As armas da crítica e a crítica das armas
Os meus dias têm sido especialmente alegres ultimamente, com a retomada
de uma discussão que muito me agrada: a da necessidade de recuperar os
aspectos fundamentais do marxismo-leninismo e de combater, em nome deles, com
denodo, contra todas as formas de oportunismo. Agrada-me o tema e enche-me de
satisfação ver entre os que promovem essa discussão nomes
que aprendi a admirar, como
Miguel Urbano Rodrigues
e,
Carlos Costa
. Atrever-me a entabular seja que diálogo for com gente da craveira
intelectual e política destes dois nomes é, bem se vê, uma
insensata temeridade. Reconheço. Nunca me disseram, todavia, que a
revolução dispensava temeridades, mais ou menos insensatas. E se
eles têm por si a idade e a experiência a dar-lhes autoridade no
que dizem, eu tenho a juventude a desculpar-me o atrevimento de meter, assim, a
colherada na discussão.
Uma das questões mais mal resolvidas, historicamente, pelo movimento
revolucionário, é a da relação que lhe cumpre ter
para com o aparelho de Estado burguês. O modelo democrático
representativo cria, quando analisado superficialmente, uma ilusão em
que muito facilmente, ao longo da história, os partidos do proletariado
se deixaram cair: se a maioria dos votos significa o acesso ao Governo, e se o
proletariado constitui a esmagadora maioria da população, por
dedução, bastava que o proletariado votasse maciçamente no
seu partido e ele ascenderia, pela via eleitoral, às cadeiras do poder.
Lá chegado, entre portarias e decretos, leis ordinárias e leis
orgânicas, e uma ou outra intervenção policial nos casos em
que a burguesia se mostrasse recalcitrante, o socialismo seria legislado e
regulamentado até ao seu último detalhe, bastando ao proletariado
aguardar que ele lhe caísse no colo, vindo de um qualquer parlamento.
Pela primeiríssima vez na história, conclui-se, um modo de
produção sucederia a outro no término dos dias do
vacatio legis.
Esta leitura ingénua seria absolutamente insustentável à
luz dos clássicos do marxismo. Engels, autor da expressão
"cretinismo parlamentar" (cujo significado dispensa esclarecimentos),
qualificava o acesso ao sufrágio universal como a
demonstração de que a burguesia considerava o proletariado
suficientemente domado para poder estender a ele o direito de voto, sem temer
que ele pusesse em causa a sua dominação. E mesmo quando, nos
termos do mesmo Engels "o termómetro da luta de classes"
chegou ao ponto de ebulição e, pelo voto, um Governo popular foi
eleito, compreendeu-se com rigor o que queria dizer Marx quando se referia
à "máquina do Estado" e ao "aparelho do Estado
burguês": os órgãos repressivos do aparelho de Estado,
em ostensiva indiferença perante a vontade popular, tripudiando da lei e
da constituição (afinal de contas, nada mais que um papel
pintado), arrancaram do poder os eleitos pelo povo e, quando viram necessidade
disso, suspenderam a democracia e acabaram com a existência de
eleições. Há apenas dois dias passaram 41 anos sobre a
triste demonstração prática desta verdade, no Chile.
Lenine nunca se deixou arrastar e durante toda a vida condenou sem
restrições quem o consentiu para a armadilha do
parlamentarismo e do legalismo. Era absolutamente claro que o Estado
burguês, inteiro, dos tribunais às cadeias, dos parlamentos
à polícia, dos exércitos aos fiscais de alfândega e
aos cobradores de impostos, era uma máquina infernal de
legitimação e auxílio da exploração do
proletariado pela burguesia. Não que rejeitasse intervir dentro desse
aparelho de Estado, bem entendido: Lenine nunca rejeitaria nenhum instrumento
que interessasse ao proletariado utilizar para avançar, fosse um
quilómetro, fosse um milímetro, na luta pela
liquidação do capitalismo. Fosse um assento parlamentar, um
comité de soldados, um jornal, ou uma cátedra. A
diferença, contudo, entre a
utilização
do aparelho de Estado e a
confiança
nele, era-lhe muitíssimo clara. E a ideia de se poder usar o
aparelho de Estado burguês, após vitória eleitoral, a favor
do proletariado, ter-lhe-ia soado ridícula, se não lhe valesse as
invectivas desapiedadas que reservou para o renegado Kautsky. O Estado
burguês podia ser, conjuntural, táctica, e até cinicamente,
utilizado pelo partido do proletariado. Mas a função central
deste, a sua razão de ser, o motivo da sua existência, era a
organização do proletariado por forma que este pudesse dispor do
seu aparelho de Estado proletário, incumbido de fazer a
revolução e liquidar, nela, o aparelho de Estado burguês.
As tentações são, todavia, coisas muito fortes. E
tornaram-se tanto mais fortes quanto foram criadas condições, no
pós-guerra, que encaminhavam os partidos comunistas de determinados
países para um beco sem saída onde só lhe sobrava disputar
o Estado burguês, arrancar-lhe concessões, e tornar a luta do
proletariado
contra
ele cada vez mais difícil. Progressivamente, as
vitórias eleitorais tornaram-se o seu objectivo central, alimentadas
pela crença em que, se tinham sido arrancadas tantas concessões
até ali, a vitória eleitoral significaria o desmoronar do
capitalismo. Esta regressão ideológica foi sobremaneira acentuada
com a ascensão de Kruschev à liderança soviética e
a aplicação da tese da coexistência pacífica entre
países de sistema social diferente, devendo o socialismo conquistar
"todo o mundo, pela via eleitoral, até ao ano 2000", nas
palavras deste dirigente. Os líderes comunistas assim enredados na luta
legalista e parlamentarista descreveram, em direcção ao
eurocomunismo, o trajecto que, 50 anos antes, Lenine
verificara ser o dos social-democratas às vésperas da I Guerra Mundial
: "[o] carácter relativamente "pacífico"
do período de 1871 a 1914 alimentou o oportunismo primeiro como
estado de espírito, depois como tendência e finalmente como
grupo ou camada da burocracia operária e dos companheiros de
jornada pequeno- burgueses" (
) [u]m pequeno círculo da
burocracia operária, da aristocracia operária e de companheiros
de jornada pequeno burgueses podem receber algumas migalhas dos
grandes lucros da burguesia (
) [o] conteúdo político
do oportunismo e do social-chauvinismo é o mesmo: a
colaboração das classes, a renúncia à ditadura do
proletariado, a renúncia às acções
revolucionárias, o reconhecimento sem reservas da legalidade burguesa, a
falta de confiança no proletariado, a confiança na
burguesia". O grau de acerto das palavras utilizadas no início do
séc. XX na caracterização do ocorrido 50 anos depois tem,
com efeito, algo de assombroso.
O reposicionamento relativamente ao Estado, a recuperação da
concepção do Estado como instrumento da classe dominante para
legitimar e agilizar a exploração e opressão dos
trabalhadores, adquirido fundamental do pensamento marxista e do pensamento
leninista é, quanto a mim, o ponto essencial em torno do qual se deve
organizar a luta contra o oportunismo e contra o revisionismo. Sobretudo quando
esta confiança oportunista no Estado burguês assume
dimensão nova e tamanho inesperado, por via de projectos
"humanizadores" da União Europeia, de refundação
do projecto europeu, de recondução da UE ao seu projecto inicial
de solidariedade entre os povos (esta última uma
mistificação histórica sem nome), que têm no Partido
da Esquerda Europeia o seu principal promotor, se dissemina a cada dia que
passa. Sem a cabal recuperação deste traço fundamental do
pensamento marxista, a luta do proletariado fica indefinidamente entravada,
é conduzida por vias erróneas, e tem uma derrota
inevitável. A recuperação é, claro está, o
estabelecimento de uma estratégia e de uma táctica para combater
o Estado burguês. Porque de nada servem as armas da crítica sem a
crítica das armas.
13/Setembro/2014
[*]
Licenciado em História e mestre em História e
Educação.
O original encontra-se em
conscienciavisceral.wordpress.com/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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