A arrumação e correlação das forças de classe na sociedade portuguesa

por Manuel Brotas [*]

A análise crítica de uma multiplicidade de fontes estatísticas, de que sobressaem os recenseamentos gerais da população, permite-nos formar uma imagem aproximada da composição social da sociedade portuguesa.

É bem sabido que na vida social, mais ainda do que na natureza, não há fronteiras rígidas, sendo frequentemente muito difícil, e por vezes impossível, encaixar determinados elementos nos subconjuntos sociais considerados.

Mas, dada a natureza capitalista da formação económica e social específica que é a sociedade portuguesa deste início de século, podemos fazer um esforço, sempre aproximado, mas tão próximo da realidade quanto formos capazes, de arrumar a população, e antes de mais a população com actividade económica, em quatro grandes sectores sociais: as duas classes fundamentais, a burguesia e a classe operária, e dois agrupamentos sociais intermédios, as camadas intermédias assalariadas e as camadas intermédias não assalariadas.

Impõem-se, desde já, duas explicações.

Poderíamos, o que talvez parecesse mais adequado, dividir a população em quatro sectores diferentes: a classe operária, os assalariados não operários, a pequena-burguesia e a burguesia. Os assalariados não operários, como teremos ocasião de explicar, correspondem basicamente às camadas intermédias assalariadas, pelo que, aí, não haveria diferenças significativas. No que respeita à pequena-burguesia, o caso é diferente. De facto, é extraordinariamente difícil distinguir na informação estatística disponível os pequenos empregadores que pertencem às camadas inferiores da burguesia e os pequeníssimos empregadores que já se enquadram na pequena-burguesia, sendo então preferível considerar estes dois segmentos englobados no agrupamento das camadas intermédias não assalariadas, que corresponde basicamente ao conjunto da pequena-burguesia mais a burguesia pequena, se assim nos podemos exprimir. Como também teremos ocasião de explicar, outros factores contribuem para dar consistência a este agrupamento.

É também necessário precisar melhor o que se entende por intermédias. O capitalismo contemporâneo é um capitalismo de monopólios. Há uma fractura entre a fracção monopolista da burguesia, ou mais geralmente, entre a grande burguesia e o resto da burguesia. Diversamente do que poderia ser entendido, as camadas intermédias, em particular as camadas intermédias não assalariadas, assim se designam, não por intermediarem a burguesia e o proletariado, mas por se situarem entre a burguesia monopolista e o proletariado, os dois pólos aglutinadores da vida e lutas sociais.

De começo vamos então cingirmo-nos a estas “quatro grandes fatias do bolo social”: classe operária, camadas intermédias assalariadas, camadas intermédias não assalariadas, burguesia. Mas antes de passar a uma descrição das respectivas composições e evoluções, é importante referir que a população total residente em território português, nacionais e estrangeiros, aumentou nos dez anos que medeiam os censos de 1991 e 2001 cerca de 5%, para 10,356 milhões de habitantes; que a população activa aumentou mais, cerca de 13,5%, tendo a taxa de actividade crescido de 44,6% para 48,2%; e que o assalariamento progrediu mais ainda, tendo o número de trabalhadores por conta de outrem aumentado cerca de 20%, para 3,794 milhões.

A CLASSE OPERÁRIA

A classe operária é fundamentalmente constituída pelos trabalhadores assalariados em que é dominante o trabalho directamente produtivo, exercendo a sua actividade nas esferas económicas da produção material, onde não desempenham funções superiores de direcção ou de mera vigilância no enquadramento de outros trabalhadores.

Compõem-na, assim, trabalhadores que não são proprietários de meios de produção, que por isso são obrigados a vender a sua força de trabalho, no sector privado ou público, e que inserem a sua actividade, manual ou intelectual, no trabalho colectivo de preparação e realização da produção material (incluindo os seus prolongamentos nas esferas da circulação e do consumo), criando mais-valia sem desempenhar funções de exploração, isto é, tarefas destinadas a assegurar a extorsão de mais-valia, nomeadamente tarefas de controlo administrativo ou disciplinar no enquadramento de trabalhadores.

Desmentindo frontalmente as teses que afirmavam a sua redução ou, absurdo completo, apontavam para o seu desaparecimento, a classe operária aumentou o número dos seus membros, estimando-se, por defeito, que tenha passado, entre os censos de 1991 e 2001, de cerca de 1,845 milhão para cerca de 1,985 milhão de assalariados. A este número há que acrescentar parte dos falsos trabalhadores independentes, que são de facto assalariados forçados ao trabalho à hora, à empreitada, à peça, ao “metro”, como meio de sobrevivência. Há igualmente que acrescentar muitas dezenas de milhares de imigrantes clandestinos, assalariados em funções produtivas. Há ainda que acrescentar, apesar da sua inactividade involuntária, mais ou menos transitória, ligeiramente menos de metade da população desempregada, quase 160 milhares. O que dava um total em 2001 de, pelo menos, 2,145 milhões efectivos.

A percentagem de operários na população activa, sempre numa estimativa por defeito, reduziu-se, entre 1991 e 2001, de 45% para 43%. Actualmente, cerca de um em cada dois assalariados é operário. Regista-se uma significativa diminuição da percentagem de operários no total de assalariados, aproximadamente de 58% em 1991 para 52% em 2001, devida ao crescimento da massa assalariada sobretudo em funções não produtivas, tendência geral (da composição orgânica do capital) no capitalismo desenvolvido, que traduz fenómenos cruzados como o aumento da produtividade social do trabalho produtivo, o aprofundamento da exploração à escala internacional, as dificuldades de valorização do capital, a intervenção do Estado a favor dos monopólios, o crescimento dos serviços pessoais e gerais. A desindustrialização e a liquidação de sectores produtivos nacionais agravaram o fenómeno.

No âmbito dos assalariados recenseados em 2001 identificam-se, desde logo, três destacamentos tradicionais da classe operária:

  • O proletariado industrial, incluindo as minas, a produção de energia, as obras públicas e os transportes, com aproximadamente 1,48 milhão de efectivos empregados, numa primeira aproximação que despreza vários especialistas intelectuais, técnicos intermédios e pessoal administrativo e dos serviços. Aumentou a sua dimensão, em relação a 1991, mas viu o seu peso diminuir de 44% para 39% na massa de assalariados e de 34% para 32% na população activa.

  • O proletariado agrícola, incluindo a criação de animais e os trabalhos florestais, com cerca de 90 mil efectivos empregados. Prosseguiu o seu declínio, reduzindo o seu peso, em relação a 1991, de 3,8% para 2,4% na massa de assalariados e de 3,1% para 2,1% na população activa.

  • O proletariado das pescas, incluindo a aquacultura, com cerca de 13.500 efectivos empregados, que reduziu para metade os seus efectivos em relação a 1991.

    Mas é preciso ter consciência de que, a par do proletariado tradicional da indústria, agricultura e pescas, englobam-se hoje na classe operária muitos milhares de efectivos que, numa visão clássica, mais restritiva e desactualizada, seriam relutantemente considerados como operários. Isto não deve surpreender, pois a dificuldade começa logo com muitos destes trabalhadores a não se reconhecerem nessa condição. Contudo, é uma realidade indesmentível que o trabalho produtivo moderno atravessa os serviços e abrange uma parte crescente do trabalho intelectual.

    São, por exemplo, classificados no sector de serviços assalariados que exercem funções na produção material. Alguns trabalham em autênticos prolongamentos do processo de produção nas esferas da circulação e do consumo, em actividades imprescindíveis à realização do valor de uso das mercadorias (ou efeito útil da produção), tal como transportes, comunicações, estocagem, conservação, embalagem, distribuição, manutenção e reparação. Outros exercem funções classificadas como administrativas, mas participam no trabalho colectivo da produção, nomeadamente na sua programação, criação de condições, suprimento de necessidades e transmissão da informação. Outros ainda são verdadeiros assalariados da indústria que, por via da sua contratação por empresas de aluguer de mão-de-obra, aparecem falsamente catalogados no sector terciário.

    Faz, por isso, sentido considerar mais um destacamento da classe operária, o proletariado dos serviços, o conjunto dos operários do sector terciário, à excepção dos transportes (considerados no cálculo do proletariado industrial), com cerca de 400 mil efectivos empregados, numa primeira aproximação por excesso que inclui vários especialistas intelectuais, técnicos intermédios e pessoal administrativo da indústria. Este grupo aumentou a sua dimensão em cerca de 95 mil, entre 1991 e 2001, acompanhando o crescimento da massa de assalariados, de que representa cerca de 10%, e elevando ligeiramente o seu peso na população activa para cerca de 8,5%.

    Pelo choque com algumas interpretações tradicionais e desfasadas da realidade sobre a composição da classe operária, seja-nos permitido dar uns cinco exemplos de trabalhadores, classificados no sector terciário, na esfera dos serviços, que não podem, no entanto, deixar de ser incluídos classe operária.

    1º exemplo. Dois assalariados de uma empresa de comercialização de bebidas. Ambos conduzem veículos da empresa, o primeiro um carro, o segundo um camião, e percorrem os cafés e restaurantes de certa região. O primeiro faz prospecção de mercado, fala com os donos dos estabelecimentos, negoceia e vende a mercadoria. O segundo assegura a distribuição, os fornecimentos, faz chegar ao cliente as mercadorias acordadas pelo colega. O primeiro trabalhador é assalariado, mas não participa na produção das mercadorias, só se encarrega da sua venda, da sua conversão em dinheiro, não cria valor, não cria mais-valia, ou seja, não tem funções produtivas, não é um operário. O segundo trabalhador, apesar de não participar no fabrico das bebidas, participa nesse “prolongamento da produção” que consiste em fazê-las chegar aos clientes, aos compradores, sem o que não podem realizar o seu valor de uso, isto é, satisfazer as necessidades dos consumidores. As bebidas só têm valor de uso, só têm utilidade, para o comprador, quando lhes chegam às mãos; o transporte é uma componente da construção (da realização) do seu valor de uso. Este segundo trabalhador não trata da venda, o seu dispêndio de forças e energia é uma componente da produção e realização da utilidade da mercadoria, a sua actividade aumenta o valor da mercadoria, cria mais-valia, ou seja, executa funções produtivas, é um operário. No entanto, ambos os trabalhadores são explorados, porque ambos trabalham um número de horas superior às necessárias para fabricar os meios de subsistência, de si e das suas famílias, que podem adquirir com os respectivos salários.

    2º exemplo. Um empregado de balcão num café. Na venda de uma bica, o empregado, que já tinha preparado os grãos de café e a água nos respectivos reservatórios, acciona a máquina, “tira” a bica, serve-a numa chávena. Fabrica a bica, entrega a bica. É o último elo na produção material da bica, que começou noutros lados, entre outros, lá muito longe, nas plantações de café. É um operário. O empregado de mesa já não fabrica a bica, mas transporta-a ao cliente. A bica não tem valor de uso (utilidade) para o dono do café, que a quer vender, tem valor de uso para o cliente que está interessado nela, que a quer comprar, mas só o tem de facto, só realiza esse valor de uso, quando lhe chega às mãos. Levar a bica à mesa do cliente é uma actividade tão necessária como levar o saco de café do armazém para despejar na máquina. Ambas são componentes da produção da bica, ambas são necessárias para que o cliente receba e satisfaça a sua necessidade da bica. O empregado de balcão, mas também o empregado de mesa, têm funções produtivas. No entanto, também têm funções improdutivas. O dono do café emprega-os para produzirem (fabricarem e entregarem) bicas e outros produtos, mas também para receberem os respectivos pagamentos. Para fazerem (ou entregarem) bicas e para venderem bicas. Na primeira actividade, criam valor, são produtivos; na segunda, não criam valor, são improdutivos. Em certos cafés, com outro tipo de organização, estas duas actividades estão atribuídas a assalariados distintos: um que está na caixa registradora e vende previamente os produtos, e dá por exemplo uma senha, outro que faz ou fornece esses produtos, em troca da senha; ou então ao contrário, um que faz ou fornece os produtos, outro que recebe posteriormente os pagamentos. Nestes casos, o que vende, que recebe o pagamento, é um assalariado improdutivo, não é um operário, o outro, que faz ou fornece os produtos, é um assalariado produtivo, é um operário. Quando as duas funções estão misturadas no mesmo assalariado, dependerá do (tempo de) trabalho que dedica a uma actividade e a outra, mas, frequentemente, as suas actividades na produção, em sentido lato, justificam que se considere também operário. Não há dúvida que muito dificilmente um empregado de balcão, de um café ou estabelecimento comercial, se considerará operário, mesmo que tenha funções predominantemente, ou mesmo exclusivamente, produtivas, dada a identificação estreita, na linguagem vulgar e não só, que é feita entre operário e trabalhador da indústria transformadora ou extractiva. Mais uma vez é importante referir que tanto o trabalhador que recebe o pagamento, improdutivo, como o trabalhador que serve a bica, produtivo, são trabalhadores explorados. Mesmo que não rodem funções, e que por isso um se possa considerar pertencente à classe operária e outro não, esta distinção não tem aqui relevância para a sua tomada de consciência de trabalhadores explorados, para o despertar para a acção reivindicativa, sindical, cívica, social e política.

    3º exemplo. Um trabalhador assalariado de uma oficina de automóveis. Não fabrica o automóvel, mas repara o automóvel. Isto é, “refabrica” o automóvel. É um caso típico de um prolongamento da produção, já não na esfera da circulação das mercadorias, como por exemplo o do distribuidor de mercadorias, mas na própria esfera do consumo. Trata-se de um operário. Talvez mais difícil seja considerar assim as trabalhadoras de uma empresa de limpeza, que asseguram diariamente a limpeza, por exemplo, de um banco. Mas se atentarmos que a actividade de limpeza é uma actividade necessária à conservação do edifício, à sua conservação para os fins a que se destina, que de certa forma é uma actividade de “reparação” da sujidade e outras degradações que o edifício sofre inevitavelmente ao longo da sua utilização, então não será difícil compreender que temos novamente um exemplo de um prolongamento da produção, neste caso da construção do banco. Apesar de tudo, apesar de algumas mistificações ideológicas, ainda é muito frequente a designação destas trabalhadoras como operárias da limpeza. Integrantes, pois, da classe operária.

    4º exemplo. Um assalariado armazenista de um grande fabricante de vinho. Há questões complicadas de estocagem do vinho antes do seu escoamento normal para o mercado. O vinho não se produz “just in time”, apenas quando é preciso e na medida em que é preciso. Também não se vende todo no mesmo dia, e o facto de isso poder suceder com colheitas de excepcional qualidade que suscitem grande procura, não altera a regra geral. O vinho pode ser conservado de várias maneiras, em cubas, em pipas, em garrafões, em garrafas, etc. Têm prazos diversos, objectivos diversos. Se não houver um grande cuidado com o armazenamento, o vinho pode estragar-se. A actividade de armazenamento, de estocagem, é imprescindível para a conservação do valor de uso das mercadorias. São actividades produtivas e os assalariados que delas se encarregam operários. Mesmo aqueles que, pelo tipo de funções que exercem, dessa qualificação parecem mais distantes. Por exemplo, o informático que controla e administra a gestão dos stocks. Se, no entanto, a estocagem for motivada, não pelos imperativos do ritmo de escoamento para o mercado, ou até mesmo por dificuldades inesperadas e excepcionais nesse escoamento, mas por intuitos meramente especulativos, de aguardar ou provocar subidas do preço, então os trabalhadores da estocagem participam não numa actividade de conservação do valor de uso (e por conseguinte do valor) das mercadorias, mas numa actividade especulativa de vender mais caro o mesmo produto, ou seja, têm uma actividade improdutiva (a sua actividade não aumenta o valor das mercadorias, embora possa aumentar o seu preço de mercado). O nosso informático gestor de stocks, a mando da empresa vinhateira, terá que gerir simultaneamente o vinho para vender normalmente e o vinho para vender quando o preço for mais caro. A mesma função do mesmo indivíduo é simultaneamente produtiva e improdutiva. Isto mostra como as actividades produtivas e improdutivas de mais-valia estão por vezes não só entrelaçadas, não só imbricadas, mas verdadeiramente fundidas.

    5º exemplo. Um empregado de escritório de um transitário. Já sabemos que os motoristas, funcionários de uma transportadora, que asseguram a distribuição de mercadorias, integram a classe operária. Mas a empregada de escritório da transportadora, ou do transitário, que lhes transmite as ordens de cargas e de descargas, que tem nessas funções o essencial da sua actividade, é uma componente essencial do trabalho colectivo que assegura o fornecimento das mercadorias. Apesar de estar sentada ao lado da sua colega da contabilidade, de usar como ela o telefone e o computador, de como ela intermediar patrão e trabalhadores, de como ela nunca pôr o pé fora do escritório, tem uma actividade produtiva, ao contrário da colega, cujas funções, desde o pagamento das aquisições de materiais à remuneração dos trabalhadores, consistem fundamentalmente em acompanhar a mudança de forma do valor ao longo do processo produtivo, sem contudo intervir nesse processo. A maioria dos empregados de escritório está destacada para funções improdutivas ou essencialmente improdutivas, mas muitos têm funções que se inserem no trabalho colectivo da produção material. A maioria não pertence à classe operária, mas muitos pertencem.

    Os exemplos multiplicam-se, alguns muito complicados, até porque dois assalariados, com a mesma profissão e as mesmas funções, podem ter, um, uma actividade produtiva de mais-valia e, outro, uma actividade improdutiva; só a análise circunstanciada e concreta de cada caso permite tirar conclusões. A evolução do capitalismo tem tornado mais imprecisa e movediça a fronteira entre actividades produtivas e improdutivas de mais-valia, podem concentrar-se num mesmo assalariado, imbricadas e até indestrinçáveis, funções sucessivamente ou mesmo simultaneamente produtivas e improdutivas. Tem-se tornado igualmente mais indefinida, com a colectivização e a especialização das funções de direcção e gestão, a fronteira das actividades que controlam e asseguram a extracção da mais-valia. O reconhecimento da existência de um minoritário “proletariado de escritório” deve acompanhar-se por uma grande prudência na análise da condição operária de certos administrativos, de certos trabalhadores dos serviços e comércio, de certos quadros.

    Transversalmente a toda a produção, nos vários sectores, existem ainda outro tipo de trabalhadores assalariados que nenhuma razão pode excluir da sua consideração no âmbito da classe operária. Falamos de uma parte minoritária dos assalariados intelectuais e quadros técnicos (aquilo que se poderia talvez designar por proletariado intelectual).

    A automação, a robotização, a informatização, as novas tecnologias tendem a reduzir o trabalho manual, e o número de trabalhadores que o exercem, na indústria e na produção em geral (o mesmo sucede em actividades comerciais e de serviços). Por outro lado, estes fenómenos, juntamente com as novas formas de organização e gestão, originam uma maior complexidade na concertação dos esforços dos trabalhadores na produção material e uma integração nesse esforço colectivo de novos assalariados, com qualificações e actividades intelectuais mais complexas. Parte dos assalariados intelectuais e quadros técnicos, intervindo directamente na produção (ainda que, no caso de alguns, em funções de concepção, planeamento e investigação aplicada), exercendo predominantemente funções intelectuais qualificadas, cuja execução exige, em geral, instrução de nível superior ou pelo menos secundária especializada, subordinados aos ritmos, às metas, às exigências e ao comando da alta direcção das empresas, integra-se objectivamente na classe operária.

    Novamente por contrariar interpretações tradicionais e erradamente restritivas sobre a composição da classe operária, seja-nos permitido dar três exemplos de trabalhadores intelectuais que não podem, no entanto, deixar de ser incluídos classe operária.

    1º exemplo. Um engenheiro funcionário de uma construtora civil, que faz o cálculo de estruturas da construção de edifícios. Tem uma intervenção directa na produção, ainda que a “montante”: o seu trabalho é a procura de soluções para um grande problema prático colocado pela produção, sem as quais a produção não se faz ou não progride; trata-se de um trabalho produtivo. Outros engenheiros, com funções comerciais, por exemplo na avaliação das características técnicas e custos dos equipamentos a adquirir no mercado, ou seja, funções ligadas à compra e venda, não têm funções produtivas, mas não é esse o caso da generalidade dos engenheiros assalariados. Mesmo no que respeita à direcção sobre outros trabalhadores é, desde logo, necessário reconhecer que uma enorme percentagem dos engenheiros não tem qualquer actividade de direcção. São assalariados, que têm as suas funções técnicas, de maior ou menor responsabilidade, que obviamente se relacionam e colaboram com outros trabalhadores, mais ou menos qualificados, mas em relações horizontais ou sem qualquer papel de chefia ou de enquadramento, submetidos como eles ao alto comando da empresa ou da instituição onde trabalham. A sua opinião não é tida nem achada nas decisões estratégicas das empresas e estas sacrificam sem dificuldade o seu emprego, tal como no caso dos outros trabalhadores. O seu estatuto profissional, laboral e remuneratório está tão deteriorado que não é difícil encontrar operários qualificados com remunerações equivalentes, ou até superiores, a engenheiros, por exemplo, em início de carreira. Também o seu estatuto social tem vindo a degradar-se, comparativamente a outras actividades profissionais, como a medicina. As próprias funções de direcção de outros trabalhadores, quando existem, têm muito que se lhe diga, porque se trata de funções de direcção técnica (e, por isso, produtivas) largamente esvaziadas do seu conteúdo de comando capitalista, isto é, de funções que, simultaneamente, procuram assegurar a disciplina do capital e a extorsão da mais valia (e, por isso, improdutivas). Esse papel é agora, cada vez mais, reservado aos gestores, aos managers e a outro tipo de quadros, gabinetes e serviços nas empresas. Isto para concluir que os engenheiros, mesmo quando conservam funções de direcção de outros trabalhadores ou de serviços e áreas de actividade das empresas e instituições, estão largamente despojados das suas funções de representantes ou agentes do capital, das funções de exploração. Não resta, pois, nada que se oponha à sua inclusão na classe operária, à sua pertença de facto à classe operária, independentemente, é claro, de como são vistos e de como se vêem a si próprios, mas isso, a sua consciência social e de classe, embora relacionada, é outra história.

    2º exemplo. Um veterinário assalariado de uma empresa de criação de gado. Diferentemente de um médico, o objecto de trabalho do veterinário não são pessoas mas animais, a sua actividade não se destina a conservar a saúde e a força de trabalho dos homens mas a saúde e a capacidade de trabalho dos animais. O trabalho do veterinário contribui, decisivamente em casos de dificuldade, para a criação ou conservação do seu valor de uso. Pelo que o trabalho do veterinário funcionário da empresa se soma ao trabalho necessário para a produção do gado, cria mais-valia para o seu empregador, é trabalho produtivo. A propósito, argumentar que parte do trabalho de certos veterinários assalariados, por exemplo de clínicas veterinárias (não há muitos, o Censos 2001 apenas recenseava 1.493 assalariados no ramo económico de actividades veterinárias e só uma parte destes seriam veterinários), ou até mesmo todo o seu trabalho, caso assim se tenham especializado, incide apenas sobre animais domésticos, de estimação ou de luxo, isto é, de animais cujos proprietários não os destinam a negócio, e que por isso não é trabalho produtivo é, simplesmente, uma lamentável confusão, infelizmente muito frequente, entre ser produtivo do ponto de vista da produção de capital (da produção de mais-valia) e produtivo do ponto de vista da reprodução do capital (da produção, em simultâneo, dos elementos materiais da nova produção, como a carne do gado abatido que constitui matéria-prima da indústria de enlatados ou directamente meio de subsistência dos trabalhadores). É o tipo de confusão que leva a considerar improdutiva a indústria de objectos de luxo ou a de armamentos.

    3º exemplo. Pode um cientista pertencer à classe operária? Pode eventualmente, se fizer investigação aplicada; não pode, se fizer investigação fundamental. Um físico teórico ou um matemático puro, ainda que assalariados, não têm uma actividade produtiva (de mais-valia). Mas um físico aplicado, que trabalhe, como infelizmente é o caso de tantos, como assalariado na indústria militar, tem uma actividade produtiva (ainda que socialmente nociva). Um cientista, bioquímico, funcionário de uma grande farmacêutica, que recebe indicação para investigar novos compostos para a elaboração de um medicamento para comercialização, tem um papel preponderante no conjunto dos trabalhadores que, com a sua concertação de esforços, vão produzir esse medicamento. A sua investigação e o seu estudo são aplicados, o seu trabalho cria valor, cria mais-valia, é directamente produtivo, esse cientista pertence à classe operária.

    Mais uma vez, os exemplos multiplicam-se. Também aqui, as fronteiras do trabalho dos intelectuais e dos quadros técnicos que produz ou não produz mais-valia são pouco nítidas ou mesmo impossíveis de traçar, mas isso não impede o reconhecimento de largas zonas de produtividade do trabalho intelectual, da sua inserção no trabalho colectivo que assegura a produção material e, por conseguinte, da natureza operária de uma fracção significativa, claramente minoritária mas em grande crescimento, da intelectualidade assalariada. [1]

    Constata-se que uma parte, considerável e crescente, da classe operária em Portugal é constituída por trabalhadores imigrantes. As estatísticas não permitem identificá-los com rigor, mas, conhecendo-se o número de autorizações de residência e de permanência – aproximadamente 435 mil imigrantes, a que se deve juntar bastante mais de 100 mil clandestinos – e conhecendo-se o tipo de funções desempenhadas por estes trabalhadores – com grande incidência em actividades produtivas (e até manuais, por exemplo na construção) –, não será ousado admitir que mais de um sétimo da classe operária no nosso país é já constituído por estrangeiros. Esta “desnacionalização” da classe operária tem-se acentuado com a vinda de trabalhadores do Leste da Europa e do Brasil, com Portugal, segundo dados de 2002, a ser ultrapassado apenas pelo Chipre e pela Irlanda, no âmbito da União Europeia, no que respeita ao ritmo de crescimento dos saldos migratórios. Os imigrantes são fortemente explorados, por vezes enganados e roubados, mantidos em situação ilegal ou de grande precariedade, constituindo alvos fáceis da chantagem laboral. Mais do que nunca, importa ter presente na acção política que o racismo e a xenofobia funcionam como arma do patronato para dividir os trabalhadores, aumentar a exploração e enfraquecer as suas lutas.

    Partilhando a mesma sorte dos assalariados em geral, para os quais se dispõem de dados, a classe operária residente em Portugal apresenta-se no que respeita à contratação laboral muito mais fragilizada que as suas congéneres da União Europeia. Assim, em 2002, a percentagem de assalariados contratados a prazo era de 21,8%, a mais alta da União (a 15) e muito superior à sua média de 13,1%. O desemprego cresce e aproxima-se da média da UE. A maior precariedade configura e facilita uma maior exploração e dificulta gravemente a acção reivindicativa, sindical e política.

    A percentagem de mulheres da classe operária praticamente não se alterou no intervalo dos censos de 1991 e 2001: um em cada três operários é mulher (32% em 1991, 33% em 2001). O que contrasta com o aumento da percentagem de mulheres nos assalariados, de 41,5% para 45,7%, no mesmo período. Curiosamente, ao contrário do que se poderia supor, a fracção da intelectualidade assalariada que integra a classe operária contribui para masculinizar a classe.

    Acompanhando a evolução etária da população residente, cuja idade média teve, de 1991 para 2001, um acréscimo de cerca de três anos, atingindo os 39,5 anos (38 para os homens, 41 para as mulheres), regista-se um envelhecimento geral da classe operária empregada, particularmente do proletariado rural e das pescas (média de 41,5 anos), contrariado apenas pela manutenção etária, ou até um ligeiro rejuvenescimento, da intelectualidade assalariada operária (com uma média de cerca de 38 anos). Os trabalhadores imigrantes contribuem para rejuvenescer a classe.

    Verifica-se um aumento geral das qualificações da classe operária empregada, devido, por um lado, ao grande aumento do “proletariado intelectual” e ao aumento, embora a uma taxa inferior à do assalariamento, dos operários qualificados e semi-qualificados, e, por outro lado, à eliminação de franjas do proletariado rural e à redução substancial dos operários não qualificados. O aumento da qualificação, correspondendo a uma aspiração legítima e a uma exigência democrática, de mais ensino, educação e formação profissional, corresponde também às necessidades do capitalismo monopolista de força de trabalho mais qualificada, actualizada, utilizadora das novas tecnologias, e à eliminação de sectores industriais e agrícolas nacionais, de menor produtividade, incapazes de competir com a produção estrangeira em mercado aberto.

    A desindustrialização, com a destruição e fecho de grandes empresas nacionais, as deslocalizações, a utilização das novas tecnologias, a fragmentação, externalização e subcontratação da produção e o emagrecimento de efectivos das grandes empresas, invertem a tendência para as grandes concentrações operárias por efeito da acumulação de capital, dificultando a formação da consciência de classe e a mobilização na acção reivindicativa. Isso, contudo, não nega a realidade de grandes concentrações operárias em algumas zonas e regiões, resultantes da crescente interdependência da vida social e constituindo focos de irradiação da influência do proletariado.

    AS CAMADAS INTERMÉDIAS ASSALARIADAS

    O outro grande sector dos assalariados é o conjunto das camadas intermédias assalariadas, constituídas basicamente por todos os assalariados não operários. Excluem-se os falsos assalariados, que pertencem às camadas superiores da burguesia, como os directores e os membros dos conselhos de administração das grandes empresas, e aqueles que, com funções superiores de direcção e enquadramento, seja nas grandes empresas privadas, seja na administração e nas instituições públicas, são os seus auxiliares directos na manutenção do regime de exploração e respectiva ordem social.

    As camadas intermédias assalariadas são muito diferenciadas internamente e integram assalariados com funções de exploração – como gerentes de pequenas empresas, quadros e funcionários com funções de enquadramento ou vigilância dos trabalhadores – ou de manutenção da ordem social, como agentes de polícia.

    Mas incluem fundamentalmente a esmagadora maioria dos assalariados administrativos, do comércio, dos serviços e das profissões intelectuais e científicas. Trabalhadores não intervenientes na produção material, improdutivos de mais-valia, sem meios de trabalho, obrigados a vender a sua força de trabalho, explorados tal como os operários.

    Os efectivos das camadas intermédias, incluindo desempregados, aumentaram perto de meio milhão entre 1991 e 2001, para cerca de 1,82 milhão, representando 44% da massa assalariada e 37% da população activa, excluindo, pela sua especificidade, as forças armadas.

    Um crescimento superior ao do assalariamento, que traduz a continuada extensão dos serviços pessoais e colectivos, nomeadamente estatais ou para-estatais, e também, com a contenção ou mesmo regressão do poder de compra popular e a sobreacumulação crónica do capital, as dificuldades crescentes de realização da mais-valia e da sua repartição pelas várias fracções da classe capitalista, empolando o sector financeiro e exigindo um destacamento crescente de assalariados para as funções comerciais, de publicidade e administrativas das empresas. Por exemplo, no intervalo dos censos, os assalariados de nível intermédio de serviços financeiros e comerciais em conjunto com os agentes comerciais e corretores assalariados aumentaram mais de duas vezes e meia. Igualmente ilustrativo, os assalariados do ramo da publicidade duplicaram aproximadamente.

    A percentagem de mulheres das camadas intermédias assalariadas aumentou, de 1991 para 2001, aproximadamente de 57% para 61%. Aumentou também, aproximadamente de 32% para 37% (13% na população activa), a percentagem de membros destas camadas com funções intelectuais mais exigentes, incluindo os directores assalariados de pequenas empresas, numa nova confirmação da intelectualização crescente do trabalho.

    Os empregados de escritório ou comércio, dos serviços pessoais e colectivos, que pertencem na sua grande maioria às camadas intermédias assalariadas, trabalham normalmente menos horas que os operários em geral, mas em várias profissões, funções e locais trabalham mais, têm cada vez menor autonomia, vêem frequentemente o trabalho desqualificado, exigindo apenas um mínimo de competências ou o domínio de técnicas normalizadas simples, as tarefas especializadas afuniladas, repetitivas e compartimentadas, as qualificações desperdiçadas, as remunerações contidas, a segurança no emprego degradada. As condições de vida e de trabalho tendem a alinhar-se pelas dos operários em geral. Mesmo subjectivamente, desapareceu em larga medida a presunção de pertencer a uma “classe” à parte. Este é um facto de importância crucial, que dá mais substância à política de alianças da classe operária com as camadas intermédias.

    AS CAMADAS INTERMÉDIAS NÃO ASSALARIADAS

    Fora dos assalariados, as camadas intermédias incluem a pequena-burguesia e camadas inferiores da burguesia. Trata-se de um agrupamento social biclassista:

  • A pequena-burguesia é a classe social constituída pelos trabalhadores por conta própria, possuindo meios de trabalho, recorrendo fundamentalmente a mão-de-obra familiar e, regular ou excepcionalmente, a um número muito reduzido de assalariados. [2]

  • As camadas inferiores da burguesia são a fracção da burguesia constituída pelos microempresários (de empresas com menos de 10 trabalhadores, que os censos permitem distinguir) e pelos pequenos empregadores, com profissões intelectuais e científicas ou técnicas, da indústria, do comércio e serviços ou do sector primário.

    Há um fundamento objectivo, além das dificuldades de destrinça estatística, para o tratamento conjunto destas duas componentes: não só é imprecisa a linha divisória entre a pequena-burguesia e as camadas inferiores da burguesia, não só fenómenos de promoção e despromoção social fazem saltar um número significativo de elementos de uma classe para outra, como uma extensa comunidade de interesses une-as, por um lado na dependência, por outro lado no conflito com a burguesia monopolista.

    As camadas intermédias não assalariadas, incluindo desempregados, diminuíram um pouco mais de 10%, entre 1991 e 2001, para cerca de 810 milhares de efectivos, numa estimativa por excesso, reduzindo o seu peso na população activa para cerca de 16%. A diminuição absoluta deste agrupamento social, componente importante da chamada “classe média”, noção usualmente empregue de forma demagógica e manipuladora, é ainda mais significativa face ao crescimento da população activa.

    A extensa base de interesses comuns entre a pequena-burguesia e fracções inferiores da burguesia não pode fazer esquecer que, por muito indefinida que seja, entre as duas passa uma fronteira de classe, determinada fundamentalmente pela existência e dimensão da contratação de trabalho assalariado. De 1991 para 2001, a fracção empregadora das camadas intermédias não assalariadas passou aproximadamente de 26% para 60%, aumentando o seu peso na população activa para cerca de 9,6%. Esquematicamente: duplicou o número de pequenos patrões, que, contando com os desempregados, atingiram cerca de 480 milhares. Em contrapartida, a pequena-burguesia encurtou-se substancialmente, com a sua fracção não empregadora reduzida a metade, menos de 330 milhares. Parte significativa dos trabalhadores por conta própria ascendeu ao pequeno patronato, parte significativa caiu no salariado e, em menor medida, no proletariado, quando não se limitou a formalizar o que já era uma situação de facto (os falsos trabalhadores independentes). Mesmo tendo presente a indefinição e a mobilidade, o intervalo dos censos forneceu uma demonstração concludente da instabilidade social da pequena-burguesia.

    O antigo e o recém constituído pequeno patronato depara-se também com a degradação da sua situação social, com a miragem da independência económica a desfazer-se pelos preços praticados, pela regulação comercial, crédito, seguros, fiscalidade, investimento público, apoios comunitários, energia, telecomunicações, transportes e outras infra-estruturas sujeitos aos interesses dos grandes grupos económicos e, ainda e expressivamente, pela subcontratação e dependência das encomendas desses grupos. Com o franchising, as pequenas empresas transformam-se em meros apêndices das transnacionais. Aprofunda-se a integração do pequeno patronato, em posição subordinada, na actividade do grande capital, por conta de quem explora o trabalho assalariado.

    A BURGUESIA

    A classe social dominante do regime social é a burguesia, constituída fundamentalmente pelos proprietários dos meios de produção e de troca, que vivem da exploração do trabalho alheio. Compreende os dirigentes e grandes accionistas das empresas e sociedades financeiras; os empresários e os patrões de todos os sectores que empregam trabalho assalariado, salvo quando em número muito reduzido; os especuladores, nomeadamente da bolsa; os grandes detentores de activos financeiros; os grandes promotores e proprietários imobiliários; os grandes proprietários rurais; todos quantos vivem de grandes rendimentos da propriedade ou dispõem de meios para abocanhar fracções consideráveis da mais-valia produzida socialmente.

    Apesar de em grande parte pertencer às camadas inferiores da burguesia, o pequeno patronato – isto é, os micro-empresários mais os pequenos patrões de todas as profissões – já foi considerado, englobado com a pequena-burguesia, a que em parte também pertence, nas camadas intermédias não assalariadas.

    Em contrapartida, considera-se, no âmbito da burguesia, o conjunto dos altos funcionários, como os directores gerais de empresas, os dirigentes de topo da função pública ou os comandos superiores das forças armadas e de segurança, que, apesar de assalariados, pertencem na realidade à burguesia ou são os seus auxiliares directos no enquadramento e comando da produção, distribuição, repartição, vida e ordem sociais. Participam e muito frequentemente beneficiam dos mecanismos da exploração.

    É conveniente delimitar as camadas superiores da burguesia – junto com os seus auxiliares directos –, das camadas inferiores – que não têm, pela sua dimensão económica, auxiliares que lhes possam ser associados, sendo inversamente, com frequência, os pequenos patrões que, cultural, sociológica e economicamente, se distinguem mal do pessoal ao seu serviço.

    A burguesia sem o pequeno patronato, conjuntamente com os seus auxiliares directos, aumentou, de 1991 a 2001, em quase metade os seus efectivos, elevando o seu peso na população activa aproximadamente de 1,9% para 2,5%. [3]

    A percentagem de mulheres na burguesia, sem o pequeno patronato e incluindo os auxiliares directos, aumentou notavelmente de 19% para 28% entre os censos, mas o aumento, ainda significativo, teria sido menor se excluíssemos os auxiliares. O pequeno patronato, ou seja, os micro-empresários mais os pequenos empregadores de todas as profissões, reforçam a crescente presença das mulheres na burguesia activa, o que significa que são aí, nas camadas inferiores, melhor toleradas e aí registam maiores progressos.

    Contribuindo para dar uma ideia do peso da grande burguesia, refira-se que, em 2003, as 1.237 grandes empresas, com pelo menos 250 pessoas ao serviço ou um volume de negócios igual ou superior a 40 milhões de euros, num universo de 347.683 empresas, representavam 26,01% do emprego e 48,29% do volume de negócios de todas as empresas. Tinham uma média de 583 pessoas ao serviço, sem incluir os trabalhadores subcontratados, os temporários e os a “recibos verdes”. O continuado aumento da concentração do volume de negócios nas grandes empresas é expressão da crescente concentração económica do grande capital.

    Mas uma melhor ideia pode ser dada se considerarmos, em vez das empresas individuais, os grupos económicos. Em 2002, 58 destes grupos, na sua esmagadora maioria privados ou quase integralmente privatizados, registaram um volume de negócios superior a 200 milhões de euros cada um. No seu conjunto, empregavam quase 300 mil pessoas, a sua facturação ascendeu a 76,4 mil milhões de euros (equivalente a quase 60% do PIB), os lucros a mais de 2,8 mil milhões de euros, a rentabilidade dos capitais próprios a 7,8%. Os maiores lucros resultam não só de melhorias de produtividade, de fornecimentos, capitais e créditos mais baratos, de apropriação de patentes, alvarás e outras vantagens, de reduções e isenções fiscais, de encomendas, subvenções e outros favores do Estado, da especulação económica, financeira e imobiliária, e de melhores assessorias jurídicas, em relação às outras empresas, mas também da capacidade de elevar o preço de venda acima do preço de produção, num verdadeiro sobrelucro de monopólio.

    Acompanhando e impulsionando a terciarização da economia, cresce o poder económico da grande burguesia comercial, bem visível na grande distribuição e no facto da parte das grandes empresas comerciais no volume nacional de negócios ter crescido, entre 1993 e 2003, aproximadamente ao dobro do ritmo da parte das grandes empresas todas em conjunto. As empresas comerciais representam cerca de 31% e as empresas financeiras cerca de 17% do volume de negócios das grandes empresas, que estão esmagadoramente inseridas ou são controladas pelos grandes grupos económicos e financeiros.

    Os grandes grupos subordinam, integrando, filiando, subcontratando, acordando vantajosamente ou condicionando pelas suas instituições financeiras e pela política do Estado ao seu serviço (orçamental, fiscal, de investimentos, de encomendas), o universo das pequenas e médias empresas, e mesmo grandes empresas, que perdem autonomia, margem de manobra, estabilidade e segurança económica.

    Os altos dirigentes, os membros dos conselhos de administração, os grandes accionistas dos grandes grupos económicos comandam, em crescente relacionamento e dependência dos estados-maiores das transnacionais estrangeiras, a economia nacional. O grande capital nacional inter-relaciona-se, entrelaça-se, interpenetra-se, integra-se e funde-se crescentemente com o grande capital transnacional, que ganha posições e domínio sobre a economia e a sociedade portuguesa. Os grupos económicos nacionais têm sido um veículo privilegiado de transferência de unidades privatizadas do sector empresarial do Estado para o estrangeiro. Certos sectores da burguesia monopolista, disfarçam a sua posição objectiva de vende-pátrias, com reivindicações demagógicas, hipócritas e despudoradas de manutenção dos centros de decisão no país, como se a vida não tivesse mostrado mais que convincentemente que só a propriedade pública garante essa manutenção.

    Apoiada no reforço do seu poderio económico, a burguesia monopolista acentuou a sua influência na vida social e política, bem expressa na concentração da propriedade dos principais media nacionais em meia dúzia de grandes grupos, com a redução drástica do espaço para a expressão das necessidades e reivindicações sociais.

    É esta fracção monopolista da burguesia o principal inimigo do proletariado e seus aliados, do desenvolvimento e progresso do nosso país.

    Depois de termos caracterizado os quatro sectores sociais fundamentais da população portuguesa, do ponto de vista do posicionamento de classe – a classe operária, as camadas intermédias assalariadas, as camadas intermédias não assalariadas e a burguesia –, podemos ainda referir dois grupos sociais particulares, cujos efectivos se distribuem por esses sectores, isto é, cujos efectivos já foram contabilizados nessa arrumação e ocupam posições diversas do ponto de vista de classe.

    Trata-se da intelectualidade (ou seja, do conjunto dos intelectuais e quadros técnicos) e do campesinato. Se vale a pena realçar estes grupos é porque constituem objectos particulares da política de alianças da classe operária.

    A INTELECTUALIDADE

    Os intelectuais e quadros técnicos são um grupo social transversal a todas as classes, ou seja, que tem efectivos com relações diferentes com os meios de produção e de troca, com posições díspares no sistema de produção social, em todas as classes. Une-os a característica de na sua actividade profissional e cívica, no papel que desempenham na organização social do trabalho, exercerem predominantemente funções intelectuais qualificadas.

    Enquanto categoria social, o traço mais relevante da sua evolução recente é o crescimento do seu peso na população activa e na massa assalariada. Entre 1991 e 2001, o total dos intelectuais e quadros técnicos empregados, assalariados ou não, excluindo directores e gerentes de pequenas empresas, aumentaram cerca de 55%, para quase 960 milhares. Considerando apenas os assalariados, aumentaram cerca de 70%, uma taxa muito superior à do total dos assalariados, para mais de 850 milhares.

    Destacando, pela sua representatividade e importância social: os dirigentes e quadros superiores das empresas, instituições e administração pública aumentaram perto de metade, para cerca de 120 mil, elevando enormemente a percentagem de assalariados para 87%; os engenheiros, arquitectos e urbanistas aumentaram mais de 60%, para mais de 50 mil, alcançando quase 62% de assalariados; os médicos e veterinários aumentaram mais de 20%, para mais de 35 mil, com quase 80% de assalariados; os enfermeiros aumentaram mais de 20%, para mais de 35 mil, aproximando-se dos 97% de assalariados; os professores aumentaram perto de um terço, para cerca de 210 mil, alcançando praticamente 95% de assalariados; os especialistas e técnicos de profissões administrativas, comerciais e financeiras aumentaram mais de 80%, para mais de 200 mil, aproximando-se dos 86% de assalariados; os advogados, magistrados e outros juristas aumentaram mais de 70%, aproximando-se dos 25 mil, alcançando quase 56% de assalariados; os especialistas das ciências humanas aumentaram mais de metade, para mais de 30 mil, alcançando os 88% de assalariados; os escritores, artistas e executantes aumentaram mais de 60%, para cerca de 15 mil, alcançando os 73% de assalariados.

    A exploração a que estão sujeitos os intelectuais e quadros técnicos assalariados tem-se acentuado, exceptuando aqueles que disfarçam com um salário a pertença às camadas superiores da burguesia ou que são os seus mais próximos auxiliares.

    Degrada-se o seu estatuto social, profissional, laboral e remuneratório, reduzem-se as suas funções de enquadramento e de comando, diminui o seu papel hierárquico, são cada vez mais excluídos das decisões, limitam-se as suas perspectivas de carreira, desqualifica-se em muitos casos o seu trabalho, com a especialização redutora e castradora das suas potencialidades, desaproveitam-se as suas vocações e formação, instrumentaliza-se a sua intervenção social e cívica.

    Tal como para os operários e empregados em geral, as decisões estratégicas das grandes empresas deixaram de ter em conta, e sacrificam com facilidade, o emprego dos intelectuais e quadros técnicos. O desemprego de intelectuais chegou para ficar. O fomentado surto de crescimento do ensino superior privado na década de 90, para além das motivações imediatas do lucro, desresponsabilização estatal e controlo ideológico, teve a função estratégica de criar ou desenvolver, pelo excesso da oferta em relação à procura, bolsas especializadas de desemprego qualificado, de forma a depreciar a força de trabalho dos intelectuais assalariados. Todo o sistema de ensino e formação, orientado no sentido de abastecer um mercado de trabalho cada vez mais estruturado em função dos interesses de acumulação de capital dos monopólios, em vez das necessidades sociais da população e de desenvolvimento do país, contribuiu para numerosas disfunções, subaproveitamentos e desemprego na contratação dos intelectuais e quadros técnicos. Em 2001, o desemprego de trabalhadores com formação superior, completa ou incompleta, ultrapassou os 40 mil, cerca de dois terços dos quais mulheres.

    Precarizam-se as formas de contratação dos intelectuais. Pela sua ligação privilegiada com as inovações científicas, técnicas, culturais e comunicacionais, são particularmente envolvidos em novas formas de trabalho, como o trabalho em rede, o tele-trabalho, o trabalho à distância, mas isso não nega nem o assalariamento de facto de alguns falsos trabalhadores independentes nem a manutenção e mesmo o desenvolvimento de grandes concentrações físicas de intelectuais assalariados, por exemplo nas universidades e hospitais, em números que rivalizam com o dos trabalhadores de grandes empresas.

    Verifica-se uma aproximação geral e uma integração parcial minoritária, mas crescente, dos efectivos da intelectualidade assalariada na classe operária. Subsistem, no entanto, diferenças substanciais dos intelectuais assalariados em relação aos restantes assalariados, que lhes dificultam a tomada de consciência social e que importa ter em conta na acção política. O seu papel na organização social, a sua participação na produção, a natureza da sua actividade, o seu modo de trabalhar, o montante e as formas da sua remuneração, as suas funções de autoridade, a sua ligação e contactos com a direcção das empresas e instituições, as suas possibilidades de ascensão na carreira, a sua formação e qualificações, as suas necessidades, a sua psicologia, os seus percursos sociais, continuam, ainda que de forma menos marcada, a distingui-los.

    CAMPESINATO

    É necessário, antes de mais, fazer um alerta sobre a contabilização, ou estimativa, dos efectivos do campesinato. Dois tipos de estatísticas oficiais são particularmente relevantes. Os recenseamentos gerais da população, que fazem o recenseamento por indivíduo, de dez em dez anos, e os recenseamentos gerais da agricultura, que fazem o recenseamento por exploração agrícola, também de dez em dez anos, mas com um adiantamento de dois anos em relação aos primeiros. Os segundos são mais minuciosos e, embora se corra o risco de contabilizar trabalhadores mais do que uma vez, quando trabalham em mais do que uma exploração, é aquele que as organizações e estudiosos da agricultura consideram mais fiáveis. No entanto, o último recenseamento geral da agricultura foi o de 1999, pelo que já passámos metade do período entre os censos, isto é, o retrato que tira da situação social no campo, para além das questões metodológicas, já está um pouco desactualizado. Para aumentar a confusão, publicações oficiais do Instituto Nacional de Estatística da área, como por exemplo a publicação anual Estatísticas Agrícolas, contabilizam a população activa agrícola com base nos recenseamentos gerais da população.

    De acordo então com os recenseamentos gerais da agricultura, de 1989 a 1999, registou-se uma diminuição acentuada, em 37%, da população agrícola familiar – que inclui quer os membros do agregado doméstico que trabalham quer os que não trabalham na exploração, mais os restantes familiares, remunerados ou não, que nela trabalham regularmente –, que passou de um total de 1,975 milhão em 1989 para 1,235 milhão em 1999.

    Registou-se uma diminuição ainda mais acentuada, em 44%, da sua parte que trabalha na exploração a mais de meio tempo, para cerca de 360 milhares. Em 1999, 83% da população agrícola familiar trabalhava na exploração, mas menos de 10% a tempo completo e apenas 29% mais de 20 horas por semana, o que revela o enorme grau de pluriactividade e a existência de uma massa de efectivos que, pela menor ligação à exploração familiar, do ponto de vista de classe, melhor se enquadram na classe operária ou noutras camadas intermédias (por exemplo, os semi-proletários rurais). [4]

    Globalmente, o trabalho agrícola familiar diminuiu perto de metade. Em 1999, cerca de 30% dos agricultores, familiares ou empresários, tinha uma actividade principal exterior à exploração. Apenas 8,40% dos agregados domésticos rurais vivia exclusivamente da exploração, a grande maioria, quase 70%, apenas vivia secundariamente e, destes, próximo de metade vivia principalmente de pensões rurais ou reformas. A idade média dos agricultores familiares chegou aproximadamente aos 57 anos e a sua percentagem de mulheres aumentou significativamente para 23%.

    De 1988/89 para 1998/99, o trabalho agrícola familiar diminuiu mais do que o assalariado e, dentro deste, o trabalho eventual diminuiu mais do que o permanente (que representa ligeiramente mais de metade do trabalho não familiar). Ainda assim, em 1999, o trabalho agrícola global continuava a ser predominantemente, em mais de quatro quintos, familiar. Desde então, pelo menos até 2003, o trabalho agrícola global continuou a diminuir.

    Verifica-se uma progressiva concentração da superfície agrícola utilizada nos agricultores empresários e nas sociedades agrícolas, que exploravam em 1999 uma área já superior a 80% da superfície dos agricultores familiares. No intervalo dos censos agrícolas, os agricultores familiares diminuíram mais rapidamente que os empresários, o número de sociedades aumentou.

    O campo continua a apresentar uma estrutura económica dual, explorações familiares dominantes no Norte e Centro e grandes explorações de dimensão latifundiária e formas empresariais capitalistas no Sul. Mais de metade das sociedades agrícolas do país, ocupando mais de 90% da área explorada pela sua totalidade, situam-se a Sul.

    Envelhecido, desfalcado pelas migrações para os centros urbanos e o estrangeiro, obrigado parcialmente a vender a força de trabalho para sobreviver, esmagado pela produção estrangeira e a grande distribuição comercial, acusando fortemente o choque da integração comunitária e da imposição de uma política agrícola comum contrária aos seus interesses, o campesinato acelerou a queda do seu peso na população activa.

    É, no entanto, essencial na consideração do peso do campesinato tomar-se em conta, não apenas a sua menor importância numérica, mas também a característica de, juntamente com a classe operária, criar riquezas materiais da sociedade, a sua importância para a economia nacional e a soberania alimentar do país, a sua organização (sobretudo na CNA), mobilização e combatividade, a maior consciência da acuidade da sua situação e da frontal oposição aos monopólios nacionais e estrangeiros, nomeadamente da grande distribuição comercial, a quebra de ilusões e a melhor compreensão do significado da integração comunitária e das implicações para o seu futuro, e, ainda, potencialmente, a maior revolta e a resistência mais encarniçada.

    POPULAÇÃO INACTIVA

    Concluído o estudo da população activa, fica-nos de fora a população sem actividade económica. De 1991 a 2001, diminuiu de 5,469 milhões para 5,366 milhões, tendo diminuído a sua percentagem de mulheres de 60% para 58%, mas é preciso ter presente que, entre as duas datas, a população activa passou a contabilizar-se a partir dos 15 anos, em vez dos 12. A população inactiva constitui, grosso modo, metade da população.

    A população inactiva com 12 ou mais anos em 1991 e 15 ou mais anos em 2001 também regrediu de 3,98 milhões para 3,71 milhões, tendo diminuído a sua percentagem de mulheres de 65% para 62%. A situação de classe dos seus efectivos é geralmente determinada pela classe que integraram durante a vida activa, quando a tiveram, ou pela dos agregados domésticos onde se inserem. No seu âmbito identificam-se quatro grupos principais, junto com a sua evolução de 1991 a 2001:

  • Os reformados, aposentados ou na reserva. Aumentaram 16% os seus efectivos, para 1,935 milhão; diminuíram ligeiramente a percentagem de mulheres para 56%; elevaram mais de um ano a idade média para aproximadamente 68,5 anos; incrementaram os níveis de instrução, com redução dos analfabetos para cerca de 30% e mais do que duplicação dos com formação superior completa ou incompleta para 3%; e aumentaram quase para a totalidade os que vivem principalmente de pensões ou reformas.

  • Os estudantes, contabilizados a partir dos 15 anos. Com cerca de 680 mil efectivos; mais do que duplicaram no ensino superior, tendo aí uma percentagem de mulheres, 58%, cinco pontos acima da média de todo o grupo; e aumentaram significativamente, para mais de 97%, os que vivem principalmente a cargo da família.

  • Os domésticos. Quase na totalidade mulheres; reduziram-se em um terço, para menos de 615 mil, devido ao continuado aumento da taxa de actividade feminina; envelheceram em média quatro anos, para cerca de 49,5 anos; aumentaram um pouco o nível de instrução, reduzindo para menos de metade o número de analfabetas; e mantiveram-se principalmente, em cerca de 85% dos casos, a cargo da família.

  • Os incapacitados permanentes para o trabalho. Aumentaram mais de 90%, para cerca de 175 milhares; cerca de metade são mulheres; envelheceram em média cinco anos, para cerca de 55 anos; aproximaram-se de um terço de analfabetos; e aumentaram significativamente os que dependem principalmente de pensões e reformas, cerca de 70% do total.

    É necessário esclarecer uma aparente incongruência. O número de 1,935 milhão de reformados, aposentados ou na reserva identificados pelo Censos 2001 colide aparentemente com os cerca de 2,6 milhões de reformados – 2.593.400, que recebem pensões estatutárias ou regulamentares, do regime contributivo, ou a pensão social ou do regime especial dos agrícolas, do regime não contributivo, da Segurança Social – existentes actualmente em Portugal. O fundamental da disparidade, descontando já a diferença das datas, é explicado pelo facto de uma fatia considerável destes reformados serem contabilizados pelos censos noutros grupos de inactivos (incapacitados, domésticas e outros) e mesmo, em muito menor grau, de activos.

    Na população inactiva incluem-se, com menor expressão numérica, outros grupos, merecendo referência aquele a que o Marx chamou lumpenproletariado, os vagabundos, os sem-abrigo, as prostitutas, os marginais, os criminosos. Referimo-nos, claro, ao produto da desagregação das camadas populares, agravada com a desestruturação e destabilização económico-sociais resultante da reconstituição do capitalismo monopolista e a agressiva política de direita ao seu serviço, e não, por exemplo, à grande criminalidade, cujos protagonistas se enquadram na burguesia, ou com ela mantêm fortes laços de cumplicidade, nos tráficos de droga, de seres humanos, de armas, na corrupção económica, no tráfico de influências e no branqueamento de capitais.

    CONCLUSÕES

    De um estudo mais desenvolvido e aprofundado da realidade social portuguesa, muito resumido e simplificado no que ficou para trás, podem-se extrair importantes conclusões e ensinamentos, sintetizadas aqui sem grande fundamentação para além daquilo que já foi dito:

    1) A sociedade portuguesa apresenta-se, em termos de classe, fortemente polarizada. Num pólo, a classe operária, a que se agregam os assalariados, os explorados. No outro pólo, a burguesia monopolista, uma ínfima minoria que comanda o sistema de exploração, que aglutina o conjunto das camadas superiores da burguesia, mais os seus auxiliares directos. No meio, as camadas intermédias não assalariadas, que englobam a pequena-burguesia e as camadas inferiores da burguesia.

    2) A sociedade portuguesa acentuou ainda mais a sua polarização. Em termos globais aproximados, o conjunto da classe operária e das camadas intermédias assalariadas aumentou, entre 1991 e 2001, o seu peso na população activa de 75% para 80%. A burguesia e seus auxiliares directos, sem o pequeno patronato, aumentou de 1,9% para 2,5%. As camadas intermédias não assalariadas diminuíram de 21% para 16% (a diferença da soma em relação aos 100% deve-se fundamentalmente a situações real ou estatisticamente indefinidas, incluindo os efectivos das forças armadas, consideradas à parte pela sua especificidade).

    O crescimento do conjunto da classe operária e demais assalariados, por um lado, e das camadas superiores da burguesia e seus auxiliares directos, por outro; a diminuição relativa e absoluta das camadas intermédias não assalariadas; o esvaziamento da pequena-burguesia; o nivelamento pela situação material média da classe operária de largas camadas de assalariados intermédios; a diminuição do trabalho familiar na agricultura; a concentração da propriedade agrícola; a concentração do volume de negócios nas grandes empresas; são indícios seguros de que a sociedade portuguesa acentuou a polarização social.

    3) A grande burguesia reforçou a sua influência, poder e domínio sobre a economia e o conjunto da sociedade. Testemunham nesse sentido a crescente dependência e vulnerabilidade do pequeno e médio patronato, a continuada descapitalização e falência de pequenas empresas, o aumento da superfície agrícola das sociedades rurais, a crescente concentração do volume de negócios nas grandes empresas, o reforço da acumulação e centralização de capital, o poder de monopólio dos grandes grupos económicos e financeiros, a enorme concentração da propriedade dos media em meia dúzia de grupos privados, a alternância no governo de partidos que actuam fundamentalmente como seus dignatários políticos.

    4) Ao mesmo tempo, agrava-se o conflito entre a burguesia monopolista e as outras fracções da burguesia e o conjunto da sociedade.

    5) A burguesia monopolista aprofunda a sua integração, em posições de subalternidade e dependência, com o grande capital transnacional, que a utiliza frequentemente como cavalo de Tróia para se introduzir no mercado português, processo particularmente nítido na privatização das grandes empresas públicas.

    6) Decorre das duas anteriores que a luta contra a burguesia monopolista, conduzida pela classe operária, é simultaneamente uma luta pela independência e soberania nacionais, susceptível de mobilizar uma vasta frente social, incluindo sectores da média burguesia.

    7) A evolução da situação económica e social desde os inícios dos anos 90 confirmou a instabilidade social da pequena-burguesia, que importa ter presente na acção e alianças políticas da classe operária.

    8) O sector social de maior crescimento, que tenderá a prosseguir, foi o das camadas intermédias assalariadas, que aumentaram meio milhão nos dez anos de intervalo dos censos.

    9) A disputa pelos partidos democráticos da representação política destas camadas intermédias assalariadas será um factor determinante das respectivas influências sociais e expressões eleitorais. De que partidos se tornarem os representantes, ou pelo menos os melhores interlocutores, políticos destas camadas dependerá bastante a saída anti-monopolista ou o prosseguimento do bloqueio neoliberal da situação nacional.

    10) A classe operária em Portugal apresenta-se, à entrada deste novo século, numerosa mas menos representada no conjunto dos assalariados, mais diversificada étnica e nacionalmente, mais precarizada laboralmente, sem alterações significativas na sua composição de género, mais envelhecida, mais mas muito insuficientemente qualificada, menos concentrada, mais heterogénea, com diminuição ligeira do peso dos seus efectivos industriais e diminuição substancial, a caminho de se tornar residual, do peso dos seus efectivos agrícolas e das pescas na população activa.

    11) Aumenta a complexidade da composição da classe operária. Agravam-se, nalguns casos, contradições no seu interior, que dificultam a sua coesão e unidade, a formação da consciência de classe e a acção colectiva.

    12) A classe operária não esgotou o seu potencial revolucionário. Mantém uma fortíssima presença numérica no seio da sociedade, de que é, ainda hoje, o principal destacamento. Mas o seu peso, em última instância, para além da sua expressão quantitativa, deve ser avaliado pelo seu papel decisivo na produção de riqueza, pelo seu confronto objectivo com o mecanismo constitutivo da acumulação capitalista – a extracção de mais-valia –, e pela sua intervenção na luta social e política.

    13) A inserção das mulheres na vida activa progride, mas desigualmente. De 1991 a 2001, a percentagem de mulheres manteve-se praticamente constante na classe operária, cerca de 33%; aumentou bastante, aproximadamente de 57% para 61%, nas camadas intermédias assalariadas; manteve-se praticamente constante nas camadas intermédias não assalariadas, cerca de 35%; e aumentou muito na burguesia, sem o pequeno patronato e incluindo os auxiliares directos, aproximadamente de 19% para 28% (mas o aumento, ainda significativo, teria sido menor se excluíssemos os auxiliares). O pequeno patronato reforça a crescente presença das mulheres na burguesia activa. Na população inactiva, a percentagem de mulheres desceu, globalmente, de 60% para 58% (de 65%, nos inactivos com 12 ou mais anos em 1991, para 62%, nos com 15 ou mais anos em 2001).

    14) Reforça-se a importância da aliança da classe operária com os intelectuais e outras camadas intermédias. O envelhecimento do campesinato, o seu cada vez mais reduzido número, contrastando com o cada vez mais elevado número dos efectivos das camadas intermédias assalariadas, contrastando também com o crescimento da intelectualidade, cada vez mais assalariada, não põe em causa o sistema das alianças da classe operária, mas obriga necessariamente a reequacionar os pesos das suas componentes. Emblemático e significativo, há actualmente em Portugal mais estudantes do ensino superior que camponeses recenseados na população activa.

    Neste artigo preocupámo-nos essencialmente com a análise da pertença objectiva de classe. Esta deve ser complementada com a análise dos mecanismos que promovem ou dificultam a formação da consciência de classe. Para que possamos, como lutadores da causa socialista, intervir à altura das nossas responsabilidades no exigente e exaltante processo de transformação da sociedade.

    Notas:

    [1] Numa estimativa com fundamentação prudente mas algo controversa, a ser tomada como uma primeira aproximação, podemos avaliar os efectivos da fracção da intelectualidade assalariada que integra a classe operária, em 2001, em cerca de 130 mil empregados, representando qualquer coisa como 3,4 % da massa assalariada e 2,8% da população activa e tendo aumentado o seu volume aproximadamente em 80% desde 1991.

    [2] Na sociologia marxista, ou de inspiração marxista, há uma grande confusão na utilização dos conceitos de pequena-burguesia e burguesia. Trabalha-se, explícita ou implicitamente, com definições diferentes, que correspondem a conceitos nem sempre coincidentes.

    Assim, por exemplo, alguns livros, manuais, ensaios, estudos, artigos, etc, resumindo, em algumas obras, a burguesia é definida simplesmente como a proprietária dos meios de produção (em sentido lato, de produção e troca), independentemente ou não de explorar trabalho humano. À sua fracção exploradora dá-se o nome de capitalista e designa-se por média e grande burguesia (para, dito com esquematismo e simplificação excessivos, distinguir por exemplo os pequenos e médios empresários dos grandes empresários); à sua fracção não exploradora, aos proprietários de instrumentos e condições de trabalho que exercem a sua actividade profissional por conta própria, ou com recurso apenas a trabalho familiar (ou, vá lá, a um número pequeníssimo de assalariados), designa-se por pequena burguesia. Teríamos assim a pequena burguesia e a média e grande burguesia.

    Noutras obras, diferentemente, a pequena-burguesia é definida como a classe dos trabalhadores por conta própria, possuidores de meios de trabalho, ditos “independentes” porque donos das próprias condições de trabalho, que exercem a sua actividade com recurso apenas a trabalho familiar, sem contratação de trabalho assalariado (ou, vá lá, apenas em quantidade muito reduzida); definição coincidente com a de pequena burguesia do parágrafo anterior. A diferença surge em relação à burguesia, que é definida fundamentalmente como a classe proprietária dos meios de produção, que utiliza com recurso à contratação de trabalho assalariado, e que, por isso, explora trabalho alheio, além do próprio e familiar; esta definição coincide com a de fracção capitalista da burguesia do parágrafo anterior, nesta definição burguesia e classe capitalista são sinónimos. Uma dificuldade que surge imediatamente é que esta classe, a burguesia, costuma, para efeitos de análise, ser dividida em pequena burguesia (sem hífen a separar, talvez melhor: burguesia pequena), média burguesia e grande burguesia, dependendo da quantidade de meios de produção, ou da quantidade de capital, possuídos. A pequena burguesia, ou talvez de modo mais claro, a burguesia pequena, neste contexto, engloba as camadas inferiores da classe (esquematicamente, por exemplo, os pequenos empresários), diferenciadamente da média e grande burguesia (esquematicamente, os médios e os grandes empresários). A terminologia em português presta-se a confusões entre a pequena-burguesia (com hífen) e a pequena burguesia (sem hífen), a classe da pequena-burguesia e as camadas inferiores da classe da burguesia, entre a pequena-burguesia e a burguesia pequena. A língua inglesa, por exemplo, não tem este problema, permitindo distinguir entre “petty bourgeoisie” – a classe da pequena-burguesia – e “small bourgeoisie” – as camadas inferiores da burguesia.

    Contribuindo para aumentar a confusão, certos autores não admitem a inclusão de nenhum empregador, mesmo que de um número muito pequeno de trabalhadores assalariados (por exemplo, um ou dois, no máximo), na pequena-burguesia, que reservam como designação exclusiva dos trabalhadores por conta própria (e familiares) estritamente não empregadores; mesmo que a contratação de um número muito reduzido de assalariados não seja suficiente para obter um lucro razoável, nem sequer para libertar o empregador da necessidade de trabalhar também para viver. Outros autores, opostamente, incluem todos os micro-empresários (e até pequenos-empresários), por exemplo empregadores de até 10 trabalhadores, na pequena-burguesia, reservando a designação de burguesia, ou de média e grande burguesia conforme a terminologia empregue, para os médios e grandes empresários. Não é preciso buscar as estatísticas para perceber que estas definições podem engordar ou emagrecer substancialmente a classe da pequena-burguesia e a classe da burguesia.

    [3] Numa perspectiva demasiado restritiva, mas que delimita melhor as suas camadas superiores, a burguesia, sem o pequeno patronato e sem os “directores de produção, exploração e similares” não empregadores (isto é, conservando estes directores de empresas, ou de áreas de actividade e serviços de empresas e instituições, que sejam empregadores), aumentou, no mesmo período, ligeiramente mais de metade os seus efectivos, elevando o seu peso na população activa para cerca de 1,6%.

    [4] De acordo com os censos gerais, separando por estimativa a agricultura das pescas, de 1991 para 2001, o campesinato recenseado na população activa diminuiu para menos de metade, para menos de 120 milhares. Como compatibilizar esta informação com os 361.227 que, segundo o último censo agrícola, trabalhavam em 1999 mais de 20 horas na sua exploração?

    a) Boa parte dos 361.227 devem ser reformados que podem (erradamente) ter sido classificados nos inactivos. Apesar de não termos dados que permitam averiguar para a população familiar, o facto de aproximadamente 40% [39,54%] dos agricultores, familiares ou empresários, que trabalham mais de 20 horas por semana, terem pelo menos 65 anos de idade sugere que uma grande fatia da população familiar com o mesmo tempo de actividade deve ser também idosa e, em geral, reformada ou pensionista, podendo aparecer como inactiva no Censos 2001.
    b) Parte dos restantes podem ser desempregados que se ocupam ou entretêm no trabalho da exploração, mas que não deixam de se considerar e declarar desempregados, nomeadamente no inquérito do Censos 2001.
    c) Parte, igualmente, podem ser domésticas, que consideram como tal o seu trabalho, e por isso ter sido catalogadas (erradamente) no Censos 2001 como inactivas.
    d) Parte, também, podem ser trabalhadores que têm outra actividade profissional e que no Censos 2001 se recensearam por essa actividade.
    e) Parte, ainda, podem ser familiares remunerados não pertencentes ao agregado doméstico, que, apesar de integrarem a população familiar, foram correctamente classificados como assalariados agrícolas no Censos 2001.

    A incongruência é, por outro lado, muito ligeiramente agravada, porque, ao contrário do Censos 2001, o RGA 99 não considera os trabalhadores florestais (que, não se tratando de assalariados, são poucos).

    É preciso, finalmente, ter presente que, no intervalo de dois anos entre os dois recenseamentos, o agrícola e o geral, o número de camponeses continuou a diminuir (e continua depois disso). Tudo isto ajuda a atenuar a disparidade entre os dois recenseamentos e a compreender os números surpreendentes dos censos gerais, fortemente contestáveis, segundo os quais o campesinato registou uma queda do seu peso na população activa de 6,4% em 1991 para 2,4% em 2001, ameaçando tornar-se residual.

    [*] Investigador. Este artigo é o desenvolvimento de outro, publicado em duas partes na revista O Militante de Novembro/Dezembro de 2004 e Janeiro/Fevereiro de 2005. Sendo da responsabilidade do autor, beneficiou muito da discussão colectiva preparatória, de contributos diversos inseridos nessa discussão e das conclusões do XVII Congresso do PCP, realizado em finais de Novembro de 2004.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

  • 22/Mar/05