Pátria, lugar de exílio
por César Príncipe
Exilado na internet, dedico este texto aos que defendem a
comunicação como veículo intermodal, transportador de
memória multifocada, informação contrastada e
crítica estruturada. Creio que os leitores compartem este
sentimento de vazio
e desinserção no contexto mediático. Sentimento que
não é sinónimo de queixume, antes
constatação da natureza de classe das empresas de
informação, opinião e lazer. O capitalismo lançou
uma operação de saque global e os jornais, as rádios e as
televisões constituem unidades de cobertura. Portanto, quem se
opõe ao sistema é irradiado ou reduzido a figura de convite.
Não ignoramos as leis do confronto, a vocação selectiva e
repressiva das instituições, o ânimo insaciável do
neoliberalismo. Compete-nos surpreender o manifesto e o inconfessado da ordem
cleptocrática. Viver
exilado
tem sido uma das fracturas e uma das facturas da nossa identidade, um dos
défices de habitabilidade da
pátria de Camões,
ele, por mais que se retoque a iconografia e se agendem
evocações solenes, pungente retrato da pátria incomum:
deserdado e rec(luso), elevado a
poeta oficial.
Numerosos titulares das letras, das artes e das ciências legaram,
além da sua obra, a sua cólera e a sua melancolia. Para
além de Daniel Filipe,
[1]
Paula Rego
[2]
, evocaremos mais duas vozes do exílio externo e do exílio
interno: Almeida Garrett,
[3]
no séc. XIX; Egas Moniz,
[4]
no séc. XX. Mas a exclusão não atingiu nem atinge apenas
a
intelligentzia.
Nem somente as lideranças da dignidade nacional e do progresso
colectivo. Milhões de portugueses foram e continuam a ser desapossados
de direitos fundamentais, tratados como párias e apátridas.
Portugal é uma multissecular praça de silenciamentos e
ostracismos. A segregação cobre uma vasta gama de preceitos e
preconceitos. Transcende o estigma racial, o confinamento territorial, o
nobiliário de sangue, a soberba etnocêntrica, a sobranceria
egocêntrica. Os detentores da riqueza e dos instrumentos de
coacção só toleram o
outro
quando fortemente acossados e enquanto não consertam as fendas das
muralhas e não absorvem ou isolam os processos de mudança.
Ilusão do
todo
As classes parasitárias e obscurantistas jamais se movem por impulsos de
fraternidade e liberdade ou pelo badalado
todo nacional.
Na mistificação fascista, o
todo
era um chavão mitogeográfico (incluía Portugal do Minho a
Timor). Não considerava nem poderia abarcar
todo
o espectro cívico,
todo
o mosaico populacional. O segmento monopolista, latifundista, financista e
colonialista era o sector favorito, beneficiário do escudo protector do
Estado. A maioria dos portugueses vivia extremamente condicionada. As
forças nacionais e internacionais que provocam tal
desvalorização e marginalização de activos
culturais e sociais só brandamente pagam as suas dívidas de
opressão e sangue. Durante a revolução de Abril
(1974-1975) coube às elites da ditadura experimentar o assédio
popular. Contudo, o poder emergente consentiu que as figuras de topo ficassem a
salvo. Embarcaram para o triângulo do
exílio dourado
: Lisboa-Funchal-Rio de Janeiro. Todas as formas de governação
definem uma pauta de apaniguados e desafectos. De longe a longe, cabe à
classe alta descer ao rés-do-chão da História, ferir os
tímpanos com o vozear do
poboo
[5]
e preparar as
malas de cartão,
melhor dizendo, Louis Vuitton.
Bom aluno
euro-americano
Deter-nos-emos, agora, na comunicação anti-social. Os carros de
combate mediáticos existem para cobrir as forças que os sustentam
e desarmar ou exacerbar a conflitualidade (conforme a carteira de encomendas),
seja através de operações de descrédito da
contestação e do desvio de atenções para alvos
falsos ou secundários; seja pelas campanhas intimidatórias,
incriminatórias, manipulatórias e censórias, dramatizando
o reportado ou relegando-o para a não-existência. Objectivo
último: afastar o
grande público
das correntes de contraprojecto e contra-análise, a fim de que as
minorias não evoluam para maiorias; limitar os efeitos do
anticânone no tecido psicossocial; manter de pé a pirâmide
dos interesses. Os jornais, as rádios e as televisões (nas
mãos de grupos multimédia, ancorados à finança e
balizados pelo consenso rotativista) são
chiens de garde
dos senhores de turno. Ostentam os guiões do patronato que mais ordena
e da agiotagem que mais conta, fornecem argumentário para a
resig(nação) e a capitulação. Na emergência,
a pátria deles é a patroika, instância de ocupantes e
colaboracionistas, da Comandita das Três Siglas e do Clube dos
Miguéis de Vasconcelos.
Bom aluno
euro-americano, o complexo mediático abraça a doutrina do
alinhamento e da circularidade e da capsulagem do adverso. Para iludir a
questão informativa e opinativa, multiplica os apresentadores da
normalidade e aparentadores de diversidade e selecciona trupes de maldizer de
superfície. A gramática reaccionária tomou conta de
páginas e antenas. A vulgata política e a publicidade comercial
confundem-se. Morfologicamente. Ideologicamente. Programaticamente. Vender,
vender: mercadorias do ilusório. Formar, formar: opções do
tolerado. Fabricar, fabricar: barreiras do cerco. Físicas e mentais.
Prato único
A culinária mediática
aplica a receita
come-em-casa. Socorre-se de enchidos regionais e entalados
made in.
Os
shows
de bidé e concursos de ralé complementam jornais e telejornais.
Representam uma
fatia generosa
do menu. Apostados na baixeza dos
produtos
e infantilização dos
públicos,
os
criativos
têm vindo a tabloidizar toda a página impressa e toda a grelha
audiovisual. A estilística expõe a natureza dos pratos do dia e
da noite. Apesar dos enfeites de mesa, as entradas e as sobremesas não
conseguem anular o sabor a
prato único.
Não será por casualidade que, apartado o lixo institucional e
privado (que também abunda no carrossel virtual), numerosos
ciber-materiais superam em redacção e
especialização o jornalismo corporativo. A qualidade
temática e a pertinência vocabular foram, em grande medida,
desalojadas da comunicação oficiosa. Prolifera a vassalagem de
alterne e impera a ignorância hiperactiva. A generalidade da
competência e da decência foi posta na
prateleira
ou na
solitária.
Sobeja alguma excelência enquadrada, monitorizada, aperreada. Por
vezes, tolerada como engodo para impingir o resto do cardápio.
Salazar regurgita
Falemos de vómito. Na ditadura, Paula Rego pintou
Salazar vomitando a Pátria.
No presente quadro, sentimos
vontade de vomitar
os restos ou as regurgitações do salazarismo e dos Novos
Secretariados da Propaganda. Ler, ver e ouvir o mesmo ou o idêntico
começa a causar um
fastio de morte,
estilo
nausée
sartreana,
mal du pays.
Estão a tornar-se impróprios para alimento humano os
noticiários e os comentários padronizados, os entretenimentos
primários, os atentados à Pátria de Pessoa. Os
chefs
desta ementa são recrutados pelo
bureau
económico-político. Compete-lhes manter a
pax
mediática. Há que reconhecer: têm tido êxito a
fabricar dependentes do rendimento cultural mínimo e do rendimento
eleitoral máximo. No entanto, até entre os fidelizados, corre uma
percepção de enfado:
dizem sempre o mesmo, dão sempre a mesma coisa.
As manifestações de enjoo são idênticas às
dirigidas aos parceiros do poder central:
são todos iguais.
Daí até o grosso dos consumidores se consciencializar da sua
condição (antropológica, histórica, social,
classista) vai uma persistente didáctica. Que dificilmente se
ministrará sem uma ruptura de modelo.
Todas as armas
Não dispõe este exilado de meios para constitucionalizar as
indústrias de mensagens, cada vez menos distinguíveis das
indústrias de massagens. A viragem programática pressupõe
uma outra agenda de valores e um suporte material compatível. Apesar da
desproporção de meios, cumpre-nos rebater os centros comerciais
mediáticos, ampliando a oferta democrática, introduzindo novas
cores na paleta sistémica. Os administradores da
informação e do entretenimento não alteram a agulha sem
entrar em campo um agente histórico empenhado noutros conteúdos,
noutras linguagens, noutras embalagens. Para tal, há que reactivar e
renovar o formulário de resistência e alternativa. Teremos de
optimizar os recursos da
guerra popular prolongada: maquis
electrónico, imprensa de trincheira e da linha da frente, editoriais de
rua, editoras de nicho, faixas de desfile, folhas volantes, panfletos
esvoaçantes, caixas do correio, debates de tertúlia,
agitações de assembleia, bandas de megafones, tempos de antena, o
que mais a imaginação discorrer, a situação
sugerir, a tesouraria consentir. Há que deitar mão a todas as
armas. A ironia, por exemplo, não requer grande taxa de esforço
patriótico. Procuremos sensibilizar algumas entidades escrutinadoras,
reguladoras, fiscalizadoras. Para acudir à Pátria, abarrotada de
exilados e carecida de
alimentação saudável,
o Barómetro Marktest poderia medir os indicadores de
repugnância, enriquecendo as teses de doutoramento e os congressos de
nutricionismo; a ERC deveria enviar, com carácter de urgência,
amostras de víveres ao Instituto Ricardo Jorge; a ASAE deveria entrar de
rompante nas empresas de artigos contrafeitos, muitos fora de prazo, talvez do
tempo da outra senhora.
O denunciado é mais pernicioso do que a venda de cavalo por vaca e
peixe-caracol por bacalhau.
EUA/UE
Como curar o
mal du pays?
Haverá alguma estância para doenças
hepatomediáticas? Onde procurar a verdade dos manuais? Junto de Assange,
Manning e Snowden, derradeiros jornalistas de investigação do
auto-intitulado
Mundo Livre
? Subsistirá algum recanto seguro para os mensageiros audazes e
honrados? EUA e UE são centrais de géneros avariados, de
informação
subprime.
Basta folhear um
newspaper
ou sintonizar os satélites: teremos de andar com potentes lupas,
radares e projectores em busca da objectividade prometida e da pluralidade
perdida. Pouco haverá a esperar dos maiores fabricantes e distribuidores
de lixo celulósico e hertziano. Mesmo que disfarcem com tecnologias de
ponta e cantilenas de
rights and liberties
os seus programas de liquidação de conquistas civilizacionais e
de redução de cabeças.
[6]
De maneira que urge recolocar a eterna questão:
Que fazer?
[7]
Eis o testemunho de um ex-aquartelado, actual infoguerrilheiro.
Para que conste.
Na rede.
1. Pátria, Lugar de Exílio
, Daniel Filipe (1925 - 1964). Edição do Autor, sobrecapa de Pilo
da Silva, 1963, Lisboa. Despacho da Direcção-Geral da
Informação:
Trata-se de uma colectânea de poemas do género
"revolucionário", escritos em 1962, que pretendem ser um grito
contra a opressão em que se vive no País, sob o medo das balas e
dos carrascos.
(23/03/1972). Proibição de circular: ordem nº 100 - DGI -
GE (27/03/1972). Interessante o auto de denúncia transformado em
autodenúncia e a sanha persecutória nove anos após a
saída do livro. Na verdade, achava-se esgotado. O inquisidor não
deixava contudo de fazer doutrina expurgatória. A segunda
edição apenas viria à luz depois da
Revolução de Abril: Editorial Presença, 1977, Lisboa.
2. Paula Rego,
Salazar a vomitar a Pátria
, óleo s/ tela (94 x 120 cm), 1960, Col. Fundação Calouste
Gulbenkian.
3. Almeida Garrett (1799-1854). Escritor, pedagogo, diplomata, lutador de pena
e armas na mão. Exilado em Londres e Paris por diversas vezes, entre
1823 e 1931. Viveu períodos de clandestinidade. Participou no
Desembarque do Mindelo com as tropas liberais e no levantamento do Cerco do
Porto (1832-1833).
4. Egas Moniz (1874-1955). É-lhe atribuído o desabafo:
Vivo exilado na minha pátria.
Investigador, neurocirurgião, republicano. Em 1945, foi galardoado com
o Prémio de Oslo, graças à descoberta da
Angiografia cerebral
(1932); em 1949, recebeu o Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina como
reconhecimento pela
Leucotomia pré-frontal
(1935). Nos meios oposicionistas correu durante muitos anos o remoque de
Salazar ao saber que Egas Moniz fora laureado:
Então já temos um Meio Prémio Nobel!
O certo é que a Imprensa, uma alinhada, outra amordaçada,
exceptuando o jornal
República,
foi parca em notícias e vibrações. O ditador quis
achincalhá-lo, sob o pretexto de haver partilhado o Nobel com o
suíço Walter Hess (1881-1973). Critério recorrente nos
domínios da medicina, física, química, paz. A alergia do
homo santacombensis
pelos avanços científicos (práticos e conceptuais) de
Egas Moniz já havia sido patente no arrumo do livro
A vida sexual (fisiologia e patologia)
na lista negra, apesar de ser uma versão da tese de doutoramento e das
provas de concurso para professor universitário. A primeira
edição da
Fisiologia
é de 1901, a da
Patologia
é de 1902, com chancela da França Machado-Editora, Coimbra.
Sucederam-se 20 edições até 1933. A Livraria Ferreira, da
capital, fez sair dezenas de milhares de exemplares. Até que o regime de
Deus, Pátria e Família
diabolizou a obra. Os editores desinteressaram-se do
best-seller.
Ventura Landesma Abrantes (1883-1956), amigo de Egas Moniz, que fazia pontes
com membros do Governo, conceituado agente cultural (fundador da Oliventina, da
Casa Editora Ventura Abrantes, da Feira do Livro de Lisboa (1931),
representante português nas exposições livreiras de
Sevilha, Barcelona e Florença), voltaria a dar à luz o tratado
científico. A ditadura passou a tolerar
A Vida Sexual
, com a devida prudência:
mediante receita médica.
5. Poboo meudo, arraia meuda
. Caracterização medieval das camadas desfavorecidas.
Alusão a levantamentos populares. Fernão Lopes (1380-1460):
Crónica de D. Pedro I, Crónica de D. João I.
6. O Der Spiegel descreveu a administração Obama como
"totalitarismo soft"
. (
The Guardian
, John Pilger, 04/07/2013).
7. Que fazer?,
Vladimir Ilitch Lénine (1870-1924). Primeira edição em
russo: Editorial Dietz, 1902, Estugarda. Obra divulgada no Ocidente sobretudo
através das Éditions en Langues Etrangéres, 1941-1954,
Éditions du Progrès, 1962, Moscovo, Éditions du Soleil,
1966, Paris. Em Portugal,
Que fazer?
integrou as
Obras Escolhidas
, tomo I, Editorial Avante!, 1977, Lisboa. No Brasil, há a
edição Hucitec, 1988, São Paulo.
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