A arte pacheca
por Fernando Campos
Existe, entre alguns "pensadores" liberais, a crença mais ou
menos enraizada de que
"cultura subsidiada é cultura controlada"
. Eles não gostam de nada controlado. A não ser
que seja pelo mercado.
Eles também acreditam (é sabido que a ideologia é mais do
domínio da fé e da convicção do que da
reflexão ou do raciocínio) que a cultura é uma
"manifestação espontânea e que assim forma sua
própria demanda por um determinado produto ou estilo"
; por isso
são firmemente contra os subsídios à cultura; ou seja,
acreditam devotamente nas leis do mercado. Vejam como este curioso
argumentário não é exclusivo dos nossos pachecos-pereiras,
sousa-tavares ou césares-das-neves já se estendeu ao
outro lado
do Atlântico e por lá também tem cultores com apelidos com
tanto ou mais pedigree:
"Se a maioria das pessoas não liga para
literatura, para cinema e para artes em geral, não há sentido
forçá-las a pagar por isso. Tornar compulsório o
financiamento de manifestações artísticas é
desrespeitar o gosto pessoal do contribuinte; faz com que lhe seja retirado o
direito de pagar somente pela arte que lhe aprouver. É
infantilizá-lo. Se ninguém, por exemplo, quiser saber de teatro
de rua, a única solução minimamente sensata é
deixá-lo definhar. Não há motivos para forçar o
consumo. Quem se interessar, que vá atrás."
Em Portugal, José Pacheco Pereira é o paladino destes
liberalíssimos "neo-cons" no combate pelo direito à
escolha dos contribuintes e contra o controlo do pensamento dos pobrezinhos
pelo Estado. Os seus argumentos
radicalizaram-se recentemente
, a propósito do Ministério da Cultura ter voltado atrás
na intenção de cortar os subsídios à sua numerosa e
reivindicativa prole de cortesãos.
Dito isto, é verdade que no Ministério da Cultura persiste a
tradição iníqua de autênticas nódoas
chupadeiras serem continuada e impunemente manteúdas pelo erário
público fenómeno igualmente observável no
Ministério da Agricultura e Pescas, no da Indústria, no do
Comércio, no da Segurança Social and so on, mas que já
não escandaliza tanto estes liberais que, nos jornais e nas
universidades, vão doutrinando as jovens gerações na
religião do santo mercado enquanto vão auferindo chorudas
reformas por meia dúzia de anos de serviços prestados ao Estado
o que configura aliás outra especificidade cultural indígena, um
traço identitário nacional que explica eloquentemente o nosso
atraso.
E contudo também é verdade que eu não
conheço, em toda a civilização ocidental, grande Arte que
não tenha sido subsidiada (com a possível excepção
do Século de Ouro Holandês): das pirâmides do Egipto ao
palácio de Dario, do Partenon à Capela Sistina, de
Velásquez a Molière, de Shakespeare a Richard Wagner e a
Brasília.
[1]
É evidente que a "independência" dos artistas que
criaram tudo isto é bem capaz de ter sido discutível, mas o facto
é que já nem sequer sabemos em que acreditavam (nem sei se seria
recomendável) Ramsés II, Dario, Péricles, os
Bórgias e Júlio II, Filipe IV, Luís XIV, Isabel I,
Luís II da Baviera ou Juscelino Kubitchek. Apenas a Arte subsistiu; e
muito do que sabemos de alguns deles resume-se ao que sobrou da Arte que
tornaram possível.
Eu tremo só de pensar no que seria o legado artístico da
civilização ocidental se esta maltosa tem confiado no "gosto
pessoal dos contribuintes", mas reconheço que isto seja
"intangível" para Pacheco e os seus prosélitos
d'aquém e d'além mar.
Algo "tangível" para Pacheco descobri eu na Net.
Algo completamente diferente.
Trata-se de uma arte sancionada pelo mercado e pelo "gosto dos
contribuintes".
A esta arte nenhum estado ousaria jamais subsidiar um museu. E contudo ele
existe. De iniciativa privada, claro. Onde? Na pátria que pariu
fascinantes conceitos cada vez mais globalizados tais como o fast-food, o
top-mais, o best-seller, o take away e o block-buster e que é a medida
de todas as coisas para todos os pachecos deste mundo.
Esta arte existe por todo o lado e em todo lado tem mercado.
Mas só na América alguém se lembraria de lhe consagrar um
museu
.
Um museu à medida do Pacheco.
23/Agosto/2010
[1]
Afirmo-o com o à vontade de um out-sider, isto é, de
alguém que está fora do sistema; alguém que nunca pediu
nem recebeu subsídio, ajuda de custo, prebenda ou mordomia; do Estado,
de qualquer dos seus múltiplos institutos ou Fundações ou
sequer da sua Junta de Freguesia.
O original encontra-se em
http://ositiodosdesenhos.blogspot.com/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|