Para que não se percam os frutos da civilização
I
Escolhi como título desta intervenção a frase "Para
que não se percam os frutos da civilização" que
é parte de um parágrafo de uma conhecida carta de Karl Marx a
Pavel Annenkov (de 1846) em que Marx dá a sua opinião acerca de
Proudhon, antes ainda de ter escrito a
Miséria da Filosofia.
O parágrafo inteiro diz o seguinte:
"Os homens nunca renunciam ao que ganharam, mas isso não quer dizer
que não renunciem à forma social em que adquiriram certas
forças produtivas. Muito pelo contrário. Para não serem
privados do resultado obtido, para não perderem os frutos da
civilização, os homens são forçados a mudar todas
as suas formas sociais tradicionais, a partir do momento em que o modo do seu
comércio já não corresponde às forças
produtivas adquiridas."
[1]
("Comércio" no sentido lato de relação,
transacção)
Esta afirmação da necessidade histórica das
revoluções sociais é acompanhada de uma crítica
impiedosa ao desejo de Proudhon de conciliar as contradições do
sistema capitalista em vez de pensar "no derrube da própria base
dessas contradições". E Marx comparava essa tentativa de
conciliação ao que sucedera nas vésperas da
revolução francesa de 1789, afirmando os seguinte:
"No século XVIII uma multidão de cabeças
medíocres estava ocupada em encontrar a verdadeira fórmula para
equilibrar as ordens sociais, a nobreza, o rei, os parlamentos, etc., e no dia
seguinte já não havia rei, nem parlamento, nem nobreza. O justo
equilíbrio entre esse antagonismo (conclui Marx) era o derrube de todas
as relações sociais, que serviam de base a essas existência
feudais e ao antagonismo dessas existências feudais."
[2]
Marx mostra aqui como são inúteis as tentativas de conciliar os
termos irredutíveis das contradições sociais quando elas
chegam ao seu ponto culminante isto é, quando as sociedades se
abeiram do seu termo histórico.
A ideia que trago a este debate é a de que a actual crise capitalista
é uma radiografia do estado terminal a que chegou a
civilização burguesa. De que não estamos a passar apenas
por mais um ponto baixo de mais um ciclo do processo produtivo, mas estamos a
viver a falência do sistema produtivo capitalista que chegou a um limite,
que entrou na sua fase senil.
Com isso está em causa todo o edifício social que assenta nesse
sistema produtivo. As contradições em que o capitalismo
está enredado não podem ser resolvidas dentro dele
próprio; só uma revolução social o pode fazer da
única maneira viável: pondo fim às relações
sociais capitalistas.
Consequentemente, a acção do comunismo marxista, tem de ser
guiada por este propósito se quiser ter um papel na
transformação social que está em gestação.
Passo aos argumentos.
II
O discurso dominante sobre a crise procura encerrar o problema numa
espécie de círculo de giz "económico". É
a tentativa de absolver o sistema social capitalista. Na verdade, o que
está em causa não é a "economia" (que é
uma coisa que em si não existe), mas a economia capitalista; e a crise
não é dos negócios, mas de uma civilização
inteira.
Mas esta restrição da crise ao "económico"
domina. E domina de tal modo que penetrou, ainda que sob formas modificadas, o
senso comum e mesmo a esquerda.
O círculo de giz funciona.
Funciona, por exemplo, quando se trata o neoliberalismo como uma deriva mental
duma fracção da burguesia responsável pela deriva material
do sistema, aceitando a ingenuidade de pensar que uma qualquer ideologia possa
alterar as leis de funcionamento do capitalismo;
Ou quando se atribui à globalização e à
financeirização do capital a origem da presente crise mundial, em
vez de ver nelas recursos a que o sistema deitou mão para atenuar e
adiar a crise;
Ou ainda quando se cai na ilusão de que existem medidas políticas
(nomeadamente medidas de política económica) que podem solucionar
os problemas sem tocar no quadro do próprio sistema capitalista,
esquecendo que os problemas existem e avolumam-se precisamente porque esse
quadro se vai mantendo.
Creio estar aqui boa parte da razão pela qual o movimento
revolucionário pelo socialismo não dá sinais de crescer,
apesar da decadência do capitalismo. É este a meu ver o nó
da situação: um movimento revolucionário bloqueado no meio
de uma crise geral do sistema capitalista.
III
Se não é uma crise de negócios, nem uma simples deriva
ideológica então o que é a presente crise?
As correntes marxistas que me parece terem uma posição mais clara
sobre o assunto chamam a atenção para o facto de as raízes
do colapso financeiro de 2007-2008 remontarem aos anos de 1970. De facto,
depois do crescimento impetuoso subsequente à segunda grande guerra, o
ritmo de acumulação do capitalismo dos grandes centros mundiais
foi sofrendo uma desaceleração. Com altos e baixos,
mantém-se há perto de 40 anos com reduzidas taxas de
acumulação. O estoiro de 2007-2008 (iniciado no
coração do capitalismo mundial, é de notar) terá
sido o desembocar deste longo processo. E este último trambolhão
arrasta agora mesmo os novos centros de acumulação que entretanto
se afirmavam a China, a Índia, o Brasil cujas taxas de
crescimento sofreram quebras importantes.
Todo o sistema capitalista mundial está portanto em quebra,
contrariamente à ideia de que se assiste apenas a uma
transferência de poderes.
Quarenta anos de crise é coisa que parece contrariar a própria
ideia de crise que, na acepção de Marx, é um momento, mais
ou menos curto, de acerto de contas entre o excesso de produção e
a escassez do mercado. Engels todavia fornece uma pista importante em dois
momentos. Numa nota de 1885 à
Miséria da Filosofia
aponta a possibilidade de "a estagnação crónica
[passar a ser] o estado normal da indústria moderna, apenas com ligeiras
oscilações"
[3]
. Também numa nota (talvez de 1886, segundo Maximilien Rubel) ao Livro
III de
O Capital
, Engels insiste na possibilidade de os ciclos regulares (até
então mais ou menos decenais) terem dado lugar a uma
situação caracterizada por "uma alternância mais
crónica, mais alongada, a uma melhoria relativamente breve e fraca dos
negócios e a uma depressão relativamente longa e indecisa
atingindo vários países industriais em momentos diferentes."
[4]
Parece ser este o caso de hoje, com a agravante de o marasmo atingir o grosso
dos países capitalistas ao mesmo tempo. Onde está a origem deste
declínio arrastado?
Ao que tudo indica, num factor que acompanha e condiciona o processo de
crescimento capitalista: a queda da taxa de lucro.
Socorro-me de três estudos, que me parecem dignos de nota, que chamam a
atenção para a queda efectiva da taxa de lucro do capital, fruto
precisamente, como Marx bem vincou, do progresso capitalista.
O francês Claude Bitot, em 1995, mostra que a taxa de lucro nos 25
países da OCDE foi decaindo à medida do desenvolvimento posterior
à segunda grande guerra
[5]
.
Outro francês, Tom Thomas, vinca o carácter crónico da
actual crise, pegando na hipótese colocada por Marx de uma
sobreprodução absoluta de capital
[6]
.
Recentemente, em 2011, o norte-americano Andrew Kliman constata também a
queda da taxa de lucro nos EUA ("um longo declínio iniciado na
segunda metade dos anos 50"). Segundo ele, terá sido essa a causa
que foi puxando para baixo os ritmos de crescimento e que tornou débeis
as recuperações subsequentes à grande crise dos anos de
1970 e às várias crises dos anos 80 e 90 acabando por
fazer a cama ao colapso de 2007-2008
[7]
.
A importância que vejo neste ponto de vista é que ele coloca a
tónica não em supostas derivas ideológicas (neoliberal ou
outra), nem na hipertrofia financeira do capital
mas no bloqueio da própria produção capitalista.
Numa situação em que o capitalismo vê declinar a sua
força motriz, que é o lucro, todo o sistema social esgota o seu
papel histórico, tornando-se então "um obstáculo ao
desenvolvimento da produtividade". "Com isso", diz Engels, [o
capitalismo] "prova, simplesmente, uma vez mais, que entra no seu
período senil e que, cada vez mais, se limita a sobreviver".
[8]
IV
Portanto bloqueio da acumulação, fase senil.
Sabemos que o capital ao reproduzir-se reproduz também as
relações sociais que lhe são próprias. Ora, a
crescente dificuldade de reprodução do capital traduz-se numa
dificuldade crescente de reprodução das relações
sociais daí a decomposição das
instituições (nomeadamente do Estado), o esvaziamento da
democracia, o abandono do estandarte do progresso, o apagamento das grandes
crenças burguesas (nação, pátria, família,
deus).
A civilização burguesa terá então entrado numa
etapa final. É isso que transparece na própria maneira como a
burguesia fala do seu regime. A ideologia do progresso contínuo, da
prosperidade, que foi desde sempre a marca do positivismo burguês, da
superioridade sobre as formações sociais atrasadas,
transfigurou-se num discurso de justificação do retrocesso:
não mais emprego garantido, não mais melhoria de vida de pais
para filhos, não mais consumo livre, não mais lazer, não
mais saúde e instrução para todos, não mais nada
disso.
Visto no seu sentido de fundo este é um discurso que denuncia a
incapacidade das classes dominantes para convencerem as classes dominadas da
superioridade do seu sistema; denuncia a incapacidade de uma
civilização para
mobilizar o todo social em torno dos seus objectivos de classe.
Uma sociedade que já só assegura (não apenas nos factos
mas também pela voz dos seus mentores) um amanhã pior que o dia
de hoje e que afirma só poder subsistir nessa
condição! é uma sociedade que caminha para o fim.
Podia dizer-se uma sociedade já sem apresentação...
Em termos históricos não há portanto remendos
possíveis e isso está de resto patente na
ineficácia das tentativas, tanto do capitalismo puro e duro como do
reformismo, de colmatar as brechas do edifício.
V
Dito isto, então a verdadeira causa da nossa época é
pôr termo ao capitalismo.
Certo. Mas a revolução social não está de modo
nenhum ao virar da esquina. Como disse antes, o movimento comunista está
bloqueado no meio da crise do sistema capitalista.
É difícil encontrar uma explicação completa para
este facto, mas não erro se disser que concorrem para isso:
as enormes mutações sociais no proletariado mundial pelo menos
desde 1970-80;
a dissolução ideológica que o marxismo
revolucionário sofreu no século XX, acompanhando o longo estertor
da revolução soviética;
e, no presente, a ausência de um claro ataque político às
bases do sistema capitalista (porque, como disse Marx, é a
própria base das contradições que deve ser derrubada).
Este estado de coisas, no entanto, não está congelado. Há
sinais de mudança, embora a prazo que não se pode medir.
Centro-me nas mudanças de natureza social dos últimos 30-40.
Até 1970 a classe operária produtora de mais valia cresceu nos
principais países capitalistas
[9]
.
Nas décadas seguintes foi decaindo nesses países. Mas à
escala global o seu número aumentou em termos absolutos devido aos
crescimentos enormes verificados no Terceiro Mundo. Deu-se portanto uma
proletarização maciça nos países periféricos
e um aumento em valor absoluto do proletariado mundial. Isto quanto ao
número.
Também a partir de meados dos anos de 1970, o desemprego cresceu muito
nos países mais desenvolvidos, colocando fora da produção
milhões de trabalhadores
[10]
.
Ao mesmo tempo, sobretudo nos anos mais recentes, uma grande parte, e uma parte
crescente, dos desempregados passaram a ser desempregados permanentes ou
como precários ou mesmo como excluídos do sistema do salariato.
Em qualquer caso, é de notar que esta desagregação do
proletariado se faz por rebaixamento de uma parte dos trabalhadores à
condição de um sub-proletariado ou mesmo de um
lumpen-proletariado não por aburguesamento ou ascensão
social.
Esta evolução traduz, de forma gritante, o processo de
substituição do trabalho vivo por trabalho morto que acompanha a
acumulação capitalista
[11]
.
E o que fica demonstrado não é a impossibilidade da
revolução social, mas a inutilidade histórica do
capitalismo da nossa época que se tornou incapaz de transformar o
progresso material em benefício social.
Apesar, portanto, da complexidade desta evolução social e dos
solavancos por que passa, uma coisa é certa: o processo vai na
direcção de ampliar enormemente as classes proletárias, na
acepção de classes despojadas de qualquer meio de
produção. Mais ainda, como grande parte dessa massa não
tem ocupação no quadro da produção capitalista
e é mesmo, em boa parte, impedida pelo sistema de ter uma
ocupação útil os factores de explosão social
crescem também em proporção. Os motins de Londres ou
Paris, ou as revoltas árabes são disso exemplos.
Em resumo: não será por falta de actores que a
revolução social deixará de se fazer.
VI
Mas há ainda um outro argumento, que tem a ver com uma camada social
particular: as chamadas classes médias.
As sociedades capitalistas mais desenvolvidas caracterizam-se, pelo menos desde
os começos do século XX, por gerarem
uma vasta camada social, na maioria assalariada, situada, pela sua
condição de vida, entre o operariado e a burguesia.
A sua função, em termos gerais, é enquadrar a
produção, intervir na circulação do capital e
proporcionar a realização da mais valia.
Essa camada social é um sinal distintivo das sociedades imperialistas,
como Lenine, por exemplo, bem vincou.
Olhando para os últimos 50 ou mesmo 100 anos, um dos seus principais
papéis tem sido o de assegurar a estabilidade social e política
dos regimes capitalistas desenvolvidos. Aliadas naturais da burguesia, essas
camadas garantiram o balancé que tem sido a sucessão de
republicanos e democratas nos EUA, de trabalhistas e conservadores no Reino
Unido, de social-democratas e democratas-cristãos na Alemanha, dos
equivalentes no Japão, em França e na Itália e
até de PS e PSD em Portugal nos últimos 38 anos.
Todo o mundo mais desenvolvido tem tido nessas camadas o fiel de balança
no que respeita a manter o poder do capital sem agitações,
servindo de barreira a qualquer movimento com cariz de classe da parte do
proletariado.
Mas como os tempos mudam, interessa notar o seguinte:
Mais ou menos até final do século XX o crescimento do sector
terciário absorveu em parte os despedimentos da indústria. Esse
facto, além de diminuir o impacto do desemprego, manteve entre os
trabalhadores a crença de que o capitalismo sempre assegurava as
hipóteses de ascensão social
[12]
.
As classes médias, porém, entraram em retrocesso. Por um lado,
porque também nos serviços a rentabilidade do trabalho aumentou e
permite dispensar mão-de-obra; por outro lado, porque o pântano da
produção capitalista obriga agora a burguesia a penalizar mesmo
os seus parentes próximos.
Depois de ter levado a massa proletária produtiva à pobreza ou
à beira disso e de a castigar por todas as formas a maré
da crise não parou de subir e molha já os pés das classes
intermédias. O significado deste facto parece-me importante:
o ascensor social empanou;
a burguesia capitalista aliena o apoio social e político do seu
principal aliado;
o confronto de classes clarifica-se, aproximando as sociedades capitalistas
do modelo (digamos assim) canónico de duas classes antagónicas:
burguesia, proletariado.
A choradeira oficial sobre o empobrecimento da classe média é
apenas uma forma de comiseração do poder, um gesto para tentar
ainda segurar esse parceiro histórico. Mas a tendência de
proletarização dessas classes parece irreversível, dando
mais um sinal do fim de uma época.
Do ponto de vista do comunismo só há que saudar essa
clarificação.
(Faço um parêntese para dizer que esta evolução
não se traduz, nem de imediato nem necessariamente, num posicionamento
anticapitalista dessas camadas pelo contrário, o primeiro reflexo
de boa parte delas será o de defenderem os privilégios
anteriores, de aderirem a ideologias nacionalistas e mesmo fascistas, de se
demarcarem da massa proletária, reagindo como uma espécie de
aristocracia falida. Mas isso não anula o facto de, a prazo, a burguesia
capitalista ir ficando mais só no terreiro dependendo o
comportamento político das classes médias do papel que a massa
proletária propriamente dita desempenhar no confronto de classes.)
VII
Último argumento.
Arrisco afirmar que a ideia axial que percorre a obra de Karl Marx é a
de que o capitalismo é perecível, não é eterno
que é uma formação social com um papel
histórico limitado e portanto também com um tempo de vida
determinado. O papel histórico é socializar o trabalho, libertar
os produtores da propriedade enfim, "fazer crescer sem freio e em
progressão geométrica a produtividade do trabalho humano".
É fácil ver na evolução do último
século a larguíssima socialização do trabalho, a
extensíssima abolição da propriedade individual em todo o
globo e o aumento colossal da produtividade do trabalho. Isso, sem
dúvida, aproximou a humanidade do socialismo, colocando-nos hoje muito
adiante daquilo que era o mundo, por exemplo, em 1917.
O que já não é tão fácil é prever o
tempo de vida do capitalismo, porque isso não depende apenas do
descalabro do sistema; depende decisivamente, das forças sociais que se
decidam a pôr-lhe termo.
Mas o desenrolar da crise tem o condão de ajudar a rasgar os véus
com que a sociedade burguesa se recobre e de pôr à vista a
natureza da sua dominação classista.
O que é que a crise põe à vista?
Põe à vista o Estado, não como árbitro dos
conflitos sociais, ou como expressão de um suposto interesse colectivo,
nacional mas como instrumento de uma classe;
Mostra a democracia, na realidade, como uma plutocracia de que as massas
populares estão inteiramente arredadas; como uma ditadura da burguesia
que assume feições cada vez mais totalitárias;
Mostra a classe capitalista, toda ela, com um único plano para aliviar a
crise que consiste em explorar mais eficazmente as classes trabalhadoras;
Mostra que a condição de uma eventual recuperação
económica é a destruição de meios de
produção, seja pela gradual desvalorização do
capital, seja pela violência da guerra;
Mostra em plena acção a lei geral da acumulação
capitalista, visível na criação de uma massa crescente de
desempregados e de marginalizados e no aumento da pobreza;
Mostra que o tempo ganho pela sociedade graças ao aumento da
produtividade não se traduz em menos tempo de trabalho
obrigatório, mas sim na irracionalidade de mais desemprego e maior grau
de extorsão dos trabalhadores em actividade;
Mostra ainda a acção concertada das burguesias por cima dos
limites nacionais, mostra a semelhança dos problemas sofridos pelas
massas trabalhadoras dos diferentes países e mostra portanto a
falta que faz, da banda dos proletários, um internacionalismo que
vá para lá da mera solidariedade moral e se traduza numa efectiva
coordenação prática das acções de
resistência.
O esclarecimento e a mobilização das massas proletárias
não podem passar ao lado destes factos. Eles são os elementos
educativos por excelência que a realidade prática nos fornece para
mostrar o limite a que chegou este sistema social e o absurdo que é
prolongar o seu tempo de vida.
De resto, se bem percebo o sentimento que os trabalhadores têm a respeito
do mundo em que vivem, não é a confiança no capitalismo
que os leva a aceitá-lo é antes a noção
resignada de que não há alternativa viável que o
substitua, e sobretudo de que não há força que o possa
deitar abaixo.
Ora, na linha do marxismo revolucionário, a tarefa não é
reabilitar ou remendar o capitalismo, mas desacreditá-lo aos olhos do
proletariado.
Atacar as bases do mundo capitalista não é, sobretudo nas
circunstâncias actuais, uma ideia desgarrada da realidade quotidiana. Ao
contrário, é a condição de estimular e reunir as
forças de classe dos trabalhadores e de os levar a encarar a necessidade
de construir um mundo conduzido por regras opostas às do mundo
capitalista.
Que o burguês não veja a crise para além do défice,
da dívida, da quebra do lucro, da falta de crédito e dos
remédios correspondentes para esse tipo de males está
certo. Mas que os proletários vejam as coisas pelo mesmo prisma
está errado.
O proletariado já teve de fazer muitos sacrifícios por causas
alheias. Chegou a altura de afirmar a sua própria causa.
Propor ao proletariado a saída do círculo de giz do capitalismo
é esse, a meu ver, o papel do comunismo marxista.
Notas
(1) Carta de Karl Marx a Pavel V. Annenkov, Marx-Engels Obras Escolhidas, Tomo
I, p. 546. Edições "Avante!", Lisboa
Edições Progresso, Moscovo, 1982.
(2) Idem, p. 553.
(3) Karl Marx,
Miséria da Filosofia
. Prefácio de F. Engels à 1.ª edição
alemã, p. 20. Edições "Avante!". Lisboa, 1991.
(4) Karl Marx,
O Capital,
Livro III, p. 1772. Éditions Gallimard, 1963 e 1968.
(5) Claude Bitot,
Inquérito ao capitalismo dito triunfante
. Edições Dinossauro, Lisboa, 1996.
(6) Tom Thomas,
A crise crónica ou o estádio senil do capitalismo.
Edições Dinossauro, Lisboa, 2007.
Marx admite uma situação de sobreprodução absoluta
de capital nestes termos: "uma sobreprodução que afectaria
não este ou aquele domínio ou alguns domínios importantes
da produção, mas seria absoluta pela sua própria amplitude
e englobaria portanto todos os domínios da produção".
Karl Marx,
O Capital,
Livro III, p. 1595. Éditions Gallimard, 1963 e 1968.
(7) Andrew Kliman,
The failure of capitalist production,
Pluto Press, London, 2012.
(8) Karl Marx,
O Capital
, Livro III, tomo I, p. 274. Éditions Sociales, Paris, 1969. (Passagem
redigida por Engels sobre notas de Marx).
(9) Em 1970, na média dos seis maiores da OCDE (França,
Itália, Grã-Bretanha, RFA, EUA e Japão), representava
quase 40% da população activa total. C. Bitot, o. c.
(10) No conjunto dos 25 países da OCDE o desemprego foi de uns 11
milhões entre 1950 e 1974, e de 1974 até final do século
saltou para 35 milhões, acompanhando o enorme incremento do capital
fixo. C. Bitot, o. c.
(11) O valor do capital fixo investido por posto de trabalho, em França,
era em 1950 inferior a 100 mil francos; em 1990, era superior a 1 milhão
de francos, isto é, 10,4 vezes mais. Em comparação, de
1890 a 1950 a diferença não passou de 3,7 vezes mais. C. Bitot,
o.c.
(12) O emprego no terciário em França, Itália,
Grã-Bretanha, RFA, EUA e Japão representava, na média dos
seis países, as seguintes percentagens da população
activa: em 1960, 43,9%; em 1970, 49,2%; em 1990, 65,5%. C. Bitot, o.c.
Em Portugal, o terciário representava 27,5% em 1960 e 51,3% em 1991.
Elísio Estanque,
A classe média: ascensão e declínio.
FFMS, Lisboa, 2012.
[*]
Intervenção no Congresso Marx em Maio Perspectivas para o século XXI, 3-5/Maio/2012, Faculdade de Letras, Lisboa.
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