África do Sul: a libertação traída
A ruptura política na África do Sul está a ser apresentada
ao mundo exterior como a tragédia pessoal e a humilhação
de um homem,
Thabo Mbeki
. Isto lembra a beatificação de Nelson Mandela no momento da
morte do apartheid. Não se trata de reduzir o poder das personalidades,
mas a importância das mesmas muitas vezes serve desviar a
atenção das forças históricas que elas servem e
administram.
Frantz Fanon
tinha isto em mente quando, em
Os condenados da Terra,
descreveu a "missão histórica" de grande parte da
classe dominante pós colonial como "a de intermediário
[cuja] missão nada tem a ver com a transformação da
nação: ela consiste, prosaicamente, de ser a linha de
transmissão entre a nação e um capitalismo, desenfreado
embora camuflado".
A queda de Mbeki e o colapso da Wall Street são acontecimentos
concorrentes e relacionados, assim como previsíveis. Remontemos a 1985
quando o mercado de acções de Johannesburg entrou em crash, o
regime do apartheid incumpriu sua dívida crescente e os chefes do
capital sul-africano ganharam medo. Em Setembro daquele ano um grupo conduzido
por Gavin Relly, presidente da Anglo American Corporation, encontrou-se com
Oliver Tambo
, o presidente do ANC, e outros responsáveis da resistência, na
Zâmbia. A sua mensagem urgente era ser possível uma
"transição" do apartheid para uma democracia liberal
governada por negros apenas se a "ordem" e a "estabilidade"
fossem garantidas. Tratava-se de eufemismos para um estado de "mercado
livre" em que a justiça social não seria prioritária.
Reuniões secretas entre o ANC e membros eminentes da elite afrikaner
seguiram-se numa mansão, Mells Park House, na Inglaterra. As
motivações primárias eram daqueles que haviam apoiado e
lucrado com o apartheid tais como o gigante mineiro britânico
Consolidated Goldfields, o qual pagou a conta dos vinhos finos e do malt whisky
deglutido junto à lareira da Mells Park House. Seu objectivo era que o
regime de Pretória para dividir o ANC entre os
"moderados", na maior parte exilados, com quem podiam
"negociar" (Tambo, Mbeki e Mandela) e a maioria que consistia
naqueles que resistiam nas cidades, conhecidos como os UDF.
O assunto era urgente. Quando
F.W. De Klerk
chegou ao poder em 1989, o capital estava numa tal hemorragia que as reservas
externas do país mal cobririam cinco semanas de
importações. Ficheiros desclassificados que vi em Washington
deixavam pouca dúvida de que De Klerk estava em vias de salvar o
capitalismo na África do Sul. Ele não poderia conseguir isto sem
um ANC acomodatício.
Nelson Mandela criticou isto. Tendo apoiado a promessa do ANC de assumir o
comando das minas e outras indústrias monopolistas "uma
mudança ou modificação das nossas opiniões a este
respeito é inconcebível" Mandela falou com uma voz
diferente nas sua primeiras viagens triunfais ao exterior. "O ANC",
disse ele em Nova York, "reintroduzirá o mercado na África
do Sul". O acordo, com efeito, era que brancos retivessem o controle
económico em troca do governo da maioria negra: a "coroa do poder
político" para a "jóia da economia sul africana",
como disse
Ali Mazrui
. Quando, em 1997, contei a Mbeki que um homem de negócios negro
descrevera-se como "o fiambre num sanduíche branco", ele riu
em concordância, chamando a isto o "compromisso
histórico", que outros consideraram traição.
Contudo, De Klerk é que foi mais directamente ao ponto. Eu lhe disse
que ele e os seus amigos brancos haviam obtido o que queriam e que para a
maioria a pobreza não havia mudado. "Não será isto a
continuação do apartheid por outros meios?", perguntei. A
sorrir através de uma nuvem de fumo do cigarro, ele respondeu:
"Você deve entender, já alcançámos um vasto
consenso sobre muitas coisas".
A queda de Thabo Mbeki não é senão a queda de um sistema
económico fracassado que enriqueceu os poucos e rejeitou os pobres. Os
"neoliberais" do ANC por vezes pareciam envergonhados de que a
África do Sul, sob muitos aspectos, fosse um país do terceiro
mundo. "Procuramos estabelecer", disse
Trevor Manuel
, "um ambiente no qual floresçam vencedores". Jactando-se de
um défice tão baixo que havia caído ao nível de
economias europeias, ele e seus amigos "moderados" distanciaram-se da
economia pública que a maioria dos sul africanos queria e necessitava
desesperadamente. Eles aspiraram o ar quente do discurso corporativo. Ouviram
o Banco Mundial e o FMI, e logo estavam a ser convidados para a mesa principal
do Fórum Económico de Davos e para reuniões do G-8, onde
as "proezas macroeconómicas" eram louvadas como um modelo. Em
2001, George Soros colocou isto um tanto mais directamente. "A
África do Sul", disse ele, "agora está nas mãos
do capital internacional".
Serviços públicos caíram atrás das
privatizações, e a baixa inflação predominou sobre
os baixos salários e o alto desemprego, conhecido como
"flexibilidade laboral". Segundo o ANC, a riqueza gerada por uma
nova classe negra de negócios "gotejaria" para baixo.
Aconteceu o oposto. Conhecidos sardonicamentes como os
wabenzi
porque os seus veículos preferidos são Mercedes Benz cor de
prata, os capitalistas negros demonstraram que podiam ser tão brutais
quanto os seus antigos mestres brancos nas relações laborais, no
compadrio e na busca do lucro. Centenas de milhares de empregos foram perdidos
em fusões e "reestruturações" e pessoas comuns
repelidas para a "economia informal". Entre 1995 e 2000, a maioria
dos sul africanos caiu ainda mais profundamente na pobreza. Quando o fosso
entre brancos ricos e negros recém enriquecidos começou a fechar,
o abismo entre a "classe média" negra e a maioria
aprofundou-se mais do que nunca.
Em 1996, o gabinete do Programa de Reconstrução e Desenvolvimento
(RDP) foi tranquilamente encerrado, marcando o fim dos "compromisso
solene" do ANC e da "promessa inquebrantável" de colocar
a maioria em primeiro lugar. Dois anos depois, o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento descreveu o substitutivo,
GEAR, basicamente como "não diferente" da estratégia
económica do regime do apartheid na década de 1980.
Isto parecia surrealista. Seria a África do Sul um país de
tecnocratas treinados em Harvard a abrir os espumantes diante das mais recentes
classificações de crédito da Duff & Phelps em Nova York?
Ou era um país de homens, mulheres e crianças profundamente
empobrecidos sem água limpa e saneamento básico, cujos recursos
infinitos estavam a ser reprimidos e desperdiçados, mais uma vez? As
perguntas constituíam um embaraço quando o governo do NAC
endossou o acordo do regime do apartheid para aderir ao General Agreement on
Tariffs and Trade (GATT), o qual efectivamente submeteu a sua
independência económica, reembolsou os US$25 mil milhões de
dívida externa herdada da era do apartheid. Incrivelmente, Manuel
permitiu mesmo que as maiores companhias da África do Sul transferissem
suas finanças para fora e se estabelecessem em Londres.
Thabo Mbeki certamente acelerou a sua morte política com suas estranhas
censuras sobre o HIV/Sida, sua famosa indiferença e isolamento e os
negócios corruptos que pareciam nunca dele se afastar. Foi a
premeditada catástrofe económica e social do ANC que ele viu
incorrectamente. Para mais provas, vejam-se os Estados Unidos de hoje e os
fumos ruinosos do modelo "neoliberal" tão acarinhado pelos
líderes do ANC. E cuidado com aqueles sucessores de Mbeki agora a
afirmar que, ao contrário dele, eles têm os interesses do povo no
coração enquanto continuam as mesmas políticas
desagregadoras. A África do Sul merece melhor.
02/Outubro/2008
Primeira publicação no
Mail & Guardian,
de Johannesburg.
O original encontra-se em
http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=505
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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