários, e a
"curva de greves"
aumentou incessantemente do segundo semestre de 1914 até
fevereiro de 1917, passando de 30 mil para 700 mil grevistas.
A Guerra russo-japonesa de 1904 símbolo dos apetites dos grandes
imperialismos rivais pela mina de ouro da Rússia , tinha
terminado, dada a inépcia militar do regime czarista, com um fracasso
tão lamentável como aquele que tinha posto fim à guerra da
Crimeia. E teve como consequência a revolução de 1905, na
qual Lénine, líder da fração
"bolchevique" (maioritária no Congresso de Londres de 1903) do
Partido
Operário Social-Democrata da Rússia (POSDR), vive, em
retrospetiva,
"o maior movimento do proletariado após a Comuna"
e
"a repetição geral"
da revolução de 1917. O fracasso do movimento fundador dos
"conselhos"
(sovietes), nova forma de expressão e de poder popular, foi
seguido duma terrível e duradoura repressão: mais do que nunca, o
império foi uma prisão dos povos, amor absoluto do grande capital
francês, financiador de créditos garantidos pelo Estado
francês e
"cortador de cupões"
(Lénine, capítulo 8, de
O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo
). Esse fracasso retardaria em cinquenta anos o surgimento de uma nova
revolução, a menos que, pensava Lénine, surgisse uma crise
ou uma guerra. A fase seguinte encurtou os prazos, conjugando os dois.
O sistema czarista mostrou-se inepto, como de costume, na
condução geral da guerra. A sua carne para canhão
não dispunha mesmo do mínimo de munições, com a
Rússia a fabricar, de 1914 a 1917, 9 vezes menos cartuchos e armas do
que o necessário. Baixa da produção agrícola de
quase um quarto, irregularidades nas requisições, culturas a
apodrecer nos locais de produção, insuperáveis problemas
de transporte, catástrofe no abastecimento: no início de 1917,
mesmo na frente, a ração de pão não dava para o dia
e os soldados-camponeses (95% do exército) reentravam em sua casa a
pé. Era pior nas cidades, designadamente, em Moscovo e Petrogrado. A
fome foi
"a causa imediata da revolução"
de fevereiro (Michel Laran,
Rússia-URSS 1870-1970,
Paris, Masson, 1973). Isto levou à abdicação de Nicholas
II, que
"tinha conseguido a unanimidade contra ele".
Uma revolução lógica
Os bolcheviques, exilados, como Lénine (na Finlândia), ou
clandestinos na Rússia, eram então certamente
ultraminoritários. Mas deixaram rapidamente de o ser, pois o povo russo,
ávido de reformas profundas, teve de perceber que o seu destino
não mudava. Ao longo de meses ficou amargamente desapontado com aqueles
a quem tinha dado a sua confiança, como os
socialistas-revolucionários, que tinham prometido, há muito
tempo, a terra aos que a trabalhavam. Até mesmo os camponeses acabaram
por admitir, na passagem do outubro de 1917, que nenhum outro partido,
além do de Lénine o único a demonstrar, desde
fevereiro, a capacidade de manter os seus compromissos , lhes daria a
terra e os libertaria
de direito
da carnificina, que desde 1916 eles começaram a abandonar
de facto.
Os historiadores franceses dos anos 1970 mostraram como a
evolução da conjuntura e das relações sociais
tinham, em tempo recorde, sobretudo entre agosto e outubro de 1917, erigido os
minoritários de fevereiro em representantes exclusivos das
"aspirações populares".
O académico
René Girault
descreveu este processo como dominado por duas questões, a terra e a
paz.
"A partir do fracassado golpe de Estado do general Kornilov (no final de
agosto), a evolução acelerada dos sovietes em
direção aos bolcheviques, marcada pela passagem de muitos
sovietes urbanos, de soldados e até de camponeses para as maiorias
bolcheviques, mostra que a constante oposição dos bolcheviques ao
Governo Provisório (e à sua "encarnação"
Kerensky) ganhou a adesão popularquot;.
Logo que tomou o poder, o Partido bolchevique realizou as reformas prometidas
"fazendo inclinar para o seu lado a grande massa do campesinato",
sabendo que
"a confiança [que lhe conferiam] as massas urbanas era muito mais
forte"
do que a dos camponeses. A análise do historiador socialista
juntava-se, sessenta anos mais tarde,
("As revoluções russas",
t. 5 da
História económica e social do mundo,
Léon Pierre, ed., Paris, Armand Colin, 1977, pp. 125-142), à do
grande jornalista comunista norte-americano John Reed, autor de
Os dez dias que abalaram o mundo,
obra-prima da
"história imediata"
da Revolução de outubro e das suas questões de
classe, que é necessário ler e reler (Paris, 10-18,
reedição, 1963).
A coligação imperialista contra os Sovietes
Foram essas transformações, realizadas com tanto de pragmatismo
como de fidelidade aos princípios, de acordo com Girault, que
asseguraram aos bolcheviques sozinhos (solidão que não quiseram)
a vitória final numa
"guerra civil"
que, como a Revolução Francesa e todas as
"guerras civis"
posteriores, teve origem e financiamento principalmente
estrangeiros
(como o atesta o atual caso venezuelano). Não foi por os bolcheviques
serem detestados ditadores sanguinários do seu povo que, depois de 1918,
"as forças armadas de catorze Estados invadiram a Rússia
soviética sem declaração de guerra",
tendo à cabeça
"a Grã-Bretanha, a França, o Japão, a Alemanha, a
Itália, os Estados Unidos",
mataram mais russos do que a própria guerra 7
milhões de
"homens, mulheres e crianças"
e causaram
"perdas materiais estimadas pelo governo soviético em 60 mil
milhões de dólares",
montante muito superior às
"dívidas czaristas aos Aliados"
e que não deu origem a
"qualquer reparação"
por parte dos invasores, de acordo com
"o balanço"
de Michael Sayers e Albert Kahn
The Great Conspiracy: The Secret War Against Soviet Russia
[A Grande Conspiração: A guerra secreta contra a Rússia
Soviética],
Little, Boni & Gaer, Nova York, 1946).
Como os aristocratas da Europa coligados, em 1792, para restabelecer em
França o Antigo Regime e garantir para eles a sobrevivência dos
privilégios feudais, os grupos estrangeiros que deitaram a mão ao
império russo e os Estados ao seu serviço mergulharam novamente a
Rússia em três anos de caos, para preservar os seus tesouros e
conseguir outros novos, como a Royal Dutch Shell, que contava na ocasião
levar a totalidade do petróleo caucasiano. Como na França, o
Terror revolucionário foi apenas a resposta necessária aos
assaltos externos.
A atual etapa de demonização da Rússia soviética
(ou não)
Ao comparar as revoluções francesa e russa, o grande historiador
americano Arno Mayer, professor de Princeton, confirmou estas análises
de Sayers e Kahn, futuras vítimas do macartismo (
www.independent.co.uk/...
en.wikipedia.org/wiki/Albert_E._Kahn
). Se a França, concluiu ele, tinha sido uma
"fortaleza sitiada"
antes de a nova classe dominante poder
"combinar-se"
com os privilegiados contra-revolucionários da França e de
outros lugares, a Rússia soviética permaneceu uma pária
assaltada desde o seu nascimento até a sua morte, e por razões
independentes do caráter e dos modos de Lénine ou de
Stáline (
Les Furies 1789, 1917, Violence vengeance terreur aux temps de la révolution française et de la révolution russe
(As Fúrias, 1789,1917, Violência, vingança e terror no tempo
da Revolução Francesa e da Revolução Russa),
Paris, Fayard, 2002 ). Exceção, felizmente traduzida, na
paisagem historiográfica.
Exceção feliz, por que os historiadores
"reconhecidos"
apresentam hoje a Revolução de Outubro como o golpe de
Estado de um grupúsculo antidemocrático e sedento de sangue ou,
na melhor das hipóteses, como uma empresa inicial simpática,
confiscada por uma
"minoria política a atuar no vazio ambiente institucional"
e conduzindo, oh horror, a
"décadas de ditadura"
e ao
"fracasso soviético [marcando] o fracasso e a derrota de todas as
formas históricas de emancipação do século XX ligadas ao
movimento operário":
estes julgamentos de
Nicolas Werth
e
Frédérick Genevée
, em
"Que reste-t-il de la révolution d'Octobre?
(O que resta da Revolução de Outubro?)",
"edição especial"
de
L'Humanité
, publicado no verão de 2017, confirmam os arrependimentos oficiais do
PCF sobre o seu passado
"estalinista",
após a publicação do
Livro Negro do Comunismo
, de 1997, do
tandem
Stéphane Courtois
(sucessor do falecido François Furet)-Nicolas
Werth.
Eco significativo da mudança anti-soviética e
pró-americana dos manuais de história franceses do
secundário, negociados a partir de 1983, que atingiu a URSS (Diana
Pinto,
"L'Amérique dans les livres d'histoire et de géographie des
classes terminales françaises
[A América nos livros de história e geografia das classes
terminais francesas]", Historiadores e Géografos
, n° 303, março de 1985, pp. 611-620), depois a
Revolução Francesa: foi a dupla obsessão de Furet,
historiador sem arquivos, que
"os de cima",
na França, nos Estados Unidos e na União Europeia, com a
Alemanha em primeiro lugar, usaram tanto (História contemporânea
ainda sob influência, Paris, Delga, o tempo das cerejas, 2012).
Após a derrota da URSS e suas consequências a
extensão considerável da esfera de influência americana na
Europa , a criminalização da URSS foi tanto mais facilmente
imposta, quanto quase todos os antigos partidos comunistas deixaram de lhe
resistir.
A historiografia dominante está alinhada com a propaganda
anti-bolchevique e russófoba desenvolvida desde o final de 1917. Mas
pode-se, ainda, confrontar a ladainha dos grandes média e dos seus
historiadores fetiches com as muitas obras científicas que descreveram
corretamente a Revolução de Outubro. Lê-las, sobre o maior
acontecimento do século 20, permite aspirar uma grande lufada de ar
fresco. Não hesitem...
06/Novembro/2017
[NT]
ukase
(formalmente 'imposição') é uma proclamação,
um decreto, uma ordem ou um regulamento de natureza definitiva ou
arbitrária,
Ver também:
Stalin, História e crítica de uma lenda negra
, Miguel Urbano Rodrigues
[*]
Professora emérita de história contemporânea, Universidade
de Paris 7, Denis Diderot.
O original encontra-se em
Le Drapeau rouge,
n.º 64, setembro-outubro 2017 em
www.initiative-communiste.fr/...
e a versão em português em
pelosocialismo.blogs.sapo.pt/a-revolucao-de-outubro-normal-ou-24855
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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