Carta Aberta para Judite de Sousa Programa Olhos nos Olhos
por José Manuel Catarino Soares
[*]
Lisboa, 15 de Outubro de 2013
Exma. Sra. Dra. Judite de Sousa
O
programa Olhos nos Olhos que foi hoje para o ar (14/10/2013)
ficará nos anais da televisão como um caso de estudo, pelos
piores motivos.
Foi o mais execrável exercício de demagogia a que me foi dado
assistir em toda a minha vida num programa de televisão. O que os
senhores Medina Carreira e Henrique Raposo disseram acerca das pensões
de aposentação, de reforma e de sobrevivência é um
embuste completo, como demonstrarei mais abaixo. É também um
exemplo de uma das dez estratégias clássicas de
manipulação do público através da
comunicação social, aquela que se traduz no preceito:
"dirigir-se ao espectador como se fosse uma criança de menos de 12
anos ou um débil mental".
Mas nada do que os senhores Medina Carreira e Henrique Raposo dizem ou possam
dizer pode apagar os factos. Os factos são teimosos. Ficam aqui apenas
os essenciais, para não me alargar muito:
1. OS FUNDOS DO SISTEMA PREVIDENCIAL da Segurança Social (Caixa Nacional
de Aposentações e Caixa Geral de Aposentações), com
os quais são pagas essas pensões, NÃO PERTENCEM AO ESTADO
(muito menos a este governo, ou qualquer outro). Não há neles um
cêntimo que tenha vindo dos impostos cobrados aos portugueses (incluindo
os aposentados e reformados). PERTENCEM EXCLUSIVAMENTE AOS SEUS ACTUAIS E
FUTUROS BENEFICIÁRIOS, QUE PARA ELES CONTRIBUIRAM E CONTRIBUEM
DESCONTANDO 11% dos seus salários mensais, acrescidos de mais 23,75%
(também extraídos dos seus salários) que as entidades
empregadoras, privadas e públicas, deveriam igualmente descontar para
esse efeito (o que nem sempre fazem [voltarei a este assunto no ponto 3]).
2. As quotizações devidas pelos trabalhadores e empregadores a
este sistema previdencial, bem como os benefícios (pensões de
aposentação, de reforma e sobrevivência; subsídios
de desemprego, de doença e de parentalidade; formação
profissional) que este sistema deve proporcionar, são fixadas por
cálculos actuariais, uma técnica matemática de que o sr.
Medina Carreira manifestamente não domina e de que o sr. Henrique Raposo
manifestamente nunca ouviu falar. Esses cálculos são feitos tendo
em conta, entre outras variáveis, o custo das despesas do sistema (as
que foram acima discriminadas) cujo montante depende, por sua vez no
caso específico das pensões de aposentação, de
reforma e de sobrevivência do salário ou vencimento da
pessoa e do número de anos da sua carreira contributiva. O montante
destas pensões é uma percentagem ponderada desses dois factores,
resultante desses cálculos actuariais.
3. Este sistema em nada contribuiu para o défice das contas
públicas e para a dívida pública. Este sistema não
é insustentável (como disse repetidamente o senhor Raposo). Este
sistema esteve perfeitamente equilibrado e saudável até 2011 (ano
de entrada em funções do actual governo), e exibia grandes
excedentes, apesar das dívidas das entidades empregadoras, tanto
privadas como públicas (estimadas então em 21.940 milhões
de euros) devido à evasão e à fraude contributiva por
parte destas últimas. Em 2011, último ano de resultados fechados
e auditados pelo Tribunal de Contas, o sistema previdencial teve como receitas
das quotizações 13.757 milhões de euros, pagou de
pensões 10.829 milhões de euros e 1.566 milhões de euros
de subsídios de desemprego, doença e parentalidade, mais algumas
despesas de outra índole. O saldo é pois largamente positivo. Mas
o sistema previdencial dispõe também de reservas, para fazer face
a imprevistos, que são geridas, em regime de
capitalização, por um Instituto especializado (o Instituto de
Gestão dos Fundos de Capitalização da Segurança
Social) do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança
Social. Ora, este fundo detinha, no mesmo ano de 2011, 8.872,4 milhões
de euros de activos, 5,2% do PIB da altura.
4. É o aumento brutal do desemprego (952 mil pessoas no 1º
trimestre de 2013), a emigração de centenas de milhares de jovens
e menos jovens, causados ambos pela política recessiva e de
empobrecimento deste governo, e a quebra brutal de receitas e o aumento
concomitante das despesas com o subsídio de desemprego que estes factos
acarretam, que está a pôr em perigo o regime previdencial e a
Segurança Social como um todo, não a demografia, como diz o sr.
Henrique Raposo.
5. Em suma, é falso que o sistema previdencial seja um sistema de
repartição, como gosta de repetir o sr. Medina Carreira.
É, isso sim, um sistema misto, de repartição e
capitalização. Está escrito com todas as letras na lei de
bases da segurança social (artigo 8º, alínea C, da lei
nº4/2007), que, pelos vistos, nem ele nem o senhor Henrique Raposo se
deram ao trabalho de ler. É falso que o sistema previdencial faça
parte das "despesas sociais" do Estado (educação e
saúde) que ele (e o governo actual) gostariam de cortar em 20 mil
milhões de euros. Mais especificamente, é falso que os seus
benefícios façam parte das "prestações
sociais" que o senhor Medina Carreira gostaria de cortar. Ele confunde
deliberadamente dois subsistemas da Segurança Social: o sistema
previdencial (contributivo) e o sistema de protecção da cidadania
(não contributivo). É este último sistema (financiado
pelos impostos que todos pagamos) que paga o rendimento social de
inserção, as pensões sociais (não confundir com as
pensões de aposentação e de reforma, as quais são
pagas pelo sistema previdencial e nada pesam no Orçamento de Estado), o
complemento solidário de idosos (não confundir com as
pensões de sobrevivência, as quais são pagas pelo sistema
previdencial e nada pesam no Orçamento do Estado), o abono de
família, os apoios às crianças e adultos deficientes e os
apoios às IPSS.
6. É falso que o sr. Henrique Raposo (HR) esteja, como ele diz,
condenado a não receber a pensão a que terá direito quando
chegar a sua vez, "porque a população está a
envelhecer", "porque o sistema previdencial actual não pode
pagar as pensões de aposentação futuras",
"porque o sistema não é de
capitalização". O 1º ministro polaco, disse,
explicou-lhe como mudar a segurança social portuguesa para os moldes que
ele, HR, deseja para Portugal. Mas HR esqueceu-se de dizer em que consiste essa
mirífica "reforma": transferir os fundos de pensões
privados para dentro do Estado polaco e com eles compensar um défice das
contas públicas, reduzindo nomeadamente em 1/5 a enorme dívida
pública polaca. A mesma receita que Passos Coelho, Vítor Gaspar e
Paulo Portas aplicaram em Portugal aos fundos de pensões privados dos
empregados bancários! (para mais pormenores sobre o desastre financeiro
que se anuncia decorrente desta aventura polaca, ver o artigo de Sujata Rao da
Reuters, "With pension reform, Poland joins the sell-off", 6 de
Setembro de 2013,
blogs.reuters.com/...
e o artigo de Monika Scislowska da Associated Press, "Poland debates
controversial pension reform", 11 de Outubro de 2013,
news.yahoo.com/...
).
HR desconhece o que aconteceu às falências dos sistemas de
capitalização individual em países como, por exemplo, o
Reino Unido. HR desconhece também as perdas de 10, 20, 30, 40 por cento,
e até superiores, que os aforradores americanos tiveram com os fundos
privados que geriam as suas pensões, decorrentes da derrocada do banco
de investimento Lehman Brothers e da crise financeira subsequente como
relembrou, num livro recente, um jornalista insuspeito de qualquer simpatia
pelos aposentados e reformados. O único inimigo de HR é a sua
ignorância crassa sobre a segurança social.
Os senhores Medina Carreira e Henrique Raposo, são, em minha
opinião, casos perdidos. Estão intoxicados pelas suas
próprias lucubrações, irmanados no mesmo ódio ao
Tribunal Constitucional ("onde não há dinheiro, não
há Constituição, não há Tribunal
Constitucional, nem coisíssima nenhuma" disse Medina Carreira no
programa "Olhos nos Olhos" de 9 de Setembro último;" O
Tribunal Constitucional quer arrastar-nos para fora do euro" disse
Henrique Raposo no programa de 14 de Outubro de 2013). E logo o Tribunal
Constitucional ! última e frágil antepara institucional
aos desmandos e razias de um governo que não olha a meios para atingir
os seus fins. Estes dois homens tinham forçosamente que se encontrar um
dia, pois estão bem um para o outro: um diz "corta!", o outro
"esfola!". Pena foi que o encontro fosse no seu programa, e
não o café da esquina.
Mas a senhora é jornalista. Não pode informar sem estar
informada. Tem a obrigação de conhecer, pelo menos, os factos
(pontos 1-6) que acima mencionei. Tem a obrigação de estudar os
assuntos de que quer tratar "Olhos nos Olhos", de não se
deixar manipular pelas declarações dos seus interlocutores. Se
não se sentir capaz disso, se achar que o dr. Medina Carreira é
demasiado matreiro para que lhe possa fazer frente, então demita-se do
programa que anima, no seu próprio interesse. Não caia no
descrédito do público que a vê, não arruíne a
sua reputação. Ainda vai a tempo, mas o tempo escasseia.
[*]
Professor aposentado
Esta carta encontra-se em
http://resistir.info/
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