Eleições nos EUA:
Justiça e perversão e a perversão da justiça

por James Petras [*]

No mesmo mês em que o Congresso dos Estados Unidos votou pela legalização da tortura, por descartar a Constituição através da abolição do habeas corpus e pelo aumento do orçamento militar para prolongar a carnificina diária de centenas de iraquianos e afegãos, a grande controvérsia nos mass media e entre responsáveis eleitos é acerca das iniciativas sexuais de um congressista republicano em relação a rapazes adolescentes empregados pelo Congresso.

Milhões de fundamentalistas cristãos, que apoiam cegamente a mortífera Guerra ao Terror deste Congresso republicano estão em revolta contra o seu partido devido à tolerância em relação a uma única perversão — fazendo vista grossa à tortura em Abu Ghraib, ao bombardeamento maciço do Líbano por Israel e ao criminoso abandono da administração Bush de centenas de milhares de cidadãos pobres (principalmente negros) em Nova Orleans após o Furacão Katrina.

Por que será que membros do Congresso americano e os mass media entram num frenesim político sobre transgressões sexuais como os asquerosos flirts por email do congressista Foley com rapazes ou as aventuras no gabinete do antigo presidente Clinton, de sexo extramarital com uma empregada da Casa Branca, e não sobre questões de grande alcance para a guerra ou a paz, a democracia ou o autoritarismo, a tortura ou os direitos humanos.

Comentadores superficiais resmungam acerca da nossa "herança puritana" anglo-americana: uma pseudo-explicação, a qual ignora a herança democrático-constitucional americana, nossa história recente de oposição à Guerra do Vietnam, e a nossa assinatura da Carta das Nações Unidas sobre Direitos Humanos. Uma vez que há numerosos passados históricos, não há qualquer "herança" única que domine as outras, especialmente quando o chamado passado "puritano" foi coberto por uma altamente sexualizada cultura de massa ao longo dos últimos 50 anos.

Deveríamos deixar de lado explicações psico-culturais dúbias porque elas falham ao explicar o comportamento político. Especificamente, mesmo se a "moralidade puritana" fosse um aspecto tão dominante da vida política americana, ela não pode explicar porque alguém deveria focar apenas os pecados sexuais de políticos individuais e não a imoralidade do uso generalizado e sistemático da tortura sexual praticado pelos interrogadores americanos no Iraque, no Afeganistão e no campo prisão de Guantanamo, aprovado especificamente pela administração Bush.

Para entender a perversidade da política americana, em que grandes crimes são aprovados pelo Congresso e o Presidente ao passo que pequenas contravenções sexuais tornam-se uma obsessão, uma pessoa tem de afastar-se da noção amorfa de "público americano" e examinar o que os massa media e os líderes de opinião consideram aceitável como base para a competição eleitoral.

A elite política de ambos os partidos e a liderança e a minoria no Congresso não diferem sobre as questões substantivas da guerra e da paz: ambos apoiaram a invasão e ocupação do Iraque em 2003 e acabaram de aprovar mais US$ 400 mil milhões em despesas de guerra para 2006-2007. Ambos os partidos, o Congresso e o presidente apoiaram a invasão do Líbano por Israel, sua destruição deliberada da infraestrutura civil e o lançamento de um milhão de pequenas bombas de fragmentação bem como o bloqueio e a violação de Gaza. Ambos os partidos apoiaram a extensão do Patriot Act, o qual suspende as garantias democráticas e liberdades pessoais protegidas pela Carta de Direitos (Bill of Rights) e a Constituição. Nem o Congresso nem a Casa Branca diferem na oposição à Política Nacional de Saúde, uma vez que ambos os partidos recebem milhões em financiamento de eleições das grandes empresas farmacêuticas e da companhias privadas de seguro-saúde e dos seus lobbies. Uma vez que há um consenso entre os dois partidos oficiais sobre as questões da guerra, do autoritarismo e do big business, os partidos políticos podem competir apenas sobre questões de "personalidade" e moralidade privada. Os partidos justificam assim sua existência separada e competem pelos postos evitando as questões que antagonizam as elites económicas, os militaristas civis e os poderosos lobbies pró-Israel. Focam assim na "antagonização" dos outros políticos, o que é considerado "jogo limpo" no altamente constrangido sistema político americano.

Na primeira semana de Outubro, 30 soldados americanos foram mortos no Iraque e grande quantidade foi ferida, 580 civis iraquianos foram assassinados, 20 civis libaneses foram mortos ou feridos por bombas de fragmentação deixadas pelos israelenses, dezenas de milhares de telefones, faxes e emails americanos foram interceptados sem ordem judicial, milhares de reaccionários da Argentina marcharam em Buenos Aires em defesa de antigos ditadores militares, milhares de pacíficos professores em Oaxaca, México, foram ameaçados com repressão militar maciça, 13 mineiros bolivianos e camponeses índios foram mortos pelo governo e seu apoiantes numa possível preparação de guerra civil, e um bem amado bispo nas Filipinas foi morto por esquadrões da morte pelo seu trabalho em defesa dos direitos humanos, juntando-se ali às centenas de activistas assassinados e desaparecidos... mas nada disto apareceu em qualquer lugar nos principais programas de televisão e de rádio dos EUA e mal são mencionados pelos principais jornais. Ao invés disso, ouvimos e lemos diariamente e mesmo a toda a hora relatos a revelarem os emails libertinos do congressista republicano Foley, com a liderança do Partido Democrata a emitir comunicados de imprensa e denúncias e apelos a investigações e demissões.

"Corrupção, depravação, perversão", dizem-nos os democratas, "em altos postos é inaceitável". E os republicanos, tão destemidos na defesa da tortura e dos raptos secretos, e tão audaciosa ao assinar centenas de milhões de dólares em ajuda militar adicional para Israel ... estão a esquivar-se, a agachar-se, a gaguejar e a balbuciar que "limparam a casa" com a demissão do seu congressista pervertido. Eles precisam ir em frente sem perturbações com a "guerra contra o terror internacional e interno".

O que é essencial na perpetuação da charada do sistema basicamente de "um partido", dedicado à defesa de guerras imperiais lá fora e à administração da decadência e do autoritarismo internamente, é a ilusão da "competição de partidos". Para manter esta ilusão da escolha em face de um vasto consenso da elite, é necessário um "espectáculo", preferivelmente um show no qual as perversões menores de um partido possam ser exibidas e denunciadas pelos inchados moralistas do partido da oposição. Sem este show de indignação moral e uma dose de titilação lasciva, a abstenção dos eleitores pode exceder até mesmo os habituais 65% nas eleições para o Congresso americano.

09/Outubro/2006

[*] Antigo professor na Binghamton University, Nova York. A sua obra mais recente é The Power of Israel in the United States (Clarity Press, 2006).

O original encontra-se em http://www.dissidentvoice.org/Oct06/Petras09.htm


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
12/Out/06