A Revolução de Outubro e a sobrevivência do capitalismo
A Revolução de Outubro foi a primeira revolução na
história humana teoricamente concebida e executada de acordo com um
plano. Enquanto a revolução de Fevereiro, como as
revoluções burguesas anteriores na Inglaterra e França,
havia ocorrido espontaneamente, o mesmo não se pode dizer da de Outubro.
Ao mesmo tempo, ela certamente não foi o que seus detratores muitas
vezes sugerem, isto é, uma mera revolta Blanquista. Ela não foi
uma revolta do tipo "a revolução é uma coisa
maravilhosa, então vamos tentar isto". Pelo contrário, foi
baseada numa análise teórica precisa da conjuntura, e no
desenvolvimento desta teoria a um nível onde, para tomar emprestado as
palavras de Georg Lukács, "a teoria irrompe na práxis"
[1]
. É esta compreensão teórica da conjuntura que sublinha a
revolução e que explica a sua amplitude, a enorme energia que
gerou, as mudanças profundas que operou no mundo, e a extensão em
que ameaçou a própria existência do capitalismo. Que esta
ameaça se tenha esmaecido resulta do fato de que a própria
conjuntura se alterou de maneira que não pôde ser antecipada
dentro do estágio de conhecimento teórico que então havia.
A aliança Operário-Camponesa
Esta compreensão teórica da conjuntura se desenvolveu em
estágios. Dois passos foram de particular importância. O primeiro,
datando do começo do século XX, e expresso na polémica de
V. I. Lenin contra a corrente representada pelo "Novo Iskra" de
Alexander Martynov e outros dentro do Partido Social-Democrata dos
Trabalhadores Russos, ao qual todos eles pertenciam, foi a compreensão
de que em países de desenvolvimento capitalista tardio a nova burguesia
emergente não era mais capaz de completar a revolução
burguesa contra a ordem feudal, da maneira que a burguesia francesa havia feito
durante a revolução de 1789
[2]
. Isto acontecia porque, nesta nova situação que enfrentava, esta
burguesia tinha medo de que um ataque à propriedade feudal pudesse
resvalar em um ataque contra a própria propriedade burguesa.
Para isto era necessário uma aliança operário-camponesa
sob a liderança da classe trabalhadora. Mas tal aliança, tendo
avançado a revolução burguesa contra a ordem feudal,
não poderia apenas parar ali, com a classe trabalhadora meramente
revertida ao papel de classe explorada dentro da recém-desencadeada
ordem capitalista, cujo próprio desencadeamento ela havia ajudado a
operar. A classe trabalhadora, tendo levado à frente a
revolução burguesa, iria obviamente continuar a marcha ao
socialismo em um processo revolucionário ininterrupto, dentro do qual,
obviamente, os constituintes precisos da aliança
operário-camponesa permaneceriam mudando. Como Lenin coloca em seu
Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução
Democrática
(1905):
"O proletariado deve levar a termo a revolução
democrática, atraindo para si a massa dos camponeses, para esmagar pela
força a resistência da autocracia e paralisar a instabilidade da
burguesia. O proletariado deve fazer a revolução socialista,
atraindo para si a massa dos elementos semi-proletários da
população, para quebrar pela força a resistência da
burguesia e paralisar a instabilidade dos camponeses e da pequena
burguesia."
[3]
Essa conceção de uma aliança operário-camponesa
liderada pelo proletariado com uma composição de classes
mutável ao longo do tempo, carregando a revolução
democrática até sua completude e além até o
socialismo, não foi apenas um grande passo na compreensão da
conjuntura. Ela representou um avanço fundamental dentro da
própria teoria marxista de diversas formas: em primeiro lugar, foi uma
mudança de atitude em relação ao campesinato, uma
inclusão do mesmo dentro das fileiras das forças
revolucionárias que a classe trabalhadora poderia liderar. A habilidade
da burguesia de conseguir o apoio do campesinato na revolução
francesa servira-lhe bem não apenas naquele momento mas também
depois, para derrotar a Comuna de Paris (com Adolphe Thiers instilando o medo
entre o campesinato francês, beneficiário da
revolução de 1789, de que um ataque à propriedade burguesa
acarretasse também um ataque à pequena propriedade). No entanto,
na nova conjuntura o campesinato se tornaria parte do campo proletário.
Em segundo lugar, esta mudança de atitude em relação aos
camponeses também fez do marxismo, até então confinado
à Europa, uma doutrina revolucionária de relevância para
todo o mundo, não importando quão limitado tivesse sido o grau de
desenvolvimento capitalista. Em terceiro, a transição entre
estágios do socialismo era agora o curso que todos os países no
mundo deviam seguir para a libertação do povo. O socialismo
não era mais apenas um assunto que dizia respeito a países de
capitalismo avançado; ele poderia também ser inscrito na agenda
revolucionária dos países capitalistas subdesenvolvidos, o que
significava uma total rejeição de qualquer tentativa de reduzir o
marxismo a uma teoria etapista onde diferentes modos de produção
haviam de se suceder em uma maneira predeterminada por uma questão de
inevitabilidade histórica. De fato, a jornada dos países de
capitalismo avançado poderia ser direta, enquanto a de países de
capitalismo subdesenvolvido deveria ser uma prolongada transição
histórica passando por diferentes fases; mas o socialismo poderia ser o
objetivo final de todas as lutas revolucionárias, em todos os lugares.
Imperialismo
O segundo passo teórico importante para compreender a conjuntura veio
com a teoria Leninista do imperialismo, desenvolvida no contexto da Primeira
Guerra Mundial. O fato de o capital se centralizar nos campos da finança
e da indústria, uma tendência imanente sob o capitalismo de acordo
com Karl Marx, havia levado à formação de
monopólios nestas esferas e de uma pequena oligarquia financeira que
oscilava entre as duas esferas e controlava vastas quantidades de "capital
financeiro", e o fato de que desenvolvia uma união pessoal com
empregados do Estado, exercendo controle sobre este e alterando seu
caráter, constituiu a essência desta nova fase do capitalismo.
Nesta fase, a competição entre capitais tomou a forma de
rivalidades entre diferentes monopólios associados, pertencente aos
diferentes países de capitalismo avançado, para adquirir
"território económico" através do mundo
às custas uns dos outros; e num mundo já particionado entre eles,
tais rivalidades necessariamente tomavam a forma de tentativas de
reparticioná-lo entre os mesmos através de guerras
[4]
. Estas guerras, das quais a Primeira Guerra Mundial foi um exemplo,
forçavam trabalhadores de diferentes países a se matarem uns aos
outros nas trincheiras; elas também arrastavam os povos oprimidos das
colónias, semi-colônias e territórios a serem carne de
canhão para promover os interesses das diferentes oligarquias
financeiras. O capitalismo, em outras palavras, havia chegado a um
estágio onde se promoviam guerras periódicas para redividir um
mundo já dividido, no intuito de refletir as mudanças de
forças relativas entre as diferentes potências (o que
necessariamente ocorria por conta da ubiquidade do "desenvolvimento
desigual" sob o capitalismo), havia se tornado inevitável.
A compreensão de que o estágio superior do capitalismo que Lenin,
seguindo J.A. Hobson, chamou de "imperialismo", possuía muitas
implicações. Primeiro, um importante elemento da teoria marxista
havia sido o reconhecimento de que nenhum modo de produção foi
superado até que se tornasse historicamente obsoleto. Tipicamente, no
entanto, esta "obsolescência histórica" havia sido
definida em termos estritamente económicos, em termos do mergulho numa
crise prolongada. Eduard Bernstein havia advogado por uma
"revisão" do marxismo, para substituir uma derrubada
revolucionária do sistema capitalista por uma agenda de reformas dentro
deste sistema, sob o argumento de que nenhuma crise prolongada ou
"colapso" estaria no horizonte; e Rosa Luxemburgo havia afirmado a
visão revolucionária ao desenvolver uma teoria de
acumulação de capital que apontava para um eventual colapso do
sistema. O argumento Leninista alterou completamente as bases deste debate
[5]
. O capitalismo havia-se tornado historicamente obsoleto, ou
"moribundo", como ele o chamava, porque seu estágio
imperialista havia englobado a humanidade em guerras periódicas e
devastadoras. A única escolha que este oferecia aos trabalhadores nos
países avançados era entre matar companheiros trabalhadores do
outro lado das trincheiras ou voltar suas armas contra o próprio
sistema, entre "socialismo e barbárie" (para usar as palavras
de Luxemburgo). Em segundo lugar, não eram apenas os trabalhadores nos
países capitalistas avançados que eram vítimas da
exploração imperialista e utilizados como carne de canhão
nessas guerras, mas também as pessoas trabalhadoras dos países
oprimidos que passaram por uma mudança por conta destas guerras. Sua
consciência assim como seu treino (incluindo treino militar)
desenvolveu-se a largos passos por conta destas guerras, e eles também
se levantaram contra o jugo do capital porque também estavam diante da
mesma escolha entre libertação e barbárie.
Em terceiro lugar, não apenas havia o sistema se tornado historicamente
obsoleto neste sentido geral, mas havia trazido a revolução
mundial para a agenda histórica como um fenómeno iminente. A
escolha entre socialismo e barbárie havia de ser feita ali mesmo, uma
escolha prática que havia sido empurrada à humanidade por conta
do imperialismo e suas guerras concomitantes.
Se o primeiro passo na compreensão da conjuntura era ver que todos os
países inseridos na mesma haviam de proceder por diversas rotas
até o socialismo como uma condição para a
libertação de seus povos, então o segundo passo foi
perceber que suas jornadas eram interconectadas, que o imperialismo os havia
ligado numa corrente, cuja quebra no "elo mais fraco" haveria de
iniciar um colapso da corrente como um todo. E tal quebra na corrente era
iminente na conjuntura. A consequência desta compreensão era a
construção de uma internacional, a Internacional Comunista, de
maneira que o mundo nunca havia visto, onde delegados da França,
Alemanha e Inglaterra ombreavam-se com seus camaradas da China, índia,
México, Egito e Vietname.
A compreensão da conjuntura
A visão subjacente à Revolução de Outubro de que o
capitalismo havia alcançado um ponto crítico, de que simplesmente
não poderia continuar como anteriormente, era partilhada por muitos
pensadores desta época, incluindo até mesmo anticomunistas
ardentes, o que sugere que era uma compreensão bastante precisa da
conjuntura. Desse modo, John Maynard Keynes, escrevendo em 1933, tinha isto a
dizer: "O capitalismo internacional porém individualista
decadente, em cujas mãos nos encontramos após a guerra,
não é um sucesso. Ele não é inteligente, ele
não é bonito, ele não é justo, não é
virtuoso e nem mesmo entrega o que promete. Sucintamente, não
gostamos dele, e estamos começando a desprezá-lo. Mas quando nos
questionamos sobre o que colocar em seu lugar, estamos extremamente
perplexos." Até Keynes havia começado a
"desprezar" o capitalismo da época
[6]
.
Anteriormente, no seu livro
As Consequências Económicas da Paz,
Keynes havia dado uma descrição vívida da
desintegração do capitalismo mundial, que Lenin havia citado
amplamente no Segundo Congresso da Internacional Comunista em 1920 para
argumentar que o momento para a revolução mundial havia chegado.
Como disse Lenin: "Se por um lado a posição económica
das massas se tornou intolerável, e, por outro lado, a
desintegração descrita por Keynes se instalou e está
crescendo entre a minoria insignificante dos todo-poderosos países
vencedores, então estamos na presença da maturação
de duas condições para a revolução mundial"
[7]
. A perceção de Lenin e dos bolcheviques a respeito do estado do
capitalismo mundial, do qual eles consideravam a Revolução de
Outubro o primeiro produto significativo, era então compartilhada por
muitos; e representava uma compreensão válida da conjuntura.
Esta conjuntura duraria do período preparatório da Primeira
Guerra Mundial até os anos imediatamente posteriores à Segunda
Guerra Mundial quando a descolonização começou. Dentre
suas muitas características, a principal se relacionava à
rivalidade interimperialista. A Primeira Guerra Mundial, o implacável
Tratado de Versalhes (cuja dura crítica de Keynes foi destacada por
Lenin), a Grande Depressão, a ascensão do fascismo, o massivo
avanço anexionista dos países fascistas e a Segunda Guerra
Mundial, todos eram expressões de uma forma ou de outra, de um estado de
aguda rivalidade interimperialista.
Até mesmo a sobrevivência da União Soviética foi
atribuída por Lenin à existência da disputa
interimperialista. Em um de seus últimos artigos, "Melhor Menos,
mas Melhor", ele atribuiu a falência da intervenção
militar conjunta de diversos países imperialista em apoio à
contrarrevolução russa durante a guerra civil aos conflitos entre
os países imperialistas do Ocidente e Oriente, e perguntou-se se estes
conflitos poderiam "nos dar um segundo descanso"
[8]
. Os conflitos entre os países imperialistas do Oriente e do Ocidente, e
aqueles entre os vitoriosos e os derrotados da Primeira Guerra Mundial, que o
Tratado de Versalhes havia exacerbado, atingiram seu clímax na Segunda
Guerra Mundial. No entanto, este clímax também marcou o fim da
mesma conjuntura histórica que Lenin e os bolcheviques haviam se
deparado, cuja compreensão teórica foi desenvolvida por eles a um
nível onde havia "irrompido" na práxis
revolucionária de Outubro e as subsequentes lutas por uma
revolução mundial.
O fim da Guerra viu um grande avanço da ordem Comunista; uma maior
assertividade da classe trabalhadora nos países de capitalismo
avançado, da qual a derrota de Winston Churchill pelo Partido
Trabalhista nas eleições britânicas e a enorme força
adquirida pelos Partidos Comunistas Italiano e Francês eram
manifestações óbvias; e uma inquietação sem
precedentes entre os povos das colónias, semi-colônias e
países dependentes. O capital metropolitano, enfraquecido e desorientado
pela guerra, foi forçado a fazer diversas concessões, das quais
as três mais significativas foram: descolonização,
intervenção estatal para regular a demanda com o objetivo de
manter altos níveis de emprego, a qual o capital financeiro, sempre
oposto a este tipo de intervenção direta e responsável por
preveni-la nos anos pré-guerra, foi todavia forçado a aceitar; e
a instituição de governos democráticos formados por
através do sufrágio adulto universal (que, mesmo na
França, ocorreu apenas em 1945).
Estas concessões criaram a impressão de que o capitalismo havia
"mudado", de que o velho capitalismo havia dado lugar a um novo
"capitalismo de bem-estar". Esta ideia persistiu a despeito do fato
de que a intervenção estatal para atingir altos níveis de
emprego nos Estados Unidos, a principal potência capitalista, tomou a
forma de gastos militares de larga escala, e também a despeito do fato
de que não obstante a descolonização formal (que era ela
mesma muitas vezes incompleta), as potências metropolitanas estavam por
toda parte relutantes em ceder controle sobre recursos do terceiro mundo para
os novos estados pós-coloniais
[9]
. Todavia, a perceção permaneceu de que o capitalismo havia
fundamentalmente se alterado, porque alguns dos ganhos obtidos pelos
trabalhadores nas metrópoles, e pelas pessoas no terceiro mundo, eram de
fato reais e substanciais.
Mas junto com essas mudanças, a conjuntura do pós-guerra era
também marcada por algo que ia além do que o Leninismo havia
visualizado, isto é, uma substituição da intensa disputa
interimperialista por uma abrangente dominação de uma
potência (o que alguns chamavam de "superimperialismo"). A
perceção fundamental do movimento Comunista sobre o
estágio imperialista do capitalismo, sobre a qual a
proposição sobre a iminência da revolução
mundial havia sido argumentada, ou seja, de que seria caracterizada pela
rivalidade interimperialista e guerras, deixou de ser válida na
conjuntura do pós-guerra. Sem dúvida as revoluções
Cubana e Vietnamita aconteceram durante esta conjuntura, mas elas eram mais um
produto atrasado da conjuntura anterior do que um produto específico da
conjuntura do pós-guerra.
Mesmo assim, essa conjuntura do pós-guerra provou-se ser apenas um
interregno. A concentração do capital, a tendência
ressaltada por Marx, levou à formação não apenas de
corporações multinacionais, mas de enormes blocos financeiros.
Esses blocos eram alimentados por diversas fontes: através de
contínuos défices fiscais estadunidenses durante os anos do
Bretton Woods, quando o dólar era considerado "tão bom
quanto ouro", e US$35 podiam ser trocados por uma onça de ouro;
através de enormes depósitos de petrodólares após o
aumento de preços da OPEP; e através de poupanças entrando
como depósitos no sistema financeiro durante o "boom"
prolongado do pós-guerra que foi construído através da
intervenção estatal na administração da demanda. O
capital financeiro nesta nova situação, ansioso para possuir
liberdade irrestrita para se mover pelo globo, procurou quebrar as barreiras
nacionais. Ele foi bem-sucedido neste empenho e instituiu um regime de
"globalização" que, em contraste com o regime
pós-guerra anterior, implicou numa maior mobilidade de bens,
serviços e fluxos de capital, incluindo fluxos financeiros,
através de barreiras nacionais.
O regime da globalização
A rivalidade interimperialista permanece silenciada no regime de
globalização por uma razão mais importante, não
apenas por conta da força avassaladora de uma potência
imperialista, como era o caso da conjuntura do pós-guerra, mas
também porque o próprio capital financeiro se torna globalizado e
consequentemente oposto a qualquer particionamento do globo em esferas de
influência de potências particulares que possam entravar sua livre
movimentação global.
Conquanto este fato da rivalidade interimperialista silenciada tenha sido
percebida por muitos, eles a interpretaram como significando uma
confirmação da posição de Karl Kautsky, que havia
visualizado a possibilidade de um "ultraimperialismo" contra Lenin,
que enfatizou a existência de um perene estado de rivalidade
interimperialista. Entretanto, isto é falso. Tanto Lenin quanto Kautsky
tinham em mente um contexto de capitais financeiros
nacionais,
onde o capital financeiro que ocupava o proscénio possuía bases
nacionais e era auxiliado pelo Estado nacional. Este não é o caso
hoje, onde o próprio capital financeiro é internacional, e
é uma entidade inteiramente diferente do capital financeiro que tanto
Lenin quanto Kautsky falavam. O silenciamento da rivalidade interimperialista
na era da globalização não é por conta de uma
"exploração conjunta do mundo por capitais financeiros
internacionalmente unidos"
, como Kautsky havia sugerido, mas por conta da emergência de um capital
financeiro
internacional.
Este fato é negligenciado em boa parte da discussão sobre a
"multipolaridade". Aqui, é comumente sugerido que, em um mundo
onde a "multipolaridade" parece estar a emergir, podemos testemunhar
uma volta da rivalidade interimperialista. Mas o que tal prognóstico
deixa escapar é que não são apenas os fatores
políticos que devem ser levados em conta neste contexto mas
também, acima de tudo, os fenómenos económicos subjacentes
a esses fatores; e um elemento-chave destes elementos económicos
é a hegemonia do
capital financeiro internacional.
O fato de que temos um capital financeiro internacional num mundo de estados
nacionais, ao contrário da prescrição de Keynes no ensaio
de 1933 de que "as finanças devem acima de tudo ser
nacionais", constitui uma característica definidora da
globalização contemporânea. Isto implica no fato de que o
estado-nação, por bem ou por mal, tem de consentir às
exigências das finanças, pois de outra forma estas simplesmente
deixariam suas fronteiras
en masse
para se mover para outro lugar, precipitando uma crise. O fato de que,
independentemente do aspeto do governo eleito pelo povo, ele deve seguir as
mesmas políticas económicas, isto é, aquelas que o capital
financeiro internacional prefere, de maneira a prevenir tal acontecimento,
implica numa debilitação da democracia. Além disso, ser
apanhado no vórtice das finanças globalizadas acarreta
várias implicações económicas importantes.
Primeiro, implica numa mudança da natureza do Estado. Em vez de se
posicionar, independente de seu caráter de classe, como uma entidade
acima da sociedade e aparentemente cuidando dos interesses de todos, o Estado
agora se torna mais preocupado com promover exclusivamente os interesses do
capital financeiro globalizado, sob o argumento de que os interesses da
nação coincidem com os interesses de tal capital (o fato de a
Moody's melhorar a nota de crédito de um país se torna motivo de
orgulho nacional). Uma grande consequência disto, especialmente no
contexto do terceiro mundo, é a retirada do apoio e
proteção estatais sobre o setor de pequenos produtores, incluindo
a agricultura familiar, expondo a vasta massa de pequenos produtores à
usurpação pelo grande capital, incluindo
corporações multinacionais.
A luta anticolonial sobre grande parte do terceiro mundo havia alistado o apoio
do campesinato sob a promessa de que o regime pós-colonial protegeria a
agricultura familiar da usurpação do grande capital, e
também das flutuações de preços do mercado mundial;
e a maioria dos regimes pós-coloniais tinham em graus variados protegido
e promovido a agricultura camponesa e a pequena produção, em
geral. Os beneficiários de tais medidas, sem dúvida, haviam sido
em um grau muito maior os prósperos segmentos entre tais produtores; mas
o setor como um todo, apesar de sujeito a tendências direcionadas a um
desenvolvimento capitalista
de dentro,
havia sido protegido da incursão do grande capital
de fora
. O estado neoliberal retira o apoio e a proteção, jogando este
vasto setor numa crise. Grandes números de pequenos produtores e
trabalhadores dependentes de tal produção, ou continuam na mesma,
afundando mais profundamente na miséria, ou migram para as cidades em
busca de empregos não existentes, ou (como vem acontecendo na
índia) recorrem a suicídios em massa.
Em segundo lugar, há um aumento no tamanho relativo das reservas de
trabalho porque o aumento da procura laboral, mesmo com altas taxas de
crescimento do PIB, não é grande o suficiente para absorver o
aumento natural na força de trabalho, muito menos os pequenos produtores
deslocados. Consequentemente, os salários reais dos trabalhadores, mesmo
os trabalhadores organizados, aumentam escassamente, apesar de aumentos na
produtividade do trabalho. Isto aumenta a quota do excedente no terceiro mundo,
que é dominada por grandes reservas de trabalhadores, e por
consequência aumenta a desigualdade de rendimento.
Contudo, o mesmo não é verdadeiro apenas no terceiro mundo.
Já que o capital adquire mobilidade entre os países
avançados e subdesenvolvidos, mesmo os trabalhadores dos países
avançados se tornam sujeitos a competição com os
trabalhadores de baixos salários do terceiro mundo, e portanto aos
efeitos maléficos das reservas de trabalho terceiro-mundistas que
mantém estes salários baixos. Isto significa que os
salários reais dos trabalhadores de países avançados
também não aumentam (apesar de obviamente não
caírem aos níveis registados no terceiro mundo), mesmo quando a
produtividade do trabalho aumenta nestas economias. Há um aumento da
parte do excedente e portanto, como resultado, na desigualdade de rendimento
destes países também. (Nos Estados Unidos, de acordo com Joseph
Stiglitz, o salário médio real de um trabalhador masculino
não apenas não aumentou entre 1968 e 2011, mas até mesmo
diminuiu ligeiramente)
[10]
. Em resumo, o que ocorre é uma elevação da parte do
excedente no produto mundial.
Em terceiro lugar, já que a propensão marginal para consumir a
partir de rendimentos salariais é maior do que aquela de rendimentos
derivados de excedentes económicos (que tipicamente pertence aos ricos),
o aumento na parte do excedente dá origem a uma tendência em
direção à superprodução na economia mundial,
exatamente da maneira que Baran e Sweezy haviam argumentado no contexto da
economia estadunidense nos anos 50 e 60
[11]
.
Quarto: a capacidade de qualquer estado-nação de intervir contra
esta tendência
ex ante
à superprodução (que, de acordo com Baran e Sweezy, foi o
que os Estados Unidos fizeram através de maiores gastos militares nos
anos 50 e 60) é frustrada no regime da globalização. Para
a intervenção estatal contrabalançar esta tendência
à superprodução, ela deve ser financiada ou por um
défice fiscal, ou por impostos que recaem maioritariamente sobre as
poupanças, o que significa impostos sobre os capitalistas (quer sobre
lucros ou ações) já que a propensão destes a poupar
é alta. Mas nenhum estado-nação em uma economia apanhada
no vórtice das finanças globalizadas pode produzir um
défice fiscal (além dos 3% do PIB permitidos pela lei na maioria
dos países) ou tributar os capitalistas, por medo de causar um
êxodo de capital. E os Estados Unidos, que não possuem nem
"leis de responsabilidade fiscal" (limitando o défice fiscal a
3% do PIB), nem precisa se preocupar com fugas de capitais, já que sua
moeda, mesmo no mundo pós-Bretton Woods, ainda é considerada
"tão boa quanto ouro", é relutante em executar
défices fiscais. Isto é porque no regime da
globalização, no qual as corporações americanas
vêm instalando fábricas no exterior para se aproveitar dos baixos
salários, um estímulo fiscal implicaria a geração
de empregos no exterior para exportar bens para os Estados Unidos, o que
aumentaria a dívida externa deste último país
[NT]
.
A tendência a uma superprodução
ex ante
portanto cria a crise estrutural que pode, na melhor das hipóteses, ser
contida por ocasionais "bolhas" de preços de ativos, mas se
manifesta quando tais "bolhas" colapsam
[12]
. Assim, o regime da globalização ocasiona aumento da
desigualdade, estagnação de salários, a
dizimação da pequena produção causando absoluta
miséria para grandes segmentos da população trabalhadora
do terceiro mundo, e uma tendência a uma crise estrutural que pode, no
melhor dos casos, ser mantida a distância pelas "bolhas"
ocasionais, cujo colapso agrava as condições das camadas
trabalhadoras do mundo através de mais desemprego. O conservadorismo
fiscal age na direção não apenas de acentuar a crise
(já que possui um assim chamado efeito
"pró-cíclico"), mas também efetuando cortes nos
gastos e nos benefícios sociais.
Em contraste com a conjuntura do
dirigismo
do pós-guerra, que havia presenciado um silenciamento das disputas
interimperialistas junto a concessões que o capital havia sido
forçado a fazer, criando então a impressão de que o
"capitalismo havia mudado", o regime da globalização,
apesar de continuar a testemunhar um silenciamento das disputas
interimperialistas, ocasiona uma "volta atrás ao
relógio" quando se refere ao estado de bem-estar social, o pretenso
"capitalismo de face humana", tanto nos países de economia
capitalista avançada quanto nos subdesenvolvidos. A ascendência do
capital financeiro internacional, enquanto silencia as disputas
interimperialistas, traz à tona mais uma vez a natureza extremamente
predatória do capitalismo, o fato de que este, para usar as palavras de
Keynes, "não é justo", "não é
virtuoso", "não entrega o que promete" e é capaz
apenas de ser "desprezado".
Transcendendo a conjuntura
Superar as dificuldades das camadas trabalhadoras na conjuntura atual requer a
intervenção estatal nesse sentido. Isto por sua vez requer
não apenas que o estado seja sensível aos apuros do povo
trabalhador mas também que possua autonomia quanto à
escravidão aos caprichos do capital financeiro internacional de modo a
ser capaz de buscar uma agenda que beneficie os trabalhadores. Esta autonomia
pode ser alcançada apenas em uma de duas maneiras. Uma delas é
através da união dos principais estados-nações
(criando, por assim dizer, um "estado-mundo") que poderia superar a
oposição do capital financeiro internacional à
implementação de uma agenda favorecendo os trabalhadores; a outra
é através de países, sozinhos ou agrupados, rompendo com o
vórtice das finanças globalizadas, e colocando em prática
controles de capitais que lhes dariam a autonomia para perseguir uma agenda
alternativa.
Deixe-me elaborar. Um aumento no nível da procura agregada é
essencial para reduzir o desemprego na economia mundial; na ausência de
tal aumento, qualquer país em particular tentando aumentar o emprego
através de mero protecionismo, tal como Trump está fazendo,
equivale a uma política de empobrecimento de países vizinhos,
isto é, exportar o desemprego, o que necessariamente provocaria a
retaliação de outros países, minando ainda mais a
"confiança" dos capitalistas, e portanto acentuando o
desemprego no geral e a crise.
Mas numa situação onde, não surpreendentemente, a
política monetária se provou incapaz de aumentar a procura, um
aumento na procura agregada mundial pode ocorrer apenas através de meios
fiscais, sobre os quais existem apenas duas possibilidades
[13]
. Uma delas é através de um estímulo fiscal coordenado por
diversos estados-nações importantes em desafio aos desejos do
capital financeiro internacional. Mas tal movimento (que incidentalmente foi
debatido por um grupo de sindicalistas alemães nos anos 30, e
também por Keynes) pode apenas ocorrer como resultado da pressão
exercida pelas lutas coordenadas dos trabalhadores destes países, da
qual não há sinal no presente
[14]
. A segunda maneira de aumentar a procura agregada (além de
políticas de "empobrecimento do vizinho") seriam países
individualmente se desligarem do vórtice dos fluxos de capital
globalizado pela imposição de controles de capitais e provendo
estímulos fiscais expansionistas a suas respetivas economias
através de maiores gastos governamentais financiados por um
défice orçamental ou impostos sobre os capitalistas. Já
que a possibilidade de forjar uma aliança operário-camponesa que
possa sustentar tal estado é muito maior dentro de um país em
particular do que através de vários países, transcender a
conjuntura atual requer desligar-se do regime existente da
globalização (a extensão exata de tal desligamento
deverá ser determinado pelas circunstâncias).
É claro, transcender a conjuntura atual através da
construção de uma aliança operário-camponesa dentro
de um país particular (que deveria ser tipicamente um grande país
de terceiro mundo com presença considerável da pequena
produção) não pode ser o fim da história. Assim
como, na análise de Lenin, levar adiante a revolução
democrática até sua completude pelas mãos da
aliança operário-camponesa não era o fim da
história, já que se tornou parte do processo de
transição ao socialismo, da mesma forma desligar-se da
globalização, para reverter suas consequências
maléficas para os trabalhadores e pequenos produtores, pois um estado
baseado numa aliança operário-camponesa vai ser parte de uma
transição, por estágios, até o socialismo.
Transcender a
conjuntura,
em outras palavras, se torna parte do processo de transcender o
sistema
em si mesmo. Mesmo que por acaso as forças revolucionárias
constituintes da aliança operário-camponesa se tornem alheias a
esta necessidade, a oposição do capital financeiro internacional
a seu (aparentemente modesto) esforço para transcender a conjuntura em
si mesma faria (nas palavras de Marx) com que a "dialética fosse
martelada" nelas, lembrando-os da necessidade de ir além do sistema
mesmo que tentassem ir apenas além da conjuntura.
Em resumo, a conjuntura atual revive novamente a relevância da agenda
Leninista que informou a Revolução de Outubro, ainda que por
razões não idênticas às anteriores. Ao desejo dos
camponeses de liberdade do jugo feudal agora é adicionado o desejo
camponês (e de outros pequenos produtores do terceiro mundo
também) por liberdade da opressão do regime neoliberal imposto
pelo capital financeiro internacional sob a globalização. A
revolução democrática deve agora envolver o desligamento
do regime da globalização para que o estado-nação
adquira uma autonomia vis-à-vis o capital financeiro internacional, que
em seu lugar é uma condição para que qualquer
intervenção política feita por uma aliança
operário-camponesa seja bem-sucedida. A globalização criou
tanto a necessidade quanto a possibilidade de uma aliança
operário-camponesa e trouxe o mundo a uma passagem cuja escolha colocada
é entre seguir em frente através do forjamento de tal
aliança ou permanecer atolado numa crise onde o capital financeiro vai
confiar cada vez mais no apoio do fascismo para sustentar sua hegemonia.
No entanto, uma questão importante é levantada aqui. Enquanto o
capitalismo mais uma vez assumiu uma forma onde ele merece apenas ser
"desprezado", o silenciamento das disputas interimperialistas faz com
que sustentar qualquer esforço para escapar a hegemonia do capital
financeiro internacional se torne muito mais difícil, diferentemente
até mesmo da época de Lenin. Transcender a própria
conjuntura se torna difícil na ausência de desunião das
principais potências capitalistas. Ou, colocando-se de outra forma, o
silenciamento das disputas interimperialistas parece criar uma
situação "sem saída", onde apesar da
opressividade da conjuntura atual qualquer escapatória dela parece
impossível.
Enquanto a resposta a esta questão deve ser encontrada na práxis,
o que ela de fato sugere é que a preservação de uma forte
aliança operário-camponesa se torna muito mais importante para
transcender a conjuntura atual, mesmo que ela possa fazer a
transição para o socialismo muito mais morosa. A maior causa para
a debilidade da União Soviética, que a Revolução de
Outubro havia criado, era a dificuldade de manter esta aliança; de fato
seu rompimento através da coletivização forçada foi
o que deixou uma permanente cicatriz no novo sistema. Essa fraqueza deve ser
evitada
[15]
. A necessidade de desligar-se do atual regime de globalização
é comumente não apreciada pela esquerda, o que faz com que
segmentos significativos da esquerda, sem dúvida involuntariamente,
sujeitem-se à hegemonia do neoliberalismo. Libertar-se desta hegemonia
é sem dúvida a primeira prioridade para transcender a conjuntura.
Julho/2017
Notas
(1) Georg Lukács,
Lenin
(London: New Left, 1970).
(2) V. I. Lenin,
Two Tactics of Social Democracy in the Democratic Revolution,
in Selected Works, vol. 1 (Moscow: Progress Publishers, 1977).
(3) Lenin,
Two Tactics of Social Democracy,
494.
(4) V. I. Lenin,
Imperialism: The Highest Stage of Capitalism,
in Selected Works, vol. 1.
(5) Sobre isto, ver Paul M. Sweezy,
The Theory of Capitalist Development
(New York: Monthly Review Press, 1956).
(6) J. M. Keynes, "National Self-Sufficiency,"
Yale Review
22, no. 4 (1933): 75569.
(7) V. I. Lenin,
Selected Works
, vol. 3 (Moscow: Progress Publishers, 1975), 397.
(8) Lenin,
Selected Works
, vol. 3, 724.
(9) Ver Harry Magdoff, "Militarism and Imperialism",
Monthly Review
21, no. 9 (February 1970): 114.
(10) Joseph Stiglitz, "Inequality Is Holding Back the Recovery",
New York Times,
January 13, 2013.
(11) Paul A. Baran and Paul M. Sweezy,
Monopoly Capital
(New York: Monthly Review Press, 1966).
(12) Esta argumentação foi apresentada com maior detalhe em
Prabhat Patnaik, "Capitalism and Its Current Crisis",
Monthly Review
67, no. 8 (January 2016): 113.
(13) Michal Kalecki percebeu a inadequação da politica
monetária para estimular a atividade econômica em seu artigo
clássico "Political Aspects of Full Employment," reimpresso em
Selected Essays on the Dynamics of the Capitalist Economy 19331970
(Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1971).
(14) C. P. Kindleberger,
The World in Depression 19291939
(Berkeley, CA: University of California Press, 1986).
(15) Uma visão, amplamente difundida na esquerda, que contribui para
esta fraqueza é a de que qualquer pequena produção para o
mercado é progenitora do capitalismo. Isto é incorreto, tanto
teórica quanto historicamente. Ver Prabhat Patnaik, "Defining the
Concept of Commodity Production,"
Studies in People's History
2, no. 1 (2015): 11725.
(NT) Aqui há, evidentemente, um erro. Os EUA não precisam se
endividar no exterior para pagar pelas próprias
importações, uma vez que o dólar estadunidense é a
moeda de referência no comércio internacional, sendo aceito por
qualquer país como pagamento de suas exportações. Os EUA
nunca ficam, por definição, "sem dólares" para
pagar suas despesas.
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
monthlyreview.org/...
. Tradução de Rafael Ruggiero e revisão de Luiz Lima (com
pequenas alterações de resistir.info)
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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