Carta aberta ao Presidente da República

por Júlio Marques Mota [*]

Coimbra, 15 de Dezembro de 2010

Exmo. Senhor Presidente da República

Com conhecimento: ao Primeiro-Ministro, ao Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e aos líderes parlamentares.

Senhor Presidente, tomo a liberdade de lhe escrever esta carta porque, enquanto professor e cidadão, estou altamente preocupado com a erosão do tecido social em Portugal, e na Europa também, fruto não só da terrível situação de crise dita financeira pela qual estamos a passar e que é, sobretudo, o resultado do modelo económico, social e político que lhe está subjacente e preocupado igualmente estou, e muito, com a situação de crise que atravessa a Universidade em Portugal, fruto sobretudo de políticas anteriormente seguidas, fruto sobretudo da reforma de Bolonha, fruto portanto do mesmo modelo de referência que nos levou à situação actual. Uma Universidade em profunda crise e tão grande, na minha opinião, que não posso deixar de colocar aqui e de deixar à sua apreciação as razões do meu descontentamento.

Senhor Presidente, a crise da dívida soberana portuguesa amainou, o espectáculo oferecido pelos políticos dos dois maiores partidos, esse transitoriamente ao mesmo nível ficou, nos grandes bancos o nosso dinheiro, esse se embolsou, e o povo, esse continua a não perceber o que ninguém nunca lhe explicou: porque está a sofrer cada vez mais, a pagar cada vez mais e a dever cada mais e em nome de quê ou porquê? Que terá ele feito de mal para sofrer esta violência, agora? Num mundo e numa sociedade onde impere a honestidade, a justiça, a transparência, numa sociedade de profunda raiz democrática portanto, cada um deve ser responsável pelos seus erros e deve saber assumi-los; mas então que alguém lhes diga, a eles e a nós também, senhor Presidente, quais os erros que cada trabalhador desempregado neste sistema cometeu para que agora se deva sentir penalizado, quais os erros que levam a que cada criança com fome nele e dele se possa sentir culpada, quais os erros que cada velho que passou a vida a trabalhar duramente deles se possa sentir responsável para que veja os seus direitos de há muito tempo adquiridos agora fortemente anulados? Que haja alguém que lhes explique, pelo menos a eles, aos desempregados, às crianças com fome e com pobreza garantida como futuro, aos velhos que do passado foram bem enganados, para onde foram os vários milhares de milhões de euros que do bolso de cada um deles e de todos eles foram retirados para no BPN serem aplicados sem que nada tenha sido tocado na Sociedade Lusa de Negócios nem em ninguém que deles muito antes os delapidou e então, aqui, foi a favor de quem? Ninguém, nunca ninguém lhes disse nada, senhor Presidente, e todos nós lamentamos que assim tenha sido.

Um economista moderado, Thomas Piketty, a lembrar um outro intelectual importante dos tempos de Marx, Proudhon, num recente artigo sobre o salvamento da Irlanda, sobre o resgate dos bancos irlandeses, chama a tudo isto um nome. Passo a citar: "Digamo-lo claramente. Deixar que países que se enriqueceram graças ao comércio intra-europeu absorvam em seguida a base fiscal dos seus vizinhos, isto não tem rigorosamente nada a ver com os princípios da economia de mercado ou com o liberalismo. Isto só tem um nome e chama-se: roubo. E ir emprestar dinheiro às pessoas que nos roubaram, sem nada exigir em troca para que isso não se reproduza, a isto chama-se estupidez."

Senhor Presidente, no país em que o senhor é Presidente, como em toda a Europa aliás, porque a massa da classe política actualmente no poder é toda ela a mesma ao nível das atitudes e dos princípios, é assim que genericamente as pessoas se sentem, isto é, sentem-se materialmente roubadas e intelectualmente de estúpidas consideradas. Um dos muitos exemplos possíveis, vemo-lo agora na Irlanda com o banco Anglo Irish Bank em que, falido, nacionalizado, pelo contribuinte a ser financiado, vem agora declarar que vai dar de bónus este ano 400 milhões de euros. E que responde o Governo de lá? Que vai sobretaxar os bónus do ano que vem! Um outro exemplo vemo-lo aqui e agora, em Portugal, como noutros países e por outros governos socialistas chamados, a permitir-se a antecipação de dividendos para evitar o pagamento de impostos que seriam exigidos para o ano, ou ainda o regime de favor que se criou aos grandes grupos financeiros com a isenção fiscal sobre as mais-valias ganhas com a venda da Vivo pela PT, tudo isto acompanhado por um discurso a nunca esquecer proferido recentemente na nossa Assembleia da República em nome dos grandes accionistas, pelo líder do maior grupo parlamentar, a outros tempos nos fazer lembrados. A lógica é a mesma, o comportamento é o mesmo, e já não é uma questão da direita ou da esquerda que está no poder. Recuando um pouco, na Islândia, enquanto se deixava, como agora na Irlanda, que as grandes fortunas escapassem, defendo-se a liberdade absoluta dos movimentos de capitais, o governo pedia à Igreja que mantivesse as portas abertas mais tempo, para que as pessoas pudessem pedir auxílio a Deus, chorar, rezar! A lógica é a mesma, o comportamento é o mesmo, e já não é uma questão da direita ou da esquerda que está no poder, é uma questão de quem actualmente está no poder; é, sendo assim, uma crise de valores, uma crise profunda do sistema democrático que está em movimento. Movimento para onde? Lamentável imagem que se dá da democracia. Sobre isso vale a pena lembrar Helmut Schmidt na sua recente entrevista sobre a crise europeia: "Posso dizer que, de uma maneira geral, à Europa faltam dirigentes. Faltam personalidades, à frente dos Estados nacionais ou nas Instituições europeias, que tenham um conhecimento suficiente das questões nacionais e internacionais e que façam prova de uma capacidade de julgamento adequada".

Senhor Presidente, a crise da dívida soberana portuguesa amainou, o espectáculo oferecido pelos políticos dos dois maiores partidos, esse transitoriamente ao mesmo nível ficou, mas o nosso país, o país de todos nós e que todos nós fazemos, os que trabalham, esse, não parou, nem a roda dentada da História, assim o considerou. Como nos lembra Alice no País das Maravilhas, vai-se sempre para qualquer lado mesmo que para nenhum lado se queira ir. Mas creio, profundamente creio que eu e que todos nós, sabemos que por este caminho que nos estão a impor, o lado nenhum para onde nos estão a empurrar é um verdadeiro desastre nacional onde vai imperar o desemprego e a miséria, senão também a fome e a desestruturação da sociedade portuguesa também.

Senhor Presidente, antes de estalar a crise, dita financeira, esteve toda a Europa sujeita a um tsunami silencioso mas, por definição, poderoso, que é a lógica implacável do neoliberalismo imposta pela classe política no poder e em nome da modernidade. Foram as instituições que durante trinta gloriosos anos animaram o crescimento económico e que eram a base do Estado-Providência que têm sido uma a uma minadas, descaracterizadas, quer ao nível do trabalho, da saúde, da educação, da segurança social, quer da visão global de sociedade e do seu futuro. Foi esse trabalho profundo e subterrâneo que agora nos torna vítima da voragem que os políticos no poder e os grandes financeiros nos querem impor e de que até agora temos sido incapazes, todos nós, de lhes resistirmos e de nos sabermos deles defender.

Senhor Presidente, neste tsunami silencioso que vem de longe, de muito longe como diz o poeta/cantor, nesse tsunami silencioso inscreve-se a reforma de Bolonha do ensino superior, em que com ela, e na minha opinião, a Universidade está lenta mas implacavelmente a ser destruída. Com esta reforma, passámos a considerar as Universidades como o espaço onde não se pode ensinar pouco mais que generalidades e não creio honestamente, por maior que seja o esforço, que neste momento se possa passar para além disso. Onde deixa de haver capacidade de pensar, não pode haver, logicamente, capacidade de se ensinar. Com esta reforma, aí temos a Universidade a transformar-se num deserto de ideias , onde o acto de pensar, reflectir, criticar, argumentar, reconstruir, parece arredado na formação universitária dos jovens; se assim é, ensinar, no verdadeiro sentido da palavra, é agora apenas uma possibilidade virtual. O que desta reforma nos fica é a certeza de que se quer que o ensino represente menos despesas públicas no orçamento do Estado , sacrificando-se com isso a nossa juventude, os nossos filhos e os nossos netos, no altar da redução do défice público. É assim uma luta contra o tempo, é a luta pela compressão do estudo ao tempo mínimo e ao custo mínimo, como se valha mais ter um jovem deficientemente formado e na rua à procura de emprego do que um jovem de profundos conhecimentos capacitado na mesma situação, pois aquele representa um menor desperdício financeiro. Com a reforma de Bolonha, permitiu-se que se generalizasse uma forma de "ensino" mais leve para quem ensina e tem muitas outras ocupações mais rentáveis, mais leve para quem não quer entender que um professor tem a difícil função de apoiar os estudantes na descoberta do mundo que lhes é dado, do mundo que lhes cabe a eles refazer, tem a difícil função de os apoiar a ganharem novas formas de estar e de enfrentar o mundo hostil que lhes estamos a criar, tem a difícil função de estar intelectualmente disponível para os ajudar a que cresçam num profundo espaço de cidadania, a Universidade que desejamos, como cidadãos e como técnicos. Em suma, apoiá-los no seu desejo de transformar o mundo de modo a que a vida lhes confira sentido e, com este, sejam eles a conferir sentido ao mundo que conscientemente desorganizámos! Em vez disto, o que está a ser feito, no reino da facilidade com o processo de Bolonha já instalado, é tornar a vida muito mais leve para aqueles que não ensinamos e não ensinamos agora nem a ler ou a escrever bem nem, muito menos, a estudar bem. Isto é enganá-los, é dar-lhes uma forma de estar na vida pessoal e profissional que esta não comporta. Fornecedora de diplomas de não empregabilidade é o que a Universidade se apresta agora a ser, com o nível de licenciatura, o primeiro ciclo, que fornece.

Passemos um grau acima, passemos aos mestrados. Segundo sinais dos mercados quanto a empregos, e estes sinais valem o que valem, a preferência está a ir para os detentores destes diplomas, a começar pela Assembleia da República. A ser assim, isto significa, com o silêncio e os medos que se estão a abater sobre a sociedade portuguesa, o reconhecimento indirecto mas claro de que as licenciaturas pouco ou nada valem. Simplesmente, sejamos todos honestos. Se não produzimos licenciaturas de qualidade também não poderemos, de modo nenhum, ser capazes de fornecer mestrados de qualidade, porque só se ensina o que os outros são capazes de aprender, e estes, os nossos estudantes, já deixaram de saber o que é profundidade de ensino. Para o fazermos, seria então necessário muito trabalho para contrariar e vencer a redução de capacidades de que a Universidade foi entretanto o produtor exclusivo! A minha ideia e a daqueles que a vão dizendo em surdina é a de que simplesmente muitos dos mestrados estarão a ter um nível inferior ao da própria licenciatura. Não passa de uma ideia, de uma opinião, mas é opinião de quem tem estado desde há muito tempo no terreno, mesmo que esta opinião seja no papel contestada por alguns daqueles que fazem a ciência nos nossos dias e ignorada pela maioria de todos os outros.

A revolução francesa deu-nos uma trilogia: liberdade, fraternidade e igualdade, só conjugáveis duas a duas, o neoliberalismo deu-nos a dualidade, to be or not to be, to have or not to have, e Bolonha, uma reforma organizada no interior do modelo neoliberal, na sua expressão mais forte e mais dura, aplicada à Universidade, leva-nos a uma outra trilogia: to be or not to be, to know or not to know e então to have or not to have. Mas aqui já não se conjugam duas a duas! Vou porém mais longe, quanto ao to know or no to know. Se a dualidade existe, se se verifica esta oposição binária, então garantidamente esta deve-se mais à formação de origem dos nossos alunos do que à qualidade de ensino que as estruturas de Bolonha levaram a ser ensinado, porque com estas estruturas nem elites capazes são possíveis de ser formadas no reino da facilidade agora instalado. Em lado nenhum do mundo as elites podem ser criadas assim e não será agora aqui, com certeza, que se iria operar o milagre. Não o creio. Mas então a pergunta: para que serve esta Universidade? Assim, como a vejo, só lhe vejo um sentido e um muito mau sentido: o de fazer a diferenciação no elevador social pelos diplomas, e a diferenciação nestes pelo dinheiro que se possa ter à partida, ou seja, à nascença. Da licenciatura ao mestrado do mestrado ao doutoramento serão anos a mais e muito mais dinheiro a gastar para exibir esse ticket de modo a poder subir uns andares a mais no referido elevador social que aliás bem mostras tem dado, desde há muito tempo, de estar avariado. Se isto é assim, o que reflecte esta situação? Ou, por outras palavras, o silêncio sobre a sua existência o que representa? A comodidade do nosso silêncio talvez, mas esta deve ser transformada na incomodidade das nossas recusas.

Hoje será a última aula teórica que dou como professor da disciplina de Economia Internacional, na licenciatura em Economia. Vou aposentar-me e não voltarei mais a leccionar estas matérias. Como o disse num outro contexto, saio por opção antes do final do meu contrato, já com anos de trabalho gratuitamente oferecidos ao meu país, saio vencido pela incapacidade de aceitar o que se está a fazer da Universidade e de nem sequer compreender os objectivos de missão que agora lhe estão subjacentes. Sempre me recusei a conviver com o regime de simplificação e de mentalidade que lentamente Bolonha instalou nas nossas vidas e nas nossas próprias subjectividades e não queria deixar esta disciplina sem o sinal de protesto que se me exige como professor, como cidadão, como pai e como avô. Faço-o solicitando que se procure perceber bem o que se passa no nosso ensino superior, faço-o apelando para se que encontrem respostas para os graves problemas da juventude de hoje, e que não seja esta a geração perdida de depois de amanhã, como o assinala a OCDE e o FMI, faço-o para que honestamente se questione que tipo de Universidade é que o país precisa.

Escrevo em má altura, numa altura de fanfarra pelos dados da OCDE, na base de inquéritos feitos em escolas, mas faço-o nesta mesma altura em que é evidente que a maioria dos filhos intelectuais de Sócrates e de Maria de Lurdes Rodrigues que entraram nas Universidades com altas notas a matemática, há três anos, mostram uma pobreza intelectual aflitiva. Dada a identificação pretendida, quer pelo Governo quer pela OCDE, dos resultados de PISA com a política de educação do actual primeiro-ministro, seria de esperar que os alunos que há três anos chegaram às Universidades reflectissem a mesma política de ensino. Mas a ser assim, das três uma: ou a selecção das escolas deformou os resultados, ou os alunos bons foram não sei sequer para onde, pois para as engenharias também não foram, a fazer fé no jornal O Público, que nos diz que uma parcela significativa dos estudantes do IST não faz operações algébricas simples, e nas outras Faculdades ninguém os vê, ou a maioria dos "beneficiados" desta política nunca conseguiram chegar à Universidade a não ser que venham a entrar depois de atingirem 23 anos, e isto mais uma vez de acordo com o espírito de Bolonha e de acordo com legislação aprovada pelo ministro da tutela, Mariano Gago. Independentemente dos resultados e das leituras que sobre estes têm sido feitas, o que se vai vendo, ouvindo e sentindo, é que os alunos de hoje, 2010, não são melhores que os dos anos transactos, dispõem de menos conhecimentos e de uma menor capacidade de aprendizagem, mas vontade de aprender, essa, ainda a têm. Dê-se-lhes tempo e meios e muitos deles poderão ainda vir a ser os técnicos a que socialmente aspiramos. Não os defraudemos, portanto.

Senhor Presidente, nesse sentido lhe deixo aqui, o texto de uma exposição feita em Lisboa sobre a reforma Bolonha, lhe deixo aqui a expressão das minhas angústias quanto ao futuro da Universidade em Portugal. Ironia da história, senhor Presidente, fui seu aluno e nessa época seu crítico fui, na qualidade de estudante, como o foram também Ferro Rodrigues, Augusto Mateus, Carlos Pimenta, Félix Ribeiro, Francisco Soares e tantos outros, com quem se partilhou perspectivas outras de Universidade que a de então mas também necessariamente muito diferentes daquelas com que nos deparamos actualmente. E hoje, de igual modo seu crítico sou, senhor Presidente, por não partilhar da mesma visão do mundo, mas é ao nosso Presidente que agora me dirijo, a si portanto, que venho com esta carta apelar para que se questione seriamente o que é a Universidade de hoje, o que queremos como Universidade de amanhã e, sobretudo, que nos preocupemos seriamente com a nossa juventude. De novo, ironia das ironias, tal como em criança fiz o protesto admissível ao ministro da Educação de então, protesto não divulgável porque estávamos em fascismo, hoje, em democracia, dirijo-me a si, senhor Presidente, fazendo o protesto possível, mas agora necessariamente aberto a todas as formas de divulgação que são próprias de quem resiste em nome da cidadania e do desejo de uma sociedade mais justa, mais solidária, mais ambiciosa nos seus projectos, faço-o, porque confio também agora no sistema, confio na Democracia que representa, confio na dignidade do cargo que ocupa e faço-o num momento em que sinto que as Instituições Governamentais estão a ficar de costas voltadas para as grandes missões de interesse público. E nestas está necessariamente, a imposição de não deixarmos que se deixe destruir a juventude de hoje, está a obrigação de tudo fazermos para que esta não se transforme irrecuperavelmente numa lost generation.

Senhor Presidente, parafraseando Thomas Piketty no artigo citado, considero que é urgente que os dirigentes portugueses, assim como todos os dirigentes europeus e todas as Instituições da União Europeia, tenham finalmente a coragem de ter uma visão nacional e europeia solidária e ambiciosa para se sair da crise actual e esta não é só financeira como nos querem fazer crer, esta atinge tudo o que é socialmente significativo na sociedade portuguesa. Comecemos nós por compreender a necessidade da existência dessa coragem.

Consciente de que é necessário perceber a dimensão do desastre que se está a criar e também a dimensão do mal-estar que a muitos docentes está a condicionar, espero, senhor Presidente, que este meu apelo seja entendido e com esta esperança lhe peço que aceite os meus respeitosos cumprimentos.

Júlio Marques Mota
Professor Auxiliar
Faculdade de Economia
Universidade de Coimbra

O original encontra-se em estrolabio . Os sublinhados a negro são da responsabilidade de resistir.info.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
18/Dez/10