Pelas ruas da amargura
por João Varela Gomes
|
«Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a
água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem
que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E,
finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os
Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas
privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a
salvação do mundo... E, já agora, privatize-se
também a puta que os pariu a todos».
José Saramago
|
Usava-se assim dizer em relação a um indivíduo ou a uma
instituição, quando o seu bom-nome, a sua
reputação, pouco valiam para a generalidade da opinião
pública. "Andar pelas ruas de amargura" significa pois, ter
perdido a consideração e a confiança da maioria dos seus
concidadãos. Qualquer um pode facilmente encaixar nessa moldura o
alegado eng. Sócrates e o seu partido alegadamente socialista. Por
muitas e sobejas razões, concordamos nós.
Com efeito, a presente situação política mostra-nos um
governo minoritário pelas ruas da amargura acossado por
todos os lados, sofrendo críticas e ataques de rara agressividade; com o
respectivo chefe a ser alvo de suspeitas e acusações que
roçam o insulto. Não só por iniciativa das
formações partidárias que constituem a maioria
parlamentar, mas também provenientes dos sectores da sociedade que
constituem as chamadas forças vivas da nação. Na verdade,
parece estarmos perante uma explosão de raiva incontida, de
tolerância esgotada. Uma espécie de desabafo colectivo dum
país à beira dum ataque de nervos. Do tipo: já não
há mais pachorra para aturar as aldrabices desse gajo, nem os
malabarismos de um partido mascarado de socialista.
Entretanto, torna-se curioso assinalar, nesta onda de alterosa vozearia contra
Sócrates & Sus Muchachos, a presença de uma numerosa chusma de
"heróicos" contra-revolucionários de 75/76 e de outros
lacaios e faxinas do liberal/imperialismo democrático, a desancarem sem
dó nem piedade os desgraçados socialistas mais o patrão do
albergue. Por suposto, não enganam ninguém.
Pessoalmente, abomino essa gente; e não os tenho poupado em
múltiplos desabafos registados em letra de forma nas últimas
três décadas. Mas o facto é que, neste momentoso
estremecimento cívico, eis-me ultrapassado pela esquerda por mansos
carneiros saídos do rebanho do sistema, disparados em fúria de
bodes com cio! Eles aí estão, falsos moralistas e justiceiros,
sentados ao redor dos painéis mediáticos, arrastando pelas ruas
da amargura o bom-nome do grande reformador do Estado e da sua equipa de
opulentos gestores. Deixá-los falá-los, que o Zé Povo
já vos topa à légua.
Com efeito, quase todos esses recém conversos foram membros dos
sucessivos governos da burguesia; ou seus serventuários e aduladores,
entusiastas adeptos do regabofe neoliberal. Amanharam-se confortavelmente.
Enriqueceram (quase todos) à custa do erário público
colaborando com um sistema injusto, que arruinou a nação e
provocou miséria e infelicidade em milhões de compatriotas. A
vossa credibilidade e autoridade ética está ferida de
incoerência e de cumplicidade. A vossa postura actual faz lembrar a dos
malfeitores manhosos, que depois de terem posto a bom recato os
benefícios acumulados, se dão ao luxo de moralizar de
cátedra. Mas não escapam ao desdém e ao motejo dos
contemporâneos.
Não admira pois, que a generalidade da opinião pública
não leve a sério a algazarra condenatória que por
aí grassa contra Sócrates & cia.. Quem tenha a certeza por
experiência adquirida em 35 anos de democracia constitucional que
a burguesada que agora atira pedras ao confrade do mesmo convento não
pretende, no essencial, qualquer mudança de rumo político; e
está pronta para continuar a exploração impiedosa da
classe trabalhadora, da venda do património, da destruição
do tecido produtivo, com o confisco do aparelho do Estado e a
sonegação dos réditos públicos em proveito
próprio, partidário e das clientelas associadas.
Afinal, verdadeiramente, é a classe política burguesa toda
ela e não só a socretina que anda pelas ruas da amargura.
A sua má reputação é pública e
notória, expressa e registada mil vezes ao dia, de Norte a Sul do
país.
Tentando salvar a honra da corporação, alegam alguns
políticos e politólogos que a causa causadora de todos os males
é o actual sistema de representação democrática
indirecta, exclusivamente através de listas partidárias
confeccionadas ao arbítrio dos dirigentes. Mesmo admitindo o argumento
teórico, e sabendo-se que ele é invocado periodicamente em todas
as democracias capitalistas há mais de um século, o facto
é que nenhum passo foi dado no sentido da correcção
sugerida. Pelo evidente motivo disso não interessar à classe
dominante burguesa; para a qual tem servido na perfeição o
sistema em vigor, designadamente na fórmula 2 em 1, isto é, o
rotativismo, a alternância entre dois partidos com diferente
cosmética mas uma mesma política. Aqui, em Portugal, país
periférico/satélite, pensar que a classe política burguesa
é capaz, ou tem vontade, de reformar o sistema, até dá
vontade de escarnecer. Pois se eles estão todos em rede de interesses de
usufrutuários do Estado!
Tal como sucede obviamente com os políticos/representantes
da burguesia em todos os países do mundo capitalista globalizado;
incluindo e de que maneira! a nação imperial americana,
celebrada primeira democracia do mundo moderno. No entanto, nós
portugueses, estamos vivendo uma II República Democrática,
suposta (formalmente) filha da revolução de 25 d'Abril 74; mas
que, na realidade, é ilegítima progénita da
contra-revolução de Novembro 75. Ou seja, o regime
democrático vigente nasceu no "pecado" da
traição aos ideais de libertação e esperança
anunciados por Abril e ficou na posse dos seus inimigos,
contra-revolucionários restauracionistas/filofascistas, e de
carreiristas/oportunistas, ou mesmo de meros vigaristas. Esta é a
singularidade negativa da lusa democracia.
Isso lá vai, lá vai, dizem os cotas e os jotas, para quem a
história só conta a que lhes fica à frente... e assim
só lhe vêem o traseiro. Olhe que não, olhe que o estigma do
nascimento maldito da actual democracia portuguesa é indelével,
faz-lhe parte do ADN, é uma desforra inesgotável em
ganância, privilégios e abusos, ódio que não cansa
aos trabalhadores, às classes populares, o servilismo perante os
poderosos e a crueldade para com os mais humildes e desprotegidos.
Assim tem sido desde o primeiro governo constitucional de Mário Soares
(1976); assim continua, de momento, com outro socialista procurando impor um
novo programa desforrista e anti-popular, na verdade idêntico ao de todos
os outros governos anteriores da alternância burguesa. A alegada crise
económica apenas está servindo para reforçar o poder do
capital e os privilégios da burguesia endinheirada, para privatizar
sectores vitais da economia nacional e da administração
pública; e, em simultâneo, arrastar a população
trabalhadora neste caso, literalmente sem metáfora
"pelas ruas da amargura" do desemprego e do desespero.
De forma admirável, José Saramago em «Cadernos de Lanzarote
Diário III», pág. 148, dá voz à raiva
que enche o peito do Povo de Portugal em relação à
governança burguesa e seus políticos serventuários. O seu
magnífico poema de escárnio circula pela Internet. Mas não
resisto a transcrevê-lo:
«Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a
água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem
que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E,
finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os
Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas
privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a
salvação do mundo... E, já agora, privatize-se
também a puta que os pariu a todos».
25/Março/2010
O original encontra-se em
http://www.alentejopopular.pt/pagina.asp?id=4133
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|