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							A morte da liberdade
						
							[1]
									 Cenotáfio: monumento fúnebre erigido em memória de
									alguém, mas que não guarda o seu corpo. Na véspera do Natal fiz uma breve visita a 
							 Brian Haw
							, cuja figura arqueada a andar passo a passo era apenas visível
							através do nevoeiro gélido.  
							Cerca de quatro anos e meio atrás Brian acampou
							na Praça do Parlamento com um cartaz cheio de fotografias que mostravam
							o terror e o sofrimento impostos às crianças iraquianas pelas
							políticas britânicas.  A efectividade da sua acção
							ficou demonstrada em Abril último, quando o governo Blair baniu qualquer
							expressão de oposição dentro do raio de um
							quilómetro do parlamento.  O supremo tribunal determinou a seguir que,
							como a sua presença antecedeu o banimento, Brian era uma
							excepção. 
 Dia após dia, noite após noite, estação após
							estação, ele permanece como um farol, a iluminar o grande crime
							do Iraque e a covardia da Casa dos Comuns.  Enquanto conversávamos, dois
							homens trouxeram-lhe uma refeição de Natal e vinho aquecido. 
							Eles agradeceram-lhe, apertaram sua mão e foram embora.  Ele nunca os
							havia visto antes.  "Isto é típico do publico", disse
							ele.  Um homem num fato listrado e de gravata emergiu do nevoeiro, carregando
							uma pequena coroa de flores.  "Pretendo colocar isto no Cenotáfio 
							[1]
							 e ler em voz alta os nomes dos mortos no Iraque", disse ele a Brian, que
							preveniu-o:  "Você passará a noite na prisão,
							companheiro".  Nós o observámos a caminhar a passos largos e
							depor a sua coroa.  Sua cabeça inclinou-se, ele parecia estar a
							murmurar.  Trinta anos atrás, observei dissidentes a fazerem algo
							semelhante do lado de fora das muralhas do Kremlin.
 
 Quando a noite o cobriu, ele estava feliz.  Em 7 de Dezembro, Maya Evans, uma
							chefe de cozinha vegetariana 
							
								(vegan)
							
							 com 25 anos, foi condenada por infringir o novo 
							
								Serious Organised Crime and Police Act
							
							 pois leu em voz alta no Cenotáfio os nomes dos 97 soldados
							britânicos mortos no Iraque.  Tão grave foi o seu crime que
							foram precisos 14 polícias em duas carrinhas para prendê-la.  Ela
							foi multada e aplicaram-lhe um registo criminal para o resto da sua vida.
 
 A LIBERDADE ESTÁ A MORRER
 
 John Catt, de 80 anos, serviu na RAF durante a Segunda Guerra Mundial.  Em
							Setembro último ele foi interpelado pela polícia em Brighton por
							uma uma T-shirt "ofensiva", a qual sugeria que Bush e Blair deviam ser
							julgados por crimes de guerra.  Ele foi preso sob o Terrorism Act e algemado,
							com os braços por trás das costas.  O registo oficial da
							prisão diz que a "finalidade" de investigá-lo era o
							"terrorismo" e que as "bases para a
							intervenção" eram "carregar cartaz e T-shirt com
							informação anti-Blair" (sic).
 
 Ele está à espera de julgamento.
 
 Tais casos podem ser comparados a outros que permanecem secretos e para
							além de qualquer forma de justiça:  aqueles de nacionalidade
							estrangeira mantidos na Prisão Belmarsh que nunca foram acusados, e
							muito menos submetidos a julgamento.  Eles são mantidos "como
							suspeitos".  Algumas das "provas" contra eles, seja isto o que 
							for, admitiu agora o governo, podiam ter sido extraídas sob tortura em
							Guantanamo e Abu Ghraib.  Eles são presos políticos propriamente
							ditos.  Enfrentam a perspectiva de serem expulsos do país para os
							braços de um regime que pode torturá-los até à
							morte.  Suas famílias isoladas, incluindo crianças, estão
							silenciosamente a enlouquecer.
 
 E PARA QUE?
 
 Entre 11 de Setembro de 2001 e 30 de Setembro de 2005, um total de 895 pessoas
							foram presas sob o 
							
								Terrorism Act.
							
							  Apenas 23 foram condenadas por ofensas
							cobertas pelo acto.  Quanto a terroristas reais, as identidades de dois dos
							bombistas do 7 de Julho, incluindo o organizador suspeito, eram conhecidas do
							MI5, ainda que nada tenha feito.  E Blair quer dar mais poder aos
							serviços de segurança.  Tendo ajudado a devastar o Iraque, ele
							está agora a matar a liberdade no seu próprio país.
 
 Considere eventos paralelos nos Estados Unidos.  Em Outubro último, um
							médico americano, amado pelos seus pacientes, foi punido com 22 anos de
							prisão por fundar uma instituição de caridade, "Ajuda
							aos necessitados" 
							
								("Help the Needy"),
							
							que ajudou crianças no Iraque afligidas pelo bloqueio económico
							e humanitário imposto pelos EUA e pela Grã-Bretanha.  Ao colectar
							dinheiro para crianças a morrerem de diarreia, o Dr. Rafil Dhafir rompeu
							um sítio que, segundo a UNICEF, havia provocado a morte de meio
							milhão com idade inferior a cinco anos.  John Ashcroft, o então
							procurador-geral dos EUA, chamou o Dr. Dhafir, um muçulmano, de
							"terrorista", uma descrição ridicularizada até
							mesmo pelo juiz numa farsa de julgamento politicamente motivada.
 
 O caso Dhafir não é extraordinário.  No mesmo mês,
							três juizes de tribunais de comarca 
							
								(circuit court)
							
							 americanos decidiram a favor do "direito" do regime de Bush
							aprisionar um cidadão americano "indefinidamente" sem
							acusá-lo de um crime.  Este foi o caso de José Padilla, um
							criminoso insignificante que alegadamente visitou o Paquistão antes ser
							preso no aeroporto de Chicago há três anos e meio.  Ele nunca foi
							acusado e nenhuma prova foi apresentada contra ele.  Agora atolado na
							complexidade legal, o caso põe George W. Bush acima da lei e abole a
							Carta de Direitos 
							
								(Bill of Rights).
							
							  Na verdade, em 14 de Novembro, o Senado americano votou com efeito no sentido
							de banir o habeas corpus ao aprovar uma emenda que subverte uma decisão
							da Suprema Corte permitindo prisioneiros de Guantanamo terem acesso a um
							tribunal federal.  Assim, a pedra de toque da mais celebrada liberdade da
							América foi inutilizada.  Sem habeas corpus, um governo pode
							simplesmente trancar num lugar escondido os seus opositores e por em
							prática uma ditadura.
 
 Uma tirania relacionada e insidiosa está a ser imposto por todo o mundo.
							 Para todas as suas atribulações no Iraque, Bush executou as
							recomendações de uma messiânica teoria da
							conspiração chamada o "Projecto para o novo século
							americano" 
							
								("Project for the New American Century").
							
							  Redigido pelos seus patrocinadores ideológicos pouco antes de ele
							chegar ao poder, o documento prevê a sua administração como
							uma ditadura militar por trás de uma fachada democrática: 
							"a cavalaria da nova fronteira americana", guiada por uma mistura de
							paranóia e megalomania.  Mais de 700 bases americanas estão agora
							dispostas estrategicamente em países submissos, nomeadamente às
							portas de entrada para fontes de combustíveis fosseis e em torno do
							Médio Oriente e da Ásia Central.  A agressão
							"antecipativa" 
							
								("pre-emptive")
							
							 faz parte da política, incluindo a utilização de armas
							nucleares.  A indústria da guerra química foi revigorada. 
							Tratados de mísseis foram rasgados.  O espaço foi militarizado. 
							O aquecimento global foi abraçado.  Os poderes do presidente nunca foram
							maiores.  O sistema judicial foi subvertido, juntamente com as liberdades
							civis.  Ray McGovern, antigo analista senior da CIA que outrora preparava o
							resumo diário destinado à Casa Branca, contou-me que os autores
							do PNAC e aqueles que agora estão a ocupar posições do
							poder executivo costumavam ser conhecidos em Washington como "os
							dementes" 
							
								("the crazies").
							
							  "Deveríamos agora estar muito preocupados acerca do
							fascismo", afirmou ele.
 
 Na sua 
							 épica aceitação do Prémio Nobel da Literatura, em 7 de Dezembro
							, Harold Pinter falou de "uma vasta
							tapeçaria de mentiras, sobre a qual nos alimentamos".  Perguntou
							porque "a brutalidade sistemática, as atrocidades generalizadas, a
							supressão implacável do pensamento independente" da
							Rússia stalinista eram bem conhecidas no ocidente ao passo que os crimes
							de Estados dos EUA são apenas "registados superficialmente, muito
							menos documentados e ainda menos reconhecidos".
 
 Reinou um silêncio.  Por todo o mundo, a extinção e o
							sofrimento de incontáveis seres humanos podem ser atribuídos ao
							desenfreado poder americano.  "Mas você não saberia
							disto", disse Pinter.  "Isto nunca aconteceu.  Nada alguma vez
							aconteceu.  Mesmo enquanto estava a acontecer isto não estava a
							acontecer.  Isto não importava.  Não era de interesse".
 
 Para seu crédito, 
							
								Guardian
							
							 publicou todas as palavras da advertência de Pinter.  Para sua vergonha,
							embora não seja surpreendente, a estação de
							televisão do estado ignorou-as.  Toda aquela flatulência da 
							
								Newsnight
							
							 acerca das artes, toda aquela presunção reciclada para as
							câmaras na entrega do Booker Prize, mas a BBC não podia dar
							espaço ao maior dramaturgo vivo da Grã-Bretanha, assim honrado, e
							contar a verdade.
 
 Para a BBC, aquilo simplesmente nunca acontece, assim como a matança de
							meio milhão de crianças pelo assédio medieval dos EUA ao
							Iraque durante a década de 1990 nunca aconteceu, assim como os
							julgamentos Dhafir e Padilla e o voto do Senado a banir a liberdade nunca
							aconteceram.  Os prisioneiros políticos de Belmarsh mal existem, e um
							grande e corajoso pelotão da polícia metropolitana nunca arrastou
							para longe Maya Evans quando ela chorou publicamente pelos soldados
							britânicos mortos por causa de nada excepto o poder apodrecido.
 
 Destituída de ironia, mas com um riso dissimulado, a locutora Fiona
							Bruce introduziu, como notícia, um filme natalino de propaganda acerca
							dos cães de Bush.  Isto aconteceu.  Agora imaginem Bruce a ler o
							seguinte:  "Aqui estão notícias atrasadas. Apenas desde 1945
							até 2005 os Estados Unidos tentaram derrubar 50 governos, muitos deles
							democracias, e esmagar 30 movimentos populares que combatiam regimes
							tirânicos.  Neste processo, 25 países foram bombardeados,
							provocando a perda de vários milhões de vidas e o desespero de
							milhões mais"  (com agradecimentos a 
							
								Rogue State,
							
							 de William Blum, publicado pela Common Courage Press).
 
 O ícone de horror do domínio de Saddam Hussein é um filme
							de 1988 de corpos petrificados de pessoas na cidade curda de Halabja, mortos
							num ataque de armas químicas.  O ataque foi mencionado uma enorme
							quantidade de vezes por Bush e Blair e o filme foi mostrado muitas vezes pela
							BBC.  Naquele momento, como sei por experiência pessoal, o Foreign Office
							tentava encobrir o crime em Halabja.  Os americanos tentavam lançar as
							culpas sobre o Irão.  Hoje, numa era de imagens, não há
							imagens do ataque com armas químicas sobre Faluja em Novembro de 2004. 
							Isto permitiu aos americanos negarem-no, até que foram apanhados
							recentemente por investigadores que utilizavam  a internet.  Para a BBC, as
							atrocidades americanas simplesmente não aconteceram.
 
 Em 1999, enquanto filmava em Washington e no Iraque, tomei conhecimento da
							verdadeira escala do bombardeamento naquilo que os americanos e
							britânicos então chamavam as 
							
								"no-fly zones"
							
							 do Iraque. 
							Durante os 18 meses iniciados em 14 de Janeiro de 1999 os aviões
							americanos efectuaram 24 mil missões de combate sobre o Iraque, quase
							toda missão era de bombardeamento ou metralhamento. 
							"Deitámos abaixo até a última cabina de
							toilete", protestou um oficial americano.  "Ainda há algumas
							coisas deixadas [por bombardear], mas não muitas".  Isto foi
							há sete anos atrás.  Nos últimos meses, o assalto
							aéreo sobre o Iraque multiplicou-se;  o efeito sobre o terreno
							não pode ser imaginado.  Para a BBC, isto não aconteceu.
 
 A farsa negra estende-se àqueles pseudo-humanitários nos media e
							alhures, que nunca viram pessoalmente os efeitos de bombas de
							fragmentação e munições 
							
								air-burst
							
							 
							[2]
							, mas  continuam a evocar os crimes de Saddam para justificar o pesadelo no
							Iraque e proteger um primeiro ministro traidor e colaboracionista 
							
								(quisling)
							
							 que liquidou o seu país e tornou o mundo mais perigoso.  Curiosamente,
							alguns deles insistem em descrever-se como "liberais" e
							"esquerda do centro", mesmo "anti-fascistas".  Eles
							pretendem alguma respeitabilidade, suponho.  Isto é
							compreensível, uma vez que no campeonato da carnificina Saddam Hussein
							foi ultrapassado há muito por aquele herói da Downing Street
							 que
							agora apoia um ataque ao Irão.
 
 Isto não poderá mudar até nós, no ocidente,
							olharmos ao espelho e confrontarmos a verdade objectiva e o narcisismo do poder
							aplicado em nosso nome, seus extremos e seu terrorismo.  O habitual duplo
							padrão não funciona mais;  há agora milhões como
							Brian Haw, Maya Evans, John Catt e o homem em fato listrado, com a sua coroa de
							flores.  Olhar ao espelho significa entender que uma ordem violenta e
							anti-democrática está a ser imposta por aqueles cujos
							acções são pouco diferentes das acções de
							fascistas.  A diferença costumava ser a distância.  Agora eles
							estão a traze-las para casa.
 [2] As munições 
									
										air burst
									
									 explodem no ar, a uma altitude que pode ser variada a fim de obter o
									máximo efeito.
 
 [*]
								
									Freedom Next Time,
								
								novo livro do autor, será publicado em Junho pela Bantam Press
 
 O original encontra-se em 
								 New Statesman
								. Tradução de JF.
 
 Este artigo encontra-se em
								 http://resistir.info/
								.
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