Descobrir o poder da história do povo e porque hoje ela é
temida
por John Pilger
A Inglaterra é dois países. Um é dominado por Londres, o
outro permanece na sua sombra. Quando cheguei da Austrália pela primeira
vez, parecia que ninguém ia ao Norte de Watford e aqueles que haviam
emigrado do Norte esforçavam-se arduamente por mudar suas
pronúncias, encobrir suas origens e aprender os maneirismos e
códigos das satisfeitas classes sulistas. Alguns zombavam da vida que
haviam deixado para trás. Estavam a mudar de classe, ou assim pensavam.
Quando o
Daily Mirror
enviou-me em reportagem ao Norte, na década de 1960, meus colegas em
Londres divertiram-se com o meu desterro para os antípodas, o seu
equivalente da Sibéria. Na verdade, foi o pior Inverno em 200 anos e eu
nunca usara um cachecol ou possuira um casaco. Tente imaginar o que é
aquilo como a mais sombria Leeds e Hull, advertiram.
Era um tempo em que, segundo se dizia, os trabalhadores na Inglaterra
"falavam alto", até mesmo "tomavam o comando".
Filmes realistas estavam a ser rodados e pronúncias que antes não
eram bem vindas nos media e em secções do negócio do
entretenimento agora aparentemente eram procuradas, embora muitas vezes como
caricaturas.
Durante aquela primeira viagem ao Norte, quando parei para abastecer de
gasolina, não consegui entender o que disse o homem; dentro de semanas,
o que as pessoas diziam parecia-me perfeitamente claro. Eles eram uma outra
nação com uma história diferente, diferentes lealdades,
humor diferente, mesmo valores diferentes. No cerne disto estava a
política de classe. Transpondo os Pennines
[1]
, o Império vinha abaixo. As paixões imperiais do Sul mal se
manifestavam. Em Merseyside e Tyneside, excepto entre os notáveis
habituais, ninguém se importava com a realeza. Havia o
um-por-todos-e-todos-por-um de uma sociedade da classe trabalhadora a
menos, como se tornou penosamente claro em anos posteriores que
acontecesse você ser negro ou mulato. Aquela solidariedade era, para mim,
a notícia, como se fosse o capítulo em falta no património
político da Inglaterra, uma história do povo dos tempos modernos,
omitida por Thatcher e Blair e ainda temida pelas suas repercussões.
Eu já havia vislumbrado o poder desta solidariedade no lugar onde
cresceram meus pais e conhecia-a enquanto rapaz: a região mineira do
Hunter Valley, no Novo País de Gales
[2]
. Aqui, todos os mineiros do carvão haviam sido despedidos de Yorkshire,
Tyneside e Durham. "Observe-os, eles são comunistas", ouvi
alguém dizer. Eles eram combatentes pela decência da classe
trabalhadora: pagamento adequado, segurança e solidariedade. Os galeses
eram iguais. Traziam consigo os sofrimentos físicos e mentais e a raiva
daqueles que haviam industrializado o mundo e ganhavam pouco excepto a
perdurável solidariedade de uns com os outros.
O
Mirror
publicou minhas reportagens de vidas de trabalhadores: mineiros a trabalharem
em poços de menos de um metro, trabalhadores do aço no calor
inimaginável. Eu encontrava uma rua, virtualmente qualquer rua, e batia
às portas. O que me intrigava então era que tal calor humano e
auto-domínio pudessem sobreviver no trabalho monótono das cidades
nortistas. Além disso, a grande tradição radical de
resistência no Norte desde os trabalhadores do algodão do
século XIX até a Grande Greve dos Mineiros de 1984-85
sempre ameaçou o jogo que em Londres é conhecido como "o
consenso".
Isto foi o arranjo feito às escondidas entre os governos Trabalhista e
Conservador e os cinco por cento que possuíam metade da riqueza de todo
o Reino Unidos. O deputado trabalhista que se tornou homem dos media, Brian
Walden, descreveu como isto funcionou. "Os das poltronas da frente [no
Parlamento] gostavam uns dos outros e não gostavam dos seus pares nas
poltronas de trás", escreveu ele. "Nós éramos
filhos do famoso consenso... ir da oposição para o governo fazia
pouca diferença, pois acreditávamos nas mesmas coisas".
Meu segundo filme para a televisão, feito para a Granada TV em
Manchester, chamou-se "Conversações com um
trabalhador". Era a história de Jack Walker, trabalhador do
tingimento de Keighley, no Yorkshire, cujo trabalho era monótono, sujo e
maléfico para a sua saúde, mas ele daí retirava um orgulho
em "fazer isto bem". Jack acreditava apaixonadamente que o povo
trabalhador deveria permanecer unido. Que a um sindicalista eloquente era
permitido exprimir seus pontos de vista sem a intromissão daqueles que
muitas vezes afirmam falar por ele, e preocupar-se em alta voz acerca da
democracia costurada em Westminster
[3]
ia além dos limites. A expressão "classe
trabalhadora", diziam-me, tinha "implicações
políticas" e não seria aceitável para a Independent
Television Authority. Teria de ser mudada para "património dos
trabalhadores"
("working heritage").
A seguir havia o problema da palavra "o povo". Isto era uma
"expressão marxista" e também tinha de ser afastada. E
o que era este "consenso"? Certamente, a Grã-Bretanha tinha um
vibrante sistema de dois partidos.
Ao ler recentemente que 600 mil residentes na Grande Manchester estavam a
"experimentar os efeitos da pobreza extrema" e que 1,6 milhão
estavam a cair na penúria, recordei-me de como o consenso
político ficou imutável. Dirigido agora pela classe sulista dos
proprietários de terra (squirearchy) de David Cameron, George Osborne e
os seus colegas etonianos
[4]
, a única mudança é a ascensão da classe
administradora de corporações, exemplificada pelo apoio de Ed
Miliband à "austeridade" o novo jargão para a
pobreza imposta.
Na Clara Street, em Newcastle-upon-Tyne, no escuro invernal da madrugada, andei
colina abaixo com pessoas que trabalhavam mais de 60 horas por semana por uma
ninharia. Eles descreveram seus "ganhos" como o Serviço de
Saúde. Tinham visto apenas um político na rua, um liberal que
veio, afixou cartazes e disse algo inaudível do seu Land Rover e
apressou-se a ir embora. A cantilena de Westminster era então
"pagar nossas despesas como nação" e
"produtividade". Hoje, seus lugares de trabalho e sua
protecção sindical, sempre ténue, foram-se. "O que
está errado", disse-me um homem na Clara Street, "é do
que os políticos não querem mais falar. Os governos não se
importam de como vivemos, porque não somos parte do seu
país".
28/Novembro/2013
NT
[1] Pennines: cadeia de montanhas na Inglaterra.
[2] New South Wales: distrito no Sudeste da Austrália.
[3] Westminster: bairro onde está o Parlamento e o palácio da
rainha.
[4] Etonians: os que frequentaram o Eton College, da elite britânica.
O original encontra-se em
New Statesman
e em
johnpilger.com/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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