As minhas razões
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Está absolutamente demonstrado que só os poderes enfraquecidos
perseguem a imprensa e, por outro lado, está igualmente demonstrado que
nem por isso se tornam mais robustos e que, ao contrário, acabam quase
sempre por se declarar vencidos.
João Chagas
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O que se pensará daqui a cem, daqui a duzentos anos da apreensão
de um jornal?
Será este facto reputado odioso, ou será simplesmente reputado
grotesco?
Eu suponho que será reputado um facto grotesco e que os pósteros
apanharão ainda, à nossa custa, bem boas barrigadas de riso.
Com efeito, qual é a ideia da apreensão? É a ideia de
impedir que uma verdade circule, e há porventura nada mais grotesco que
desatar a correr atrás de uma folha de papel, porque essa folha de papel
contém uma verdade.
Alto! contestam porém os poderes públicos. Essa folha de
papel não contém a verdade: contém uma mentira, e
há porventura nada mais burlesco ainda do que desatar a correr
atrás de uma mentira?
Verdade, mentira é o pensamento e há nada mais risível do
que querer apreender o pensamento?
Eu vi algumas vezes apreender jornais nas ruas de Lisboa e nunca pude deixar de
rir a bandeiras despregadas, mesmo quando esses jornais eram meus, porque
asseguro-lhes que não há espectáculo mais divertido.
Que faz esse homem de sabre em punho, a correr atrás de um rapazito que
foge? Corre atrás do rapaz? Não. Corre atrás de uma
verdade que ele leva nas mãos, embrulhada nalgumas folhas de papel.
O homem acerca-se do rapaz, arranca-lhe das mãos as folhas de papel e
mete-as no bolso com um sorriso de satisfação.
O que significa o seu sorriso? Significa que conseguiu esconder no seu
bolso uma verdade.
Escondeu-a?
Na realidade denunciou-a.
Enquanto essa verdade circulava tranquilamente nas mãos do rapaz, nas
mãos do homem ainda corre mais. Agora não corre: voa.
Toda a gente ri. Ri-se de tudo o que é pueril e vão. Ri-se da
omnipotência do rapaz. Ri-se da impotência do homem.
Rapaz! Não fujas. Não te dês ao trabalho de fugir. Deixa-te
agarrar por esse homem furibundo que te persegue. Arranca-te das mãos os
teus jornais? Deixa-os arrancar. Agora já não és tu
já que o apregoas. É ele. Estão escondidos no seu
bolso e irradiam. Nas tuas mãos eram apenas jornais. Agora são um
clarão. Nada se perdeu, nada, a não ser as poucas moedas de dez
réis de que ele te privou. Mas tranquiliza-te! Serás
indemnizado amanhã do prejuízo que sofreste hoje. A verdade
dá sempre dividendo e, em suma fizeste-nos passar um bom bocado.
Está absolutamente demonstrado que só os poderes enfraquecidos
perseguem a imprensa e, por outro lado, está igualmente demonstrado que
nem por isso se tornam mais robustos e que, ao contrário, acabam quase
sempre por se declarar vencidos. Só os poderes enfraquecidos temem a
imprensa porque a imprensa não é para temer. Só a verdade
é temível, disse o velho Thiers que um tão belo papel
representou no acto de protesto contra as Ordenanças de Julho.
Os juízos da imprensa só são eficazes quando são
justos, porque apesar de tudo quando se pensa da influência da imprensa
sobre a opinião, nem por isso é menos certo que são afinal
os votos desta que ela acaba por formular. Não é geralmente o
jornal que faz a opinião: é a opinião que faz o jornal, e
o jornal é quase sempre o último a exprimi-la.
Supõem por acaso que os interesses dos jornais não são os
interesses da opinião? São os mesmos. Quando a imprensa inteira
se levanta não faz, em geral, senão ceder às suas
cominações. Quando não partilha das paixões
que a inflamam, obedece ao seu impulso despótico. Perseguindo a
imprensa, os poderes parecem receosos de que, ao contrário, seja a
imprensa que semeie essas paixões. Erro! Não há
paixões. Há verdade, há justiça. Se não
formos verdadeiros, se não formos justos, por muito que falemos, por
muito que gritemos, mesmo pela voz clamorosa da imprensa, ninguém nos
escutará.
Quer-se um exemplo?
Aqui está Rochefort. Rochefort foi ouvido enquanto fez obra de verdade e
de justiça. O seu renome não tem mesmo outra origem. Desde,
porém, que se deu a combater contra toda a verdade e toda a
justiça, a opinião, que ele mais de uma vez levou consigo,
voltou-lhe completamente as costas. Rochefort combate a República
Francesa com a derradeira violência e os seus chefes com os
últimos ultrajes. Loubet nunca foi na sua pena senão «um
canalha», e Falliéres outro, o que não impede que a
República, Loubet, Falliéres se ressintam tanto dos seus ataques
como o sol de pedradas. Ao contrário, crescem na
consideração alheia, são respeitados, são amados,
são festejados. Contudo Rochefort é a imprensa, e pensam por
acaso que a República e os governos republicanos perseguem a imprensa na
pessoa de Rochefort? Bem sabem que não. Rochefort diz tudo quanto quer e
deste direito usa largamente. E porque não se persegue Rochefort?
Porque Rochefort, embora sendo a imprensa, não é um perigo nem
para as instituições, nem para os chefes republicanos, visto que
não é essa temível verdade de que fala Thiers, e, segundo
a frase de Thiers, a falsidade é impotente e nunca houve poder que por
ela sofresse.
O facto é este: Só receiam a imprensa os poderes impopulares. O
seu erro consiste em imaginarem que deixam de o ser pelo facto de a perseguir.
IMPRENSA GOVERNAMENTAL
Não sei se, como em Portugal, em toda a parte há uma imprensa
ministerial. A mim afigura-se-me a imprensa ministerial a coisa mais
frívola do mundo.
O que faz a força da imprensa é a ideia que se lhe associa, de
imparcialidade. Bem sei que não é assim. A imprensa não
é imparcial e é mesmo tão parcial que, por via de regra,
serve os interesses dos princípios, quando não os das
facções e os das facções quando não os dos
homens. Uma imprensa imparcial, de resto, seria absolutamente vazia de sentido.
Visto que os homens estão divididos, é natural que os jornais
também o estejam. Um jornal imparcial seria aquele que não
representasse opiniões associadas, e as opiniões
solitárias não constituem público que legitime a
existência de um jornal. Há, porém, um tipo de jornal, de
cuja imparcialidade podemos francamente duvidar, e esse jornal é
o jornal ministerial.
É possível defender princípios e mesmo partidos com uma
relativa imparcialidade. Defender governos com imparcialidade é
absolutamente impossível, porque a defesa dos actos de um governo
não dá lugar a que a supúnhamos desinteressada, e o
crédito do princípio da imparcialidade está no
desinteresse que se lhe atribui. Defender uma opinião que se bate ainda
pode ser reputado um acto inegociável. Defender uma opinião que
triunfou é procurar garantir o seu triunfo. Quando essa opinião
é o governo, tudo leva a crer que não estamos a defender uma
opinião, mas simplesmente o governo.
De como esta defesa é pueril prova-o a nenhuma importância que se
atribui aos órgãos dos governos e a zombaria, senão o
desdém, de que eles são objecto.
Com efeito, as razões do jornal do governo são sempre as
razões do governo. Pode o governo ser execrável,
perdulário, dissoluto, liberticida, despótico. Para o seu jornal,
para os seus jornais, ele é invariavelmente económico,
disciplinador, formalista, tolerante, liberal.
Os partidos atacam o governo? Segundo os jornais do governo esses
partidos estão apenas sequiosos do poder.
A opinião mostra-se descontente com o governo? Segundo os jornais
do governo essa opinião não exprime senão os
desígnios funestos de alguns solitários, disseminados
díscolos.
Que confiança imputar a semelhantes juízos, se de antemão
sabemos que eles serão optimistas? Eu não sei como há
ainda jornalistas que se prestem a redigir jornais do governo, tão
vã, tão nula, tão vazia é a sua tarefa. Eles
não contribuem com uma palavra para o seu engrandecimento. Um
charlatão, numa praça pública, afiançando uma
pastilha, ainda encontra alguns clientes. Eles nem um só. Toda a gente
encolhe os ombros diante do espectáculo da sua solidariedade, porque a
essa solidariedade, com efeito, chama-se cumplicidade e nunca as razões
de um cúmplice tiveram sequer as aparências de um juízo
imparcial.
A CENSURA
De todos os vexames a que a liberdade de pensar ainda está exposta, o
mais vexatório é a Censura, porque as leis, os tribunais e as
penas são ainda a responsabilidade, enquanto que a Censura é a
tutela.
No decurso da minha carreira de jornalista fui muitas vezes submetido a essa
tutela, e posso depor em como foram esses os piores quartos de hora da minha
vida. Os julgamentos de imprensa e outras incómodas consequências
dos meus actos de escritor, nunca feriram o meu orgulho. A Censura humilhou-me.
Nenhum acto de opressão dos poderes é mais vexatório,
porque nenhum nos despoja mais directamente da liberdade. A Censura em rigor,
não é um acto de opressão. É a mão no
pescoço. Devemos muitas vezes afrontar leis despóticas e
juízes parciais. Muitas vezes espera-nos a prisão. Pois bem! Isto
não nos desapossa do sentimento da liberdade, porque no momento em que
lançamos mão da pena, nada nos detém a mão, nem
mesmo o temor da responsabilidade, que só é uma
coacção eficaz para as naturezas pusilânimes e essas
não manejam uma pena, como não manejam uma espada. Ao
contrário, quase sempre se vai ao encontro das responsabilidades que
comprometem a dignidade da inteligência e o sentimento do dever. Essas
responsabilidades enobrecem-nos e tornam-nos mais corajosos.
Entretanto, somos livres, porque responsabilidade quer dizer liberdade
Sob o peso da Censura temos o sentimento quase físico da
coacção. Lançamos mão da pena, se somos
forçados a fazê-lo, e a nossa pena não se move, como se
alguém, ou alguma coisa, nos retivesse a mão. A Censura vai
exercer-se mais tarde, mas exerce-se muito antes, e é isso que
profundamente nos humilha, porque actua sobre nós, por efeito da sua
coacção moral, antes de materialmente actuar sobre a nossa obra.
O acto material da Censura é o que nos molesta menos. Em que é
que pode molestar-nos que um indivíduo, geralmente iletrado, se
entretenha a ler os nossos escritos com um olho faccioso? O que nos vexa
até ao ponto de nos parecer que tudo se degradou em nós, é
que essa censura que um outro vai exercer, começamos nós por a
exercer sobre nós próprios. e não há
despotismo mais aviltante do que o que nos entra no sangue.
Já as leis de imprensa não são compatíveis com os
regimes livres. As leis de imprensa visam a punir os delitos do pensamento e
não há delitos do pensamento, visto que nunca foi um delito
exprimir opiniões, sejam de que natureza for. Tudo o que na imprensa
não é da jurisdição da imprensa é da
jurisdição do direito comum. Uma lei de imprensa, mesmo livre,
é um atentado à liberdade, porque põe limites no direito
ilimitado de pensar. Mas o pensamento assusta ainda o homem, como nos tempos
nebulosos em que se lhe revelava sob a forma do Diabo, e é
forçoso que nos inclinemos perante as leis de imprensa que, uma ou outra
vez, nos levam ao banco dos réus, sob o pretexto de que formulamos uma
opinião.
Perante a Censura, que não é jurisprudência mais ou menos
arqueológica, mas francamente despotismo sem máscara, não
há meio de nos inclinarmos, a não ser que tenhamos uma alma de
escravo.
Só aplicam a Censura eu sei! os déspotas em vias de
falência e os regimes em vias de dissolução, mas estas
razões não nos consolam do vilipêndio.
[*]
João Chagas
(1863-1925): Jornalista, escritor, diplomata e
político destacado da primeira República. Fundou e dirigiu
vários jornais e tem publicada vasta obra de ensaios, memórias,
etc. A prisão de João Chagas em 1891, no Porto, constituiu uma
das razões para o levantamento armado de 31 de Janeiro. Os trechos acima
estão contidos no seu livro "As minhas razões", de
1906.
N.R.:
Os tempos de João Chagas, em que polícias corriam atrás de
ardinas para lhes apreender jornais, já vão longe. No
Portugal de hoje as coisas são muito diferentes, mais empresariais.
O controle dos media faz-se através de banqueiros, grandes
empresas públicas e privadas, grupos estrangeiros, advogados e
naturalmente o primeiro-ministro e os inefáveis
boys que o cercam. Uma amostra dos negócios actuais da
comunicação social pode ser apreciada no trabalho de
investigação feito pelo semanário
Sol
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Estes excertos encontram-se em
http://resistir.info/
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