O fim da era pós Guerra Fria
por M. K. Bhadrakumar
[*]
O dia em que a China mostrava a sua potência e estabelecia novas
fronteiras para a celebração global, com cerca de 80
líderes mundiais a assistirem a cerimónia de abertura dos Jogos
Olímpicos de Verão da China, deveria ter sido a notícia
principal de sexta-feira. Mas os acontecimentos no Cáucaso determinaram
que isso não se verificasse.
A morte de milhares de pessoas da separada região georgiana da
Ossétia do Sul acabou por ser um momento memorável nas
relações da Rússia pós soviética com o
ocidente. O ataque georgiano de sexta-feira à Ossétia do Sul foi
concebido como uma provocação. O ataque matou 13 soldados
russos, feriu 150 e ceifou a vida de 2000 civis, a maior parte cidadãos
russos. A capital da Ossétia do Sul, Tskhinvali, foi totalmente
arrasada. Mais de 30 mil refugiados cruzaram a fronteira russa.
A crise no Cáucaso do Sul havia estado a construir-se vagarosamente
desde que o Kosovo, província em ruptura da Sérvia, declarou
independência em Fevereiro. Em Agosto, 45 países haviam sido
persuadidos pelos Estados Unidos a conceder reconhecimento ao Kosovo, incluindo
as maiores potências europeias: França, Alemanha e
Grã-Bretanha. Esperava-se que a Rússia retaliasse com a
promoção do secessionismo na Geórgia e na Moldova, mas, ao
contrário das expectativas, a Rússia adoptou uma política
perspicaz de mobiizar a opinião pública mundial contra o
separatismo político.
Tacticamente, satisfazia Moscovo que a Geórgia abrigasse a
esperança de que, com a "boa vontade" russa, pudesse ser
concluído um entendimento com as suas províncias em ruptura. Por
outras palavras, Moscovo esperava trabalhar no plano diplomático
conseguindo que a Geórgia correspondesse à "boa
vontade" russa e ao seu espírito de acomodação.
Colocado de forma simples, Moscovo esperava que em compensação
Tíflis seria sensível aos interesses da Rússia no
Cáucaso.
Sempre existiu dentro do Kremlin o corpo de opinião significativo de que
a Geórgia nunca esteve irrevogavelmente perdida para os EUA a seguir
à "revolução colorida" de Novembro de 2003, e
que com paciência e tacto e um jogo criterioso dos factores da
história, da cultura e dos laços económicos, Tíflis
podia ser levada a apreciar que relações amistosas com Moscovo
eram vantajosas a longo prazo. Na verdade, também existia em
Tíflis a tendência de opinião semelhante embora de
uma forma muda de que o futuro da Geórgia não pode ser
antagónico em relação à Rússia e que uma
correcção de rota pelo regime do presidente Mikheil Saakashvili
era adequada.
Quando uma crise económica e a ilegalidade aumentavam na Geórgia,
no passado recente, a diplomacia russa começou a mudar as marchas em
Tíflis, encorajando os elementos que apoiavam melhores
relações com Moscovo. Até um certo ponto, Moscovo estava
correcta em fazer isso. Mas ela deixou de ver que da perspectiva de
Saakashvili, quando o seu regime autoritário se tornava cada vez mais
impopular e o entulho da má governação,
corrupção e venalidade começou a acumular-se, valia a pena
incitar à xenofobia. A Rússia era o alvo melhor, pois nada
inflama mais as paixões georgianas do que a questão da
integridade do país.
Eis porque Moscovo protestou quando se começou a saber que, com
encorajamento dos Estados Unidos, Tíflis estava a embarcar num plano
para aumentar dramaticamente o seu orçamento militar em 30 vezes. Este
movimento georgiano verificou-se em conjunto com a crescente assistência
dos EUA no treino do exército georgiano. Moscovo começou a
perguntar a questão pertinente de com quem Tíflis encarava entrar
em guerra.
Moscovo propôs então um acordo comprometendo todos os
protagonistas a não utilizarem a força para dirimirem as suas
diferenças. Mas Tíflis não aceitou tal acordo. Nem
tão pouco Washington convenceu Tíflis a aceitar um acordo deste
tipo. Não só isso: Washington fechou os olhos quando
fornecimentos clandestinos de armas começaram a ser entregues em
Tíflis. Em Julho, o Departamento da Defesa dos EUA financiou um
exercício militar com a Geórgia. Em retrospectiva, o ponto de
viragem deu-se quando a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice,
visitou Tíflis no mês passado.
Saakashvili buscou inspiração nas declarações de
Rice que endossavam o pedido da Geórgia de ser tornar membro da
Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e de apoio
aberto à posição da Geórgia no seu impasse com a
Rússia. É um ponto discutível se Saakashvili retirou
unilateralmente conclusões do gesto diplomático de Rice ou se um
entendimento tácito Washington-Tíflis teve lugar.
De qualquer modo, Saakashvili soltou os cães da guerra um mês
após a visita de Rice a Tíflis. E ele actuou com um cronograma
imaculado quando o presidente russo Dmitry Medvedev estava em
férias de Verão e o primeiro-ministro Vladimir Putin havia
deixado Moscovo para comparecer à cerimónia de abertura das
Olimpíadas. No cômputo geral, é inconcebível que
Washington estivesse às escuras acerca de como a cabeça de
Saakashvili estava a funcionar.
Ficamos com uma sensação de estar numa máquina do tempo,
de volta à Guerra Fria. Os mestres conspiradores em Washington agora
observarão intensamente como a liderança de Medvedev no Kremlin
manuseia a crise. Eles procurarão por pistas para saber se tem o punho
de ferro e os nervos de aço de Putin. Quando Putin tomou posse em 2000,
um teste semelhante aguardava-o na Chechenia. Ele começou a fazer o que
a Rússia tinha de fazer. Mas os tempos haviam mudado. Ventos
gélidos haviam começado a soprar nas relações
Leste-Oeste.
Na verdade, subsiste a questão: o que são as
opções da Rússia? Uma enorme catástrofe
humanitária precisa ser evitada quando muitos milhares de civis
ossetianos jazem enterrados nas ruínas deixadas pela ofensiva em grande
escala da Geórgia, apoiada por tanques, aviões de combate,
artilharia pesada e infantaria. Enquanto isso, a Rússia deve actuar com
uma mão amarrada atrás das costas. A propaganda ocidental
está ansiosa por avançar.
O
think tank
Stratfor, que muitas vezes reflecte a comunidade americana de
inteligência, já descreveu isto como a chegada do "momento de
definição" na era pós Guerra Fria e que o mundo
está a testemunhar "a primeira grande intervenção
russa desde a queda da União Soviética [em 1991]". O
Stratfor considerou que as antigas repúblicas soviéticas que
fazem fronteira com a Rússia estariam agora "terrificadas quanto ao
que enfrentam no longo prazo".
Tíflis também comutou para a retórica. O presidente
georgiano, educado nos EUA, disse: "Isto não é mais acerca
da Geórgia. É acerca da América, dos seus valores".
Lá longe, em Pequim, o presidente George W. Bush concordou
imediatamente.
Bush disse estar "profundamente preocupado" e que a
intervenção russa é uma "escalada perigosa" ...
perigando a paz regional". E acrescentou: "Apelamos a um fim nos
bombardeamentos russos, e a um retorno das partes ao status quo de 6 de
Agosto".
Mas ao estalar a violência, a Rússia tentou fazer com que o
Conselho de Segurança das Nações Unidas emitisse uma
declaração apelando à Geórgia e à
Ossétia do Sul para deporem armas. Contudo, Washington
desinteressou-se. Como disse o embaixador russo nas Nações
Unidas, Vitaly Churkin, havia uma "ausência de vontade
política" dentro do Conselho de Segurança. Parece que
Washington esperava que pudesse ser trabalhada uma permuta (quid pro quo)
também com uma nova resolução do Conselho de
Segurança a impor sanções mais duras ao Irão, a
qual os EUA tinham estado a pressionar, e a Rússia até
então a resistir.
O que é o plano de jogo dos EUA? Para começar, Saakashvili
é um rebento da "revolução colorida" na
Geórgia, a qual foi financiada, encenada e administrada pelos EUA em
2003. A Geórgia e o Cáucaso do Sul constituem uma região
criticamente importante para os EUA uma vez que assenta uma movimentada rota de
transporte para energia como o Oceano Índico ou o Golfo
Pérsico. Ela pode ser utilizada como um ponto de
obstrução
(choke point).
Dito simplesmente, mantê-la sob controle como uma esfera de
influência é altamente vantajoso para atingir os interesses
geopolíticos dos EUA na região euroasiática. Uma
reversão da influência russa torna-se portanto um objectivo
desejável.
A geopolítica da energia está no núcleo do conflito no
Cáucaso. Os EUA sofreram uma série de grandes reveses nos
últimos dois anos no grande jogo da energia do Cáspio. O
êxito de Moscovo em conseguir que o Turquemenistão comprometesse
virtualmente toda a sua produção de gás para
exportação junto ao gigante Gazprom foi uma pancada estonteante
para a diplomacia americana da energia. Analogamente, os EUA fracassaram em
conseguir que o Casaquistão jogasse fora os seus estreitos laços
com a Rússia, especialmente o acordo para encaminhar suas
exportações de petróleo primariamente através de
oleodutos russos.
Em consequência, há incertezas acerca da viabilidade do muito
falado projecto de oleoduto Baku-Tíflis-Ceyhan, o qual foi contratado em
2005 com financiamento e apoio político aberto dos EUA. Analogamente, o
projecto South Stream
da Rússia destinado a transportar gás russo e do Cáspio
para os Balcãs e os países ao Sul da Europa e o fracasso do
projecto do
gasoduto Nabucco
patrocinado pelos EUA (o qual em termos gerais tem a mesma
orientação do South Stream) surgiram como derrotas para
Washington.
Em termos geopolíticos, um ponto explosivo no Cáucaso nessa
conjuntura satisfaz Washington. Uma furiosa barragem de propaganda contra a
Rússia já começou. Ela já está num tom
estridente. Declarações estado-unidenses virtualmente ignoraram
a carnificina georgiana na Ossétia do Sul e o ataque às
forças russas de manutenção da paz. O foco é sobre
a resposta russa à provocação georgiana. Começou
uma tentativa de retratar a Rússia como o agressor. Washington
está a cultivar cuidadosamente nas capitais ocidentais a opinião
de que Moscovo está a "intimidar" Tíflis.
Esta propaganda é destinada a fortalecer a argumentação de
Washington para introduzir a Geórgia na NATO. Na cimeira da NATO em
Abril, ficou evidente que apesar das suas fortes tentativas durante meses,
Washington precisava ultrapassar a resistência interna da NATO quanto
à incorporação da Geórgia, especialmente da
Alemanha, França e Itália. Os países europeus cuidam-se
de provocar Moscovo e criar novas barreiras Leste-Oeste, especialmente num
momento em que os imperativos de segurança energética
estão nas cabeças de toda a gente.
Foi portanto trabalhada uma fórmula de compromisso na cimeira na
Roménia no sentido de que os ministros de Negócios Estrangeiros
da NATO na sua reunião de Dezembro revisitarão a questão
do pedido de adesão da Geórgia. Rice tornou claro na
Roménia que os EUA não estavam em vias de desistir e afastar-se,
mas que insistiriam na questão. Agora, a reunião de Dezembro
também será o último grande evento da NATO na era Bush. A
Geórgia tem sido um projecto acarinhado da administração
Bush, e a sua admissão na NATO seria uma herança requintada da
era Bush. A guerra no Cáucaso nesta conjuntura foi conveniente para a
administração Bush pressionar a introdução da
Geórgia (e da Ucrânia) na NATO.
O ingresso da Geórgia na NATO tem implicações
estratégicas de extremo alcance. Com introdução da
Geórgia, a NATO transpõe a região do Mar Negro e
aproxima-se da Ásia. Isto constitui um grande salto em frente para a
aliança, a qual até recentemente nem mesmo estava certa
ostensivamente, pelo menos do seu destino pós Guerra Fria no
século XXI.
O ingresso da Geórgia na NATO assegura que o arco de envolvimento da
Rússia pelos EUA é fortalecido. Ligações à
NATO facilitam a instalação do sistema de defesa de
mísseis estado-unidense na Geógia. Os EUA pretendem ter uma
cadeia de países amarrados a "parcerias" com a NATO para
servir o seu sistema de defesa de mísseis estendendo-se desde os
seus aliados no Báltico e na Europa Central, Turquia, Geórgia,
Israel, Índia e indo até à Ásia-Pacífico.
Na perspectiva de Washington, não há nada como conseguir que a
Rússia se atole no Cáucaso se isto sapa a capacidade da
Rússia de desempenhar um papel efectivo no cenário mundial. Isto
tudo é tão evidente que Moscovo temia uma guerra total a irromper
no Cáucaso e estava desesperadamente ansiosa por evitá-la.
Moscovo é fundamentalmente adversa a qualquer confrontação
com o ocidente. Sua política externa dá prioridade principal
à integração da Rússia com a Europa. Mas a melhor
esperança de Washington é que com algum grau de "isco para
urso", em algum momento Moscovo perderá a paciência e
atacará, mesmo que isso possa afectar a imagem da Rússia na
Europa.
Na verdade, se Moscovo se concordar com o antigo pedido da Ossétia do
Sul para se tornar parte da Federação Russa, isto será
transformado em ração para a crítica ocidental de que um
Kremlin "revanchista" anexa territórios. Mas se Moscovo
permanecer passiva, o Cáucaso poderia tornar-se a "ferida
sangrenta" da Rússia e o prestígio de Moscovo no
espaço pós-soviético diminuiria.
Em suma, isto camufla a lógica de que Saakashvili actuou impulsivamente.
Os georgianos têm uma reputação de serem coléricos,
mas ele também é um jurista treinado nos EUA. Não
é possível que ele seja tão ingénuo acerca dos
factos da vida e da certeza de que ficaria com o nariz sangrento se tentasse
enfrentar o exército russo.
O que são os factos? De acordo com a Jane's, a Geórgia tem
26.900 militares contra 641 mil da Rússia; 82 tanques de batalha contra
6.717; 139 veículos blindados para transporte contra 6.388; e sete
aviões de combate contra 1.206. Mais: há
indicações de que na segunda-feira a Geórgia retomou o
bombardeamento de Tshhinvali e de posições russas na
região, matando mais três russos da força de
manutenção da paz. As perdas militares russas elevaram-se agora
a 18 mortos, 14 desaparecidos e mais de 50 feridos.
No domingo aviões militares dos EUA transportaram 800 tropas georgianas
que serviam no Iraque, juntamente com "cerca de 11 toneladas de carga, de
volta à Geórgia". A visão convencional levar-nos-ia
a acreditar que os EUA mal podem permitir-se um "abandono" georgiano
do Iraque. O contingente de 2000 georgianos estava envolvido na tarefa
sensível de impedir que milicianos xiitas contrabandeassem armas
através da fronteira iraniana. Como disse um académico
americano, "Uma ponte aérea americana de 2000 tropas georgianas
para combater tropas russas nesta conjuntura não parece amistosa para
com Moscovo".
A questão é que a administração Bush não se
pode permitir fracassar nesta aventura caucasiana. Ela será vista como
tendo sangue desnecessário nas suas mãos a menos que a diplomacia
dos EUA tenha êxito em mudar as coisas a seu favor e levar o assunto
à sua conclusão fria e lógica a
introdução da Geórgia na NATO.
Washington tem escassos quatro meses para alcançar este objectivo. Mas
não é uma exigência absurda. Se a
administração Bush tiver êxito, uma página da
história será escrita. Poderemos conclusivamente dizer adeus
à era pós Guerra Fria. As relações da
Rússia com a Europa e os EUA nunca poderão ser as mesmas outra
vez. Foi derramado sangue, afinal de contas. A significância das
Olimpíadas de Pequim, em comparação, empalidece.
[*]
Diplomata de carreira do Indian Foreign Service. Suas missões
incluíram a União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka,
Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e
Turquia.
O original encontra-se em
http://www.atimes.com/atimes/Central_Asia/JH13Ag02.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|