A morte da liberdade

por John Pilger [*]

Brian Haw. Na véspera do Natal fiz uma breve visita a Brian Haw , cuja figura arqueada a andar passo a passo era apenas visível através do nevoeiro gélido. Cerca de quatro anos e meio atrás Brian acampou na Praça do Parlamento com um cartaz cheio de fotografias que mostravam o terror e o sofrimento impostos às crianças iraquianas pelas políticas britânicas. A efectividade da sua acção ficou demonstrada em Abril último, quando o governo Blair baniu qualquer expressão de oposição dentro do raio de um quilómetro do parlamento. O supremo tribunal determinou a seguir que, como a sua presença antecedeu o banimento, Brian era uma excepção.

Dia após dia, noite após noite, estação após estação, ele permanece como um farol, a iluminar o grande crime do Iraque e a covardia da Casa dos Comuns. Enquanto conversávamos, dois homens trouxeram-lhe uma refeição de Natal e vinho aquecido. Eles agradeceram-lhe, apertaram sua mão e foram embora. Ele nunca os havia visto antes. "Isto é típico do publico", disse ele. Um homem num fato listrado e de gravata emergiu do nevoeiro, carregando uma pequena coroa de flores. "Pretendo colocar isto no Cenotáfio [1] e ler em voz alta os nomes dos mortos no Iraque", disse ele a Brian, que preveniu-o: "Você passará a noite na prisão, companheiro". Nós o observámos a caminhar a passos largos e depor a sua coroa. Sua cabeça inclinou-se, ele parecia estar a murmurar. Trinta anos atrás, observei dissidentes a fazerem algo semelhante do lado de fora das muralhas do Kremlin.

Quando a noite o cobriu, ele estava feliz. Em 7 de Dezembro, Maya Evans, uma chefe de cozinha vegetariana (vegan) com 25 anos, foi condenada por infringir o novo Serious Organised Crime and Police Act pois leu em voz alta no Cenotáfio os nomes dos 97 soldados britânicos mortos no Iraque. Tão grave foi o seu crime que foram precisos 14 polícias em duas carrinhas para prendê-la. Ela foi multada e aplicaram-lhe um registo criminal para o resto da sua vida.

A LIBERDADE ESTÁ A MORRER

John Catt, de 80 anos, serviu na RAF durante a Segunda Guerra Mundial. Em Setembro último ele foi interpelado pela polícia em Brighton por uma uma T-shirt "ofensiva", a qual sugeria que Bush e Blair deviam ser julgados por crimes de guerra. Ele foi preso sob o Terrorism Act e algemado, com os braços por trás das costas. O registo oficial da prisão diz que a "finalidade" de investigá-lo era o "terrorismo" e que as "bases para a intervenção" eram "carregar cartaz e T-shirt com informação anti-Blair" (sic).

Ele está à espera de julgamento.

Tais casos podem ser comparados a outros que permanecem secretos e para além de qualquer forma de justiça: aqueles de nacionalidade estrangeira mantidos na Prisão Belmarsh que nunca foram acusados, e muito menos submetidos a julgamento. Eles são mantidos "como suspeitos". Algumas das "provas" contra eles, seja isto o que for, admitiu agora o governo, podiam ter sido extraídas sob tortura em Guantanamo e Abu Ghraib. Eles são presos políticos propriamente ditos. Enfrentam a perspectiva de serem expulsos do país para os braços de um regime que pode torturá-los até à morte. Suas famílias isoladas, incluindo crianças, estão silenciosamente a enlouquecer.

E PARA QUE?

Entre 11 de Setembro de 2001 e 30 de Setembro de 2005, um total de 895 pessoas foram presas sob o Terrorism Act. Apenas 23 foram condenadas por ofensas cobertas pelo acto. Quanto a terroristas reais, as identidades de dois dos bombistas do 7 de Julho, incluindo o organizador suspeito, eram conhecidas do MI5, ainda que nada tenha feito. E Blair quer dar mais poder aos serviços de segurança. Tendo ajudado a devastar o Iraque, ele está agora a matar a liberdade no seu próprio país.

Considere eventos paralelos nos Estados Unidos. Em Outubro último, um médico americano, amado pelos seus pacientes, foi punido com 22 anos de prisão por fundar uma instituição de caridade, "Ajuda aos necessitados" ("Help the Needy"), que ajudou crianças no Iraque afligidas pelo bloqueio económico e humanitário imposto pelos EUA e pela Grã-Bretanha. Ao colectar dinheiro para crianças a morrerem de diarreia, o Dr. Rafil Dhafir rompeu um sítio que, segundo a UNICEF, havia provocado a morte de meio milhão com idade inferior a cinco anos. John Ashcroft, o então procurador-geral dos EUA, chamou o Dr. Dhafir, um muçulmano, de "terrorista", uma descrição ridicularizada até mesmo pelo juiz numa farsa de julgamento politicamente motivada.

O caso Dhafir não é extraordinário. No mesmo mês, três juizes de tribunais de comarca (circuit court) americanos decidiram a favor do "direito" do regime de Bush aprisionar um cidadão americano "indefinidamente" sem acusá-lo de um crime. Este foi o caso de José Padilla, um criminoso insignificante que alegadamente visitou o Paquistão antes ser preso no aeroporto de Chicago há três anos e meio. Ele nunca foi acusado e nenhuma prova foi apresentada contra ele. Agora atolado na complexidade legal, o caso põe George W. Bush acima da lei e abole a Carta de Direitos (Bill of Rights). Na verdade, em 14 de Novembro, o Senado americano votou com efeito no sentido de banir o habeas corpus ao aprovar uma emenda que subverte uma decisão da Suprema Corte permitindo prisioneiros de Guantanamo terem acesso a um tribunal federal. Assim, a pedra de toque da mais celebrada liberdade da América foi inutilizada. Sem habeas corpus, um governo pode simplesmente trancar num lugar escondido os seus opositores e por em prática uma ditadura.

Uma tirania relacionada e insidiosa está a ser imposto por todo o mundo. Para todas as suas atribulações no Iraque, Bush executou as recomendações de uma messiânica teoria da conspiração chamada o "Projecto para o novo século americano" ("Project for the New American Century"). Redigido pelos seus patrocinadores ideológicos pouco antes de ele chegar ao poder, o documento prevê a sua administração como uma ditadura militar por trás de uma fachada democrática: "a cavalaria da nova fronteira americana", guiada por uma mistura de paranóia e megalomania. Mais de 700 bases americanas estão agora dispostas estrategicamente em países submissos, nomeadamente às portas de entrada para fontes de combustíveis fosseis e em torno do Médio Oriente e da Ásia Central. A agressão "antecipativa" ("pre-emptive") faz parte da política, incluindo a utilização de armas nucleares. A indústria da guerra química foi revigorada. Tratados de mísseis foram rasgados. O espaço foi militarizado. O aquecimento global foi abraçado. Os poderes do presidente nunca foram maiores. O sistema judicial foi subvertido, juntamente com as liberdades civis. Ray McGovern, antigo analista senior da CIA que outrora preparava o resumo diário destinado à Casa Branca, contou-me que os autores do PNAC e aqueles que agora estão a ocupar posições do poder executivo costumavam ser conhecidos em Washington como "os dementes" ("the crazies"). "Deveríamos agora estar muito preocupados acerca do fascismo", afirmou ele.

Na sua épica aceitação do Prémio Nobel da Literatura, em 7 de Dezembro , Harold Pinter falou de "uma vasta tapeçaria de mentiras, sobre a qual nos alimentamos". Perguntou porque "a brutalidade sistemática, as atrocidades generalizadas, a supressão implacável do pensamento independente" da Rússia stalinista eram bem conhecidas no ocidente ao passo que os crimes de Estados dos EUA são apenas "registados superficialmente, muito menos documentados e ainda menos reconhecidos".

Reinou um silêncio. Por todo o mundo, a extinção e o sofrimento de incontáveis seres humanos podem ser atribuídos ao desenfreado poder americano. "Mas você não saberia disto", disse Pinter. "Isto nunca aconteceu. Nada alguma vez aconteceu. Mesmo enquanto estava a acontecer isto não estava a acontecer. Isto não importava. Não era de interesse".

Para seu crédito, Guardian publicou todas as palavras da advertência de Pinter. Para sua vergonha, embora não seja surpreendente, a estação de televisão do estado ignorou-as. Toda aquela flatulência da Newsnight acerca das artes, toda aquela presunção reciclada para as câmaras na entrega do Booker Prize, mas a BBC não podia dar espaço ao maior dramaturgo vivo da Grã-Bretanha, assim honrado, e contar a verdade.

Para a BBC, aquilo simplesmente nunca acontece, assim como a matança de meio milhão de crianças pelo assédio medieval dos EUA ao Iraque durante a década de 1990 nunca aconteceu, assim como os julgamentos Dhafir e Padilla e o voto do Senado a banir a liberdade nunca aconteceram. Os prisioneiros políticos de Belmarsh mal existem, e um grande e corajoso pelotão da polícia metropolitana nunca arrastou para longe Maya Evans quando ela chorou publicamente pelos soldados britânicos mortos por causa de nada excepto o poder apodrecido.

Destituída de ironia, mas com um riso dissimulado, a locutora Fiona Bruce introduziu, como notícia, um filme natalino de propaganda acerca dos cães de Bush. Isto aconteceu. Agora imaginem Bruce a ler o seguinte: "Aqui estão notícias atrasadas. Apenas desde 1945 até 2005 os Estados Unidos tentaram derrubar 50 governos, muitos deles democracias, e esmagar 30 movimentos populares que combatiam regimes tirânicos. Neste processo, 25 países foram bombardeados, provocando a perda de vários milhões de vidas e o desespero de milhões mais" (com agradecimentos a Rogue State, de William Blum, publicado pela Common Courage Press).

O ícone de horror do domínio de Saddam Hussein é um filme de 1988 de corpos petrificados de pessoas na cidade curda de Halabja, mortos num ataque de armas químicas. O ataque foi mencionado uma enorme quantidade de vezes por Bush e Blair e o filme foi mostrado muitas vezes pela BBC. Naquele momento, como sei por experiência pessoal, o Foreign Office tentava encobrir o crime em Halabja. Os americanos tentavam lançar as culpas sobre o Irão. Hoje, numa era de imagens, não há imagens do ataque com armas químicas sobre Faluja em Novembro de 2004. Isto permitiu aos americanos negarem-no, até que foram apanhados recentemente por investigadores que utilizavam a internet. Para a BBC, as atrocidades americanas simplesmente não aconteceram.

Em 1999, enquanto filmava em Washington e no Iraque, tomei conhecimento da verdadeira escala do bombardeamento naquilo que os americanos e britânicos então chamavam as "no-fly zones" do Iraque. Durante os 18 meses iniciados em 14 de Janeiro de 1999 os aviões americanos efectuaram 24 mil missões de combate sobre o Iraque, quase toda missão era de bombardeamento ou metralhamento. "Deitámos abaixo até a última cabina de toilete", protestou um oficial americano. "Ainda há algumas coisas deixadas [por bombardear], mas não muitas". Isto foi há sete anos atrás. Nos últimos meses, o assalto aéreo sobre o Iraque multiplicou-se; o efeito sobre o terreno não pode ser imaginado. Para a BBC, isto não aconteceu.

A farsa negra estende-se àqueles pseudo-humanitários nos media e alhures, que nunca viram pessoalmente os efeitos de bombas de fragmentação e munições air-burst [2] , mas continuam a evocar os crimes de Saddam para justificar o pesadelo no Iraque e proteger um primeiro ministro traidor e colaboracionista (quisling) que liquidou o seu país e tornou o mundo mais perigoso. Curiosamente, alguns deles insistem em descrever-se como "liberais" e "esquerda do centro", mesmo "anti-fascistas". Eles pretendem alguma respeitabilidade, suponho. Isto é compreensível, uma vez que no campeonato da carnificina Saddam Hussein foi ultrapassado há muito por aquele herói da Downing Street — que agora apoia um ataque ao Irão.

Isto não poderá mudar até nós, no ocidente, olharmos ao espelho e confrontarmos a verdade objectiva e o narcisismo do poder aplicado em nosso nome, seus extremos e seu terrorismo. O habitual duplo padrão não funciona mais; há agora milhões como Brian Haw, Maya Evans, John Catt e o homem em fato listrado, com a sua coroa de flores. Olhar ao espelho significa entender que uma ordem violenta e anti-democrática está a ser imposta por aqueles cujos acções são pouco diferentes das acções de fascistas. A diferença costumava ser a distância. Agora eles estão a traze-las para casa.

[1] Cenotáfio: monumento fúnebre erigido em memória de alguém, mas que não guarda o seu corpo.
[2] As munições air burst explodem no ar, a uma altitude que pode ser variada a fim de obter o máximo efeito.


[*] Freedom Next Time, novo livro do autor, será publicado em Junho pela Bantam Press

O original encontra-se em New Statesman . Tradução de JF.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
10/Jan/06