Infraestrutura e superestrutura: o antifascismo e o anticapitalismo
França, 1958. Charles De Gaulle, tendo aprovado o Programa do Conselho
Nacional de Resistência onde, entre outras medidas, se previa a
nacionalização da banca e dos monopólios, a melhoria
considerável das condições de trabalho e,
fundamentalmente, a criação do Estado social , e na
vigência de uma constituição literalmente imposta por ele
em 1946 (quando forçou a convocação de uma segunda
assembleia constituinte, dado que a primeira assembleia eleita na
subsequência da Libertação produzira uma Lei Fundamental
que julgava demasiado à esquerda), desferiu um golpe de Estado para
assumir o poder ilegalmente. O exército colonialista francês
enfrenta dificuldades na subjugação dos independentistas
argelinos. Sob a sua liderança, esse mesmo exército torturou e
assassinou argelinos tanto na frente de guerra como nos bairros populares das
cidades e, na metrópole, a polícia francesa chacinou, em 1961, a
população muçulmana de Paris, arremessando os
cadáveres ao rio Sena, sob a liderança sinistra de Maurice Papon.
Ainda no ano final da guerra, também em Paris, a polícia atacou
uma manifestação antifascista de condenação da OAS
(organização racista defensora de uma independência branca
da Argélia), matando, a golpes de matraca no crânio, oito
militantes comunistas.
Chile, 1971. O partido Democracia Cristã, tendo apoiado a
eleição de Salvador Allende em 1970, rompe com a
coligação governamental e aproxima-se do Partido Nacional, de
direita, principal força da oposição
contra-revolucionária ao Governo da Unidade Popular. No âmbito
desta aliança vão aprovar o Projecto Hamilton-Fuentealba,
alteração constitucional que colocava sérias barreiras
à continuação das reformas
político-económicas propugnadas pela Unidade Popular, e
vão reverter, com ele, diversas nacionalizações e
requisições feitas anteriormente. Ao longo de 1972 e 1973
receberão profusamente financiamento da CIA para minar o Governo Allende
e, depois do golpe militar de Pinochet, logo a 12 de Setembro de 1973, publicou
um comunicado expressando alívio com a derrocada do Governo eleito.
Até 1990, e pese embora a diversidade de posições dos seus
militantes, a Democracia Cristã, no essencial, rejeitou o Governo
fascista para vir, após a queda de Pinochet, a dirigir o processo
de transição do fascismo para a democracia burguesa sem
julgamento de torturadores, sem condenação de carrascos e
carcereiros, sob silêncio, branqueamento e denegação do
dever de memória.
Portugal, 1975. Agrupando resistentes antifascistas de longa data
(republicanos, socialistas, católicos progressistas, etc) e depois de
apresentar um programa anticapitalista à eleição
constituinte defendendo nacionalizações da banca, dos seguros, de
diversos sectores industriais estratégicos para o funcionamento da
economia nacional medidas que, na subsequência do 11 de
Março, votou favoravelmente no Governo Provisório , o PS
muda velozmente de opinião, com o prestimoso auxílio de Frank
Carlucci, embaixador norte-americano em Portugal, e do financiamento vultuoso
do Governo norte-americano e da Internacional Socialista. Terá ainda
ocasião de votar a Constituição de 1976, a 2 de Abril de
1976: para, bem antes de ter votado favoravelmente todas e cada uma das suas
alterações, ter, ainda na vigência do seu texto original,
liderado os mais variados ataques às conquistas políticas que
esta corporizava. Sob
Governos do PS se fará a Lei Barreto e os mais sangrentos ataques
à Reforma Agrária, entre eles a desocupação, com
dois homicídios, da UCP Bento Gonçalves, em 1979. Sob Governos do
PS se instalarão na direcção das empresas nacionalizadas
gestores vindos directamente das administrações anteriores
à nacionalização, com vista, ostensivamente, à
prática de uma gestão descredibilizadora da propriedade
pública dessas empresas. Sob Governos do PS se apelará, pela voz
de Maldonado Gonelha, à criação da UGT para «partir a
espinha à Intersindical».
Não há discussão possível sobre o antifascismo dos
supracitados. Nem discussão possível sobre o posicionamento
ideológico antipopular em que se encontram. As duas coisas, com efeito,
nada têm de incompaginável: democracia burguesa e fascismo
são duas organizações do Estado, duas superestruturas,
saídas do modo de produção capitalista. Ambos visam
consagrar, defender, reforçar, e auxiliar a exploração do
proletariado pela burguesia, municiando-a com os utensílios
ideológicos e repressivos necessários, consoante a conjuntura,
para o fazer. Quem torna aspecto central do seu posicionamento político
a defesa da democracia burguesa, sem identificar a natureza de classe dessa
forma de organização do Estado, e portanto sem pretender a
superação (inevitavelmente revolucionária) do modo de
produção do qual a democracia burguesa brota, poderá ter
desejos nobres e generosos de igualdade (jurídica), de liberdade
(jurídica), de protecção de direitos e garantias dos seus
concidadãos. Não tem, contudo, a pretensão de transformar
as relações de produção vigentes na sociedade. Em
rigor, e como se verifica, a maioria das vezes, defende-as, considerando-as a
normalidade, a ordem natural das coisas que a democracia deve proteger e
regular. E muito coerentemente, não vai encontrar especial
contradição entre a defesa da democracia e a supressão ou
mutilação dela para evitar a revolução. Essa
supressão visa repor a normalidade, será o argumento. E a
normalidade, evidentemente, sob democracia burguesa, é o poder
burguês.
Por isso, e como verificamos, tantas vezes, com maior ou menor grau de
perfídia, hipocrisia e calculismo, tantas vezes encontramos, ao longo da
história, antifascistas históricos empunhando o bastão da
repressão antipopular, derrubado o fascismo. Sempre o reencontraremos no
futuro, e não devemos espantar-nos de o vermos. Em verdade, só a
incompreensão da ordem de prioridades entre infra-estrutura e
superestrutura pode alicerçar o espanto mais vago nessa matéria.
Que esta perspectiva nunca se perca na apreciação da
política de alianças que importa ao proletariado para a sua
emancipação: a de que as alianças com forças
políticas (e portanto, com classes e fracções de classe)
empenhadas no desmantelamento do modo de produção capitalista
deve ser, sempre, anteposta à aliança com
organizações representativas das classes e sectores sociais
apostados na salvaguarda da democracia, sem discutir as relações
de produção. A possibilidade de derrotar a
revolução proletária sob a democracia burguesa é
fortíssima e está mil vezes demonstrada pela prática. A de
derrotar essa mesma revolução quando esta arremete, mesmo contra
a democracia burguesa, em nome do desmantelamento do modo de
produção capitalista tido por insuportável mesmo com as
liberdades burguesas dificilmente deixa, depois da sua passagem, os
vestígios de poder burguês que, nos exemplos citados, foram
semente da reacção vitoriosa. A lição de Lenine,
aliado dos socialistas revolucionários de esquerda contra os
mencheviques, tem muito a ensinar-nos nesta matéria.
[*]
Licenciado em História e mestre em História e Educação.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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