Carta Aberta às minhas irmãs, aos meus irmãos do NÃO
por Padre Mário de Oliveira
[*]
1. Se vão votar NÃO, porque pensam que a pergunta que vai a
referendo dia 11 de Fevereiro 2007 é se somos a favor do aborto ou
contra o aborto, então deverão reconhecer que estão
enganados, porque a pergunta que vamos referendar, sim ou não,
não é essa. Se fosse, também eu votaria NÃO. A
pergunta é se concordamos com a despenalização das
mulheres que porventura abortem nas primeiras dez semanas de gravidez. Por
isso, eu voto SIM. Porque uma lei assim, que despenaliza as mulheres que
abortem nas primeiras dez semanas de gravidez acaba de vez com a lei que
está actualmente em vigor e que condena as mulheres que abortarem, mesmo
naquelas condições, até três anos de prisão,
depois de as ter humilhado publicamente num julgamento quase sempre mediatizado
nos tribunais.
2. Mas vós, minhas irmãs, meus irmãos do NÃO,
devereis ter em consideração um outro pormenor importante e,
então, talvez passareis do NÃO ao SIM. É que com o vosso
NÃO estais a dizer à Sociedade civil e ao Estado português
que quereis que as mulheres que decidiram abortar nas primeiras dez semanas de
gravidez continuem a poder fazê-lo apenas na clandestinidade; e, se
são pobres e vivem em condições de
degradação e no seio de famílias completamente
desestruturadas, que continuem a fazê-lo apenas nas
abortadeiras/habilidosas, com todos os riscos para a sua saúde e sempre
com o medo de virem a ser denunciadas, presas e condenadas em tribunal.
É isto que queremos para as mulheres pobres que decidirem abortar nas
primeiras dez semanas de gravidez? Que elas o façam apenas nestas
condições de desumanidade? Eu, por mim, não quero que
semelhante situação de desumanidade se arraste por mais tempo e
por isso voto SIM à lei que vai a referendo. Porque com a
aprovação da nova lei, também as mulheres pobres que
decidam abortar passam a poder fazê-lo (nunca serão obrigadas a
fazê-lo e oxalá elas não queiram nunca fazê-lo!) nos
estabelecimentos públicos de saúde ou noutros devidamente
autorizados, o que é muito menos traumatizante para elas e muito menos
perigoso para a sua saúde (ora, como sabem, as mulheres pobres
também são pessoas, não apenas as mulheres ricas e com
estudos para facilmente se desenrascarem em situações como esta
de que estamos aqui a tratar, a duma gravidez indesejada e não
assumida). Não quereis acompanhar-me neste voto SIM? Não vedes
que o vosso voto NÃO acaba por ser cruel, já que condena as
mulheres pobres que abortem (as ricas safam-se sempre, porque têm outros
meios para isso) a fazê-lo apenas na mais abjecta clandestinidade e
às mãos de abortadeiras/habilidosas?
3. Mas há outro pormenor que deveis ter em conta e que não posso
calar por mais tempo. Com o vosso NÃO à lei de
despenalização do aborto estais a impedir que as mulheres
grávidas passem a estar no centro da decisão de levar por diante
a gravidez, ou de a interromper, caso seja esta última hipótese a
sua escolha, sempre dolorosa, indubitavelmente, e por demais difícil,
mas a sua escolha. E porquê? Porque a lei que vai a referendo diz que
só poderá haver aborto nas primeiras dez semanas de gravidez, nos
hospitais ou outros estabelecimentos de saúde devidamente autorizados,
por opção da mulher grávida. E este é, para mim, o
aspecto mais importante da pergunta e da lei a referendar. Porque coloca as
mulheres no centro da decisão. É por opção delas,
não é por opção nem dos pais, nem do marido, nem do
namorado, nem das amigas, nem da pressão social, nem do Estado, nem do
pároco, nem do confessor ou director espiritual, nem do bispo, nem do
papa. Apenas por opção das mulheres na condição de
grávidas. É por isso que eu voto SIM. E gostava que todas as
minhas irmãs católicas, todos os meus irmãos
católicos me acompanhassem neste SIM.
4. E aqui tenho que fazer uma pausa e perguntar-vos: Sabeis porque a hierarquia
da nossa Igreja católica os bispos e os párocos se
mostra tão furiosamente contra a lei de despenalização do
aborto? (eles preferem dizer que são furiosamente contra o aborto e
evitam falar em despenalização do aborto, mas é a
despenalização do aborto que vai a referendo, não a
liberalização do aborto e muito menos a sua
imposição; porque se fosse, também eu, como já
disse, votaria NÃO, obviamente). Vou revelar-vos o segredo, nem que, por
causa disso, os nossos bispos se zanguem comigo. A verdade é para se
dizer e praticar, porque só a verdade, como diz Jesus, o do Evangelho de
João, nos faz livres. Os nossos bispos, devido, sobretudo, à
(de)formação clerical que receberam e da qual não querem
abdicar, para não perderem o lugar nem os privilégios, não
admitem, não podem admitir que alguma vez as mulheres estejam no centro
de decisões tão importantes como esta que vai a referendo dia 11.
Apenas eles, nunca elas! Como sabeis, sempre foi assim nos tempos da velha
Cristandade Ocidental e na Idade Média. Mas não pode continuar a
ser assim. Vede, por exemplo, o que eles bispo de Lisboa, párocos
de VN Ourém, confessores/directores espirituais no início
do século XX, fizeram com a pequenita Lúcia, de Fátima;
como a meteram no Asilo de Vilar, no Porto, a levaram sequestrada para um
convento na Galiza e, depois, não satisfeitos, ainda a meteram num
convento de clausura, até ao fim dos seus dias, sem que a pobre alguma
vez pudesse decidir sobre a sua vida e o seu futuro
É isto humano?
É isto evangélico? É isto cristão jesuânico?
Os bispos e os párocos acham que são os únicos que sabem o
que as mulheres devem fazer ou deixar de fazer, em matérias tão
delicadas como as da bioética. Como diz a nova novela das noites da
RTP1, Paixões Proibidas, as mulheres não têm
que pensar, saber, entender coisa nenhuma. Apenas têm que obedecer ao pai
e, na sua ausência, ao irmão mais velho e, depois de casar, ao
marido; finalmente, ao pároco, ao bispo, ao papa. Ora, é aqui que
reside todo o valor evangélico e cristão jesuânico da
pergunta e da Lei a referendar dia 11. Por opção da
mulher. Os bispos e os párocos que estão em campanha pelo
NÃO querem convencer-nos que isto é arbitrariedade, mas
não é. Isto é Maioridade, é Liberdade, é
Reponsabilidade. E só por esta via chegaremos a ter mulheres
verdadeiramente adultas, livres, responsáveis. E só com mulheres
assim, bem no centro das decisões que a elas dizem respeito, é
que se dá glória a Deus e poderemos construir uma sociedade
humana e sororal.
5. Finalmente, deixo-vos, irmãs católicas, irmãos
católicos, mais uma revelação decisiva para mudardes o
vosso voto do NÃO para o SIM. Já reparastes (infelizmente,
não temos procurado ser católicos bem informados e andamos quase
sempre muito distraídos do essencial) que o Código de Direito
Canónico (CDC), da Igreja, ainda é mais penalizador contra as
mulheres católicas que abortarem do que a actual lei do Código
Penal português? Vede só esta barbaridade canónica: as
mulheres católicas que abortarem ficam automaticamente excomungadas,
portanto, fora da comunhão da Igreja! Nem é preciso o Tribunal
eclesiástico proferir a sentença. É automático!
Porém, se as mulheres católicas grávidas, para não
serem excomungadas, decidirem levar a gravidez ao fim e, logo após o
parto, matarem o bebé, já não sofrem qualquer
sanção canónica. Cometem, obviamente, um pecado mortal de
infanticídio, mas não sofrem nenhuma sanção
canónica. Estremeceram com o impacto desta revelação? Mas
a realidade é esta. E porquê esta sanção
canónica contra as mulheres que abortam e não contra as mulheres
que matem o próprio bebé acabado de nascer? Porque decidir levar
a gravidez ao final ou abortar é uma opção que só
as mulheres grávidas podem protagonizar. Mais ninguém. E para que
nunca as mulheres sejam sujeito de opções de tanta monta,
é que a hierarquia católica recorre à excomunhão, o
que, reconheça-se, em tempos de Cristandade como eram os da altura em
que o CDC foi publicado, era praticamente o mesmo que matar as mulheres por
apedrejamento. Mas digam-me uma coisa, irmãs, irmãos: Sem
mulheres desta estatura moral, capazes de optar em matérias de tanta
monta, ainda se pode falar em mulheres? Ou apenas em coisas, ou em simples
barrigas de aluguer?
6. Pensem nisto e votem SIM, como eu, para que a nova lei que vai a referendo
seja aprovada. Com este voto SIM estaremos, como católicas, como
católicos, a dizer também à hierarquia da nossa Igreja
católica que altere o CDC e deixe de excomungar as mulheres que abortem,
tal como o Estado português irá deixar de as penalizar com
prisão até três anos, se a lei for aprovada, como espero.
Percam os medos, irmãs, irmãos. Pensem pela vossa cabeça.
E decidam segundo a vossa consciência pessoal. Deixem de pensar e de
decidir pela cabeça e pela consciência funcional do clero.
Façam como eu que penso pela minha cabeça e decido segundo a
minha consciência pessoal. E por isso voto SIM no referendo do dia 11.
Quem de vós me acompanha nesta liberdade/responsabilidade?
Dou-vos o meu afecto e a minha Paz.
[*]
Mário,
Presbítero da Igreja do Porto
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|