Como estamos empobrecidos, aburguesados e silenciados e o que fazer
acerca disso
por John Pilger
Conheço o meu carteiro há mais de 20 anos. Consciencioso e
bem-humorado, ele é a encarnação do serviço
público no seu melhor aspecto. Noutro dia, perguntei-lhe: "Por que
é que você se posta frente a cada porta como um soldado
numa parada?"
"Novo sistema", respondeu. "Já não me pedem para
simplesmente postar as cartas através da porta. Tenho de abordar cada
porta de um certo modo e enfiar as cartas através dela de um certo
modo".
"Por que?"
"Pergunte-lhes".
Do outro lado da rua estava um jovem solene, com prancheta na mão, cujo
trabalho era seguir carteiros e ver se eles cumprem as novas regras, sem
dúvida como preparativo para a privatização. Eu disse ao
seguidor de carteiros que o meu era admirável. A sua cara permaneceu
imutável, excepto por um momentâneo piscar confuso.
Em
"Admirável mundo novo revisitado",
Aldous Huxley descreve uma nova classe condicionada à normalidade que
não é normal "porque eles estão tão bem
ajustados ao nosso modo de existência, porque sua voz humana foi
silenciada tão prematuramente nas suas vidas, que nem mesmo lutam ou
sofrem ou desenvolvem sintomas como acontece com o neurótico".
A vigilância é normal na Era da Regressão como
revelou Edward Snowden. Câmaras por toda a parte são normais.
Liberdades subvertidas são normais. A discordância pública
efectiva é agora controlada pela polícia, cuja
intimidação é normal.
A corrupção de nobres palavras como "democracia",
"reforma", "bem-estar" e "serviço
público" é normal. Primeiros-ministros que mentiram
abertamente acerca de lobbystas e objectivos de guerra são normais. A
exportação de armas britânicas no valor de 4 mil
milhões de libras [ ], incluindo munições para
controle de multidão, para o estado medieval da Arábia Saudita,
onde a apostasía é um crime capital, é normal.
A destruição deliberada de instituições
públicas eficientes e populares, como a Royal Mail, é normal. Um
carteiro já não é mais um carteiro, a fazer o seu trabalho
decente; ele é um autómato a ser observado, um ítem de
formulário a ser assinalado. Huxley descreveu esta regressão como
insana e o nosso "perfeito ajustamento àquela sociedade
anormal" como sinal de loucura.
Estaremos nós "perfeitamente ajustados" a isto? Não,
ainda não. O povo defende hospitais do encerramento, o Reino Unido
íntegro força agências bancárias a fecharem e seis
corajosas mulheres escalam o mais alto edifício da Europa para mostrar a
devastação provocada no Árctico pelas companhias de
petróleo. Aqui, a lista começa a desvanecer-se.
No festival de Manchester deste ano, a épica peça
"A máscara da anarquia", de Percy Bysshe Shelley com
todos os 91 versos escritos em cólera após o massacre de
Lancashire, em 1819, do povo que protestava contra a pobreza é
uma peça teatral aplaudida e absolutamente divorciada do mundo externo.
Em Janeiro último, a Comissão da Pobreza da Grande Manchester
revelou que 600 mil habitantes de Manchester estavam a viver em "extrema
pobreza" e que 1,6 milhão, ou aproximadamente a metade da
população da cidade, estavam "a deslizar para pobreza mais
profunda".
A pobreza foi aburguesada
(gentrified).
O Parkhill Estate, em Sheffield, era outrora um edifício de
habitação pública pouco apreciado por muita gente
devido ao seu brutalismo Le Corbusier, à fraca manutenção
e falta de instalações. Com o programa Heritage Grade II, ele foi
renovado e privatizado. Dois terços das velhas habitações
renasceram como apartamentos modernos vendidos a "profissionais",
incluindo designers, arquitectos e um historiador social. No gabinete de vendas
podem-se comprar canecas e almofadas de designer. Esta fachada não
apresenta nem um indício de que, devastada pelos cortes de
"austeridade" do governo, Sheffield tem uma lista de espera para
habitação social de 60 mil pessoas.
Parkhil é um símbolo dos dois terços da sociedade que
é a Grã-Bretanha de hoje. O terço aburguesado vai bem,
alguns deles extremamente bem, um terço luta para sobreviver a
crédito e o resto desliza para a pobreza.
Embora a maioria dos britânicos seja da classe trabalhadora que se
considere desse modo ou não uma minoria aburguesada domina o
parlamento, a administração superior e os media. David Cameron,
Nick e Ed Milliband são os seus autênticos representantes, com
apenas diferenças técnicas menores entre os seus partidos. Eles
estabelecem os limites da vida e do debate político, ajudados pelo
jornalismo aburguesado e da indústria da "identidade". A maior
transferência de sempre da riqueza, para cima, é um dado. A
justiça social foi substituída pela "justeza"
("fairness")
sem significado.
Enquanto promove esta normalidade, a BBC concede um prémio de quase um
milhão de libras a um funcionário superior. Embora se considere
como o equivalente nos media à Igreja da Inglaterra, a
corporação agora tem uma ética comparável
àquela das companhias de "segurança" G4S e Serco as
quais, diz o governo, cobraram a mais por serviços públicos
dezenas de milhões de livros. Em outros países isto se chama
corrupção.
Tal como a liquidação das companhias de água, gás,
água e das ferrovias, a venda do Royal Mail está a ser obtida com
subornos e a colaboração da liderança sindical, pouco
importando o seu protesto vocal. Ao abrir a sua série de
documentários de 1983, "Questions of Leadership", Ken Loach
mostra líderes sindicais a exortarem as massas. Os mesmo homens
são mostrados a seguir, mais velhos e enfeitados, adornados com arminho
na Casa dos Lordes. Na recente homenagem pelo Aniversário da Rainha, o
secretário-geral da [central sindical] TUC, Brendan Barber, recebeu o
seu título de nobreza.
Por quanto tempo os britânicos podem assistir aos levantamentos por todo
o mundo e pouco mais fazer do que chorar o defunto Partido Trabalhista? As
revelações de Edward Snowden mostram a infraestrutura de uma
polícia de estado a emergir na Europa, especialmente na
Grã-Bretanha. Contudo, o povo está mais consciente do que nunca;
e os governos temem a resistência popular razão pela qual
os que dizem a verdade são isolados, caluniados e perseguidos.
Mudanças grandiosas quase sempre começam com a coragem de pessoas
que põem em causa suas próprias vidas contra todas as
adversidades. Não há outra saída agora.
Acção directa. Desobediência civil. Infalível. Leiam
Percy Shelley "Vocês são muitos; eles são
poucos". E tenham êxito.
25/Julho/2013
O original encontra-se no
New Statesman
e em
johnpilger.com/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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