Acerca do imperialismo em Marx
Em 19 de Fevereiro de 1881 Karl Marx escreveu uma
carta notável a NF Danielson
, o famoso economista
Narodnik
que também assinava sob o nome de Nikolayon e cujo trabalho foi muito
discutido por Lenine. Naquela carta Marx dizia o seguinte:
"Na
Índia,
graves complicações, se não mesmo uma explosão
geral, aguardam o governo britânico. O que os ingleses tomam deles
anualmente na forma de renda, dividendos por ferrovias inúteis para os
indianos, pensões para o pessoal do serviço militar e civil, para
o Afeganistão e outras guerras, etc, etc o que tomam deles
sem qualquer equivalente
e sem considerar aquilo de que anualmente se apropriam
dentro
da Índia, mencionando apenas o
valor das commodities
que os indianos gratuitamente e anualmente têm de enviar para a
Inglaterra tudo isto representa
mais do que a soma total do rendimento de sessenta milhões de
trabalhadores agrícolas e industriais da Índia!
Isto é um processo hemorrágico, com uma vingança! Os anos
de fome estão a pressionar uns contra os outros e em dimensões
até agora ainda não suspeitadas na Europa!"
Este parágrafo é notável por várias razões.
Acima de tudo, porque é a primeira vez em que Marx menciona a
"drenagem do excedente" da Índia para a Grã-Bretanha
ou, mais generalizadamente, do terceiro mundo para as metrópoles. O
facto de que o capital metropolitano procura mercados por todo o mundo e, por
essa razão, derruba as "muralhas da China" de todas as
sociedades até então isoladas, isto é, o facto de que
há um impulso imperialista subjacente à busca de mercados por
todo o terceiro mundo, fora reconhecido por Marx e Engels no próprio
Manifesto Comunista,
mas o facto de o imperialismo sugar o excedentes destas regiões remotas
não figurava em qualquer dos escritos anteriores de Marx.
Em segundo lugar, uma vez que este excedente ia além do que era
apropriado "em casa" aos trabalhadores explorados pelo capital
metropolitano, desempenhava claramente um papel e também um papel de
significância considerável, considerando a escala da
extracção da Índia mencionada por Marx, na dinâmica
do capitalismo metropolitano. Por outras palavras, muito embora Marx não
o diga explicitamente, torna-se claro a partir das suas
observações que a dinâmica capitalista não poderia
ser analisada sem considerar esta enorme extracção. Isto seria,
se não exactamente afim a encenar Hamlet sem o Príncipe da
Dinamarca, pelo menos a encenar Hamlet sem Claudius, o usurpador do Reino da
Dinamarca.
Em terceiro lugar, trata-se do único reconhecimento em Marx de qualquer
papel significativo do imperialismo na dinâmica do capitalismo
metropolitano, para além do palco da acumulação primitiva
de capital. O imperialismo figura na discussão de Marx da
acumulação primitiva de capital. Mas depois disso mal se vê
que ele desempenhe qualquer papel significativo na sua análise.
Isto sempre foi um facto curioso, uma vez que ninguém escreveu com maior
conhecimento do que Marx, e com maior percepção também, do
que o capitalismo metropolitano fez
às
economias colonizadas; e os seus sentimentos para com os povos colonizados
eram palpavelmente cheios de simpatia. Mas há muito pouco em todos os
três volume do
Capital
acerca do impacto do imperialismo
sobre as economias metropolitanas.
No Volume III do
Capital
há alguma discussão do papel do comércio colonial para
contrariar a tendência de queda da taxa de lucro, mas em outros contextos
há uma ausência completa de qualquer papel assinalado por Marx
para o imperialismo na sua análise do capitalismo metropolitano.
O que é particularmente estranho acerca desta ausência é
que Marx estava a escrever seus artigos seminais acerca do domínio
britânico na Índia para o
New York Daily Tribune
quase exactamente ao mesmo tempo em que trabalhava em
O Capital;
e sem dúvida suas visitas ao Museu Britânico que ele fazia nas
investigações sobre o
Capital
também eram utilizadas para desenterrar informação sobre
o impacto do domínio britânico na Índia. E ainda assim
não há qualquer traço no núcleo central do
argumento do
Capital
de qualquer impacto do domínio britânico na Índia sobre a
economia britânica,
quase como se o domínio britânico fosse apenas uma espécie
de espectáculo secundário para o drama principal do capitalismo,
como acontecera nos escritos de clássicos da economia política,
especialmente de David Ricardo.
O modelo de capitalismo analisado por Marx em
O Capital
é para todos os propósitos práticos o modelo de uma
economia fechada e isolada. Certamente alguém pode estender este modelo
a fim de incorporar um relacionamento colonial, encarado essencialmente como
providenciando um mercado onde bens metropolitanos são transformados
para aqueles produtos do terceiro mundo os quais são exigidos pelas
metrópoles. Mas o colonialismo como um fornecedor de excedente para a
acumulação na metrópole, exactamente no mesmo nível
do valor do excedente apropriado internamente aos trabalhadores, simplesmente
não figura na análise. A carta a Danielson é a primeira
vez em que isso figura nos escritos de Marx.
A quarta razão para a importância desta carta é deixar
claro que Marx não vê o processo de acumulação
primitiva como pertencendo apenas à pré-história do
capitalismo; ele encara-a como algo que continua ao longo da história
desse modo de produção. Não é como se o capitalismo
recorresse à acumulação primitiva só antes de
começar a existir, mas que uma vez posto de pé prosseguisse
inteiramente na base da sua acumulação do valor excedente
extraído dos trabalhadores, nada mais tendo a ver com qualquer
expropriação das colónias. Mais correctamente, o processo
da acumulação primitiva continua através da sua
história, ao longo do que se poderia chamar
"acumulação normal", isto, é, a
acumulação de valor excedente apropriada dentro do sistema.
Em suma, a carta a Danielson é extremamente importante para marcar uma
certa nova tendência no pensamento de Marx. E levanta-se a
questão: como é que Marx chegou aos números mencionados
naquela carta e aos componentes daquela "drenagem"? Não
obstante a sua extraordinária erudição ele não
poderia ter chegado àqueles números por si próprio, uma
vez que era exigido um certo conhecimento especializado dos orçamentos
indianos, para os quais ele dificilmente teria tempo. Como então chegou
a estas conclusões?
Uma pista para este puzzle é dada pelo facto de que
Dadabhai Naoroji
, o qual chegou a estes números e foi o primeiro a fazê-lo
(já em 1867 apesar de a sua
magnum opus, Poverty and Un-British Rule in India,
ter sido publicada só em 1901) e Karl Marx partilhavam um amigo comum
na pessoa de
HM Hyndman
, que foi um homem de negócios próspero e
se tornou um socialista comprometido depois de ler o
Manifesto
e o Volume 1 de
O Capital
e constituiu uma organização chamada Federação
Social Democrática. Marx e sua filha tiveram jantares na casa de Hyndman
onde não é inconcebível que possam ter-se encontrado com
Naoroji e discutido com ele a questão da "drenagem do
excedente" da Índia. Mesmo que Marx e Naoroji não se tenham
encontrado pessoalmente, é mais do que provável que as
estimativas de Naoroji tenham sido passadas a Marx por Hyndman, o qual conhecia
Naoroji há muitos anos e tinha acesso às suas ideias.
Há alguma evidência interna deste contacto, directo ou indirecto,
no texto da carta para Danielson. Hyndman escreveu um livro sobre as grandes
fomes na Índia sob o domínio britânico, para o qual
consultou Naoroji a fim de obter fontes e evidências factuais sobre a
extensão da pobreza. A ligação entre as fomes e a
"drenagem" é óbvia e deve ter figurado de forma
tão destacada na mente de Naoroji e portanto também no pensamento
de Hyndman que a referência de Marx a "anos de fome"
imediatamente depois de mencionar o "processo hemorrágico" sugere
um claro compartilhar de ideias.
Marx morreu, infelizmente apenas dois anos após esta carta a Danielson e
não teve tempo de desenvolver as ideias contidas na mesma. Mas aquela
carta, a qual marca um ponto de viragem do pensamento de Marx, dá
testemunho da sua abertura mental, assim como do facto de que no seu pensamento
havia um fluxo subterrâneo paralelo o qual permaneceu inexplorado
até aquela data. Ela nega a visão mantida por muitos, inclusive
Edward Said
, de que na sua análise Marx não era suficientemente
sensível a toda a questão da exploração
imperialista.
24/Dezembro/2017
Ver também:
Timeline of major famines in India during British rule
Famine in India
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2017/1224_pd/marx-imperialism
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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