A desmonetização de notas de dinheiro
[O primeiro-ministro] Narendra Modi foi à televisão nacional
às 20 horas do dia 8 de Novembro a fim de anunciar que a partir da meia
noite daquele mesmo dia, isto é, dali a apenas quatro horas, as notas de
500 [6,94] e 1000 [13,88] rupias deixariam de ter curso legal. A
justificação avançada para esta medida bizarra foi o
combate ao "dinheiro negro". Um argumento adicional foi
lançado, o de que notas falsas de papel-moeda utilizadas por
"terroristas" agora deixariam de ser efectivas. E alguns apoiantes do
governo particularmente entusiastas chegaram mesmo a chamar a isto de
"ataque cirúrgico contra o terrorismo".
Voltarei à questão da moeda falsa mais adiante. Deixem-me
primeiro examinar o argumento do "dinheiro negro", o qual até
o presidente Pranab Mukherjee resolveu endossar. Este argumento, nomeadamente
que a desmonetização das notas de 500 e 1000 rupias constitui um
ataque ao "dinheiro" negro, baseia-se numa falta de entendimento
absoluta acerca da natureza do "dinheiro negro", uma
concepção que é espantosamente simplória.
O entendimento implícito é que o "dinheiro negro"
consiste de tesouros em papel-moeda
(cash)
que são mantidos em baús, em colchões ou enterrados. Com
base neste entendimento sugere-se então que se as notas de 500 e 1000
rupias forem desmonetizadas, então as pessoas que forem aos bancos para
trocar grandes quantias das velhas notas pelas novas de curso legal
tornar-se-iam suspeitas para o bancos e estes, por sua vez, transmitiriam suas
suspeitas às autoridades fiscais que então apanhariam os
culpados. O "dinheiro negro" seria portanto revelado e isto
desencorajaria novas transgressões futuras.
A segunda parte deste argumento, mesmo supondo que o "dinheiro negro"
consiste realmente de papel-moeda entesourado, faz pouco sentido. Se uma pessoa
possui, digamos, 200 milhões de rupias em notas de 500 e 1000 rupias,
então tal pessoa certamente não iria com todos os seus 200
milhões a um banco para trocá-las pela nova moeda de curso legal
(não lhe seria permitido fazer, de qualquer forma). Ela, ao invés
disso, enviaria vários factótuns ao banco, cada um deles levando
um pequeno montante, e isso ao longo de um certo número de dias
até a data final de 30 de Dezembro. Na realidade, mesmo este
esforço prolongado seria desnecessário uma vez que logo surgiria
toda espécie de intermediários que cumpririam esta tarefa de
trocar velhas notas por novas por conta de clientes mediante uma
compensação. Com tais "operadores negros", a trocarem
"dinheiro negro" do velho curso legal pelo novo, a ideia
debatida por "peritos" em vários canais de TV de que
desmonetizar notas de 500 e 1000 rupias desenterraria tesouros de cash ilegal
faz pouco sentido.
CONCEPÇÃO ABSURDA
Contudo, e ainda mais importante, é que esta concepção de
"dinheiro negro" é absurda. Na verdade a própria
expressão "dinheiro negro" é inadequada uma vez que
evoca a imagem de
um stock de moeda
o qual supõe-se ser mantido não abertamente, na forma de
depósitos bancários, mas sim clandestinamente na forma de
papel-moeda e também em colchões ou em contentores enterrados.
Realmente, quando falamos de "dinheiro negro" temos em mente todo um
conjunto de
actividades
as quais são
ou
inteiramente ilegais, tais como contrabando, tráfico de droga ou
obtenção de armas para organizações terroristas,
ou
são empreendidas além do que é legalmente permitido,
ou
não são declaradas de todo de modo a não serem pagos
impostos sobre ele. Se 100 toneladas de minérios são
extraídas mas apenas 80 toneladas são declaradas, a fim de
reduzir a carga fiscal, então temos um caso de geração de
"dinheiro negro". Igualmente, se US$100 de exportações
são efectuadas mas só US$80 são declaradas e os US$20
remanescentes são mantidos no exterior em banco suíços, o
que é contra a lei, então temos outro caso de
geração de "dinheiro negro". Ou se são trocadas
rupias em divisas estrangeiras através da rota do
hawala
e mantidas em depósitos no exterior, então temos mais um caso de
geração de "dinheiro negro". Em suma, "dinheiro
negro" refere-se a todo um conjunto de
actividades
não declaradas.
"Dinheiro negro", portanto, refere-se não a um
stock
mas sim a um
fluxo.
As "actividades negras", tal como as "brancas",
destinam-se a dar lucros àqueles que a elas se dedicam e manter
um tesouro em forma de moeda simplesmente não gera lucro. O que Marx
disse
acerca de actividades de negócios também vale para as
"actividades negras", nomeadamente que lucros são ganhos
não a entesourar moeda mas sim lançando-a na
circulação. O "avarento" é o ancestral, o
capitalista é o actual. E aqueles empenhados em "actividades
negras" são capitalistas, não avarentos. Naturalmente, em
qualquer negócio o dinheiro também é mantido por um
período mais curto ou mais longo (ex., durante o circuito M-D-M); mas
isto é verdade tanto para "actividades brancas" como para
"actividades negras", de modo que a crença em que a
differentia specifica
do "dinheiro negro" é que este é
mantido
ao passo que o "dinheiro branco" é
utilizado para a circulação
é totalmente destituída de fundamento.
Todo o dinheiro circula,
com pausas ocasionais quando é mantido, quer seja empregue em
"actividades negras" ou em "actividades brancas". A
essência da revelação do "dinheiro negro" repousa
portanto em rastrear "actividades negras", não em atacar
possuidores de dinheiro
per se.
E isto exige investigação honesta, sistemática e
meticulosa.
Muito antes de haver computadores, o Internal Revenue Service britânico
havia ganho a reputação de que acabaria por apanhar qualquer
infractor fiscal simplesmente através de um processo de
investigação afinada e meticulosa. Na verdade, a
Grã-Bretanha é um país pequeno em comparação
com a Índia, mas isto significa apenas que a dimensão do pessoal
da administração fiscal tem de ser maior, adequada às
necessidades do país. E se isto for feito, então a
revelação do "dinheiro negro", pelo menos na economia
interna, é meramente uma questão de administração
fiscal paciente e eficiente.
Entretanto, uma porção apreciável das "actividades
negras" é operada através de bancos localizados no exterior
na verdade alguns diriam que esta constitui uma porção
muito maior. O próprio Narendra Modi antes da sua eleição
havia falado em "trazer de volta" o "dinheiro negro"
acumulado no exterior, sugerindo que o grosso do "dinheiro negro"
estava localizado lá fora, ainda que a sua observação
apresentasse o mesmo entendimento ingénuo de que "dinheiro
negro" refere-se a um tesouro ao invés de um conjunto de
actividades. Mas se bancos estrangeiros constituem a fonte predominante do
financiamento de "actividades negras", então a
desmonetização das notas de 500 e 100 rupias, ainda que
provocando muitas dificuldades para o povo, pouco fará para
eliminar tais actividades.
Não é a primeira vez na Índia que se verifica tal
desmonetização de notas. Em Janeiro de 1946, as
notas de 1000 e 10.000 rupias foram desmonetizadas; em 1978 o governo Morarji
Desai desmonetizou notas de 1000, 5000 e 10.000 rupias a partir da meia-noite
de 16 de Janeiro. Mas mesmo em 1978, quem dirá em 1946, isto não
causou dificuldades para as pessoas comuns, uma vez que a maior parte mal tinha
visto uma nota dessas e muito menos possuído uma (Mesmo em 1978, Rs 1000
era um bocado de dinheiro e pessoas comuns dificilmente viam notas com o valor
facial de 1000 rupias). Mas aquela medida do governo de Morarji Desai, apesar
de não afectar pessoas comuns, tão pouco pôs fim ao flagelo
do "dinheiro negro". A medida do governo Modi, se bem que igualmente
ineficaz contra o "dinheiro negro", tem o defeito acrescido de
afectar gravemente o povo.
Alguns tem argumentado que, quer a desmonetização das notas de
500 e 100 tenha ou não o efeito de se contrapor ao "dinheiro
negro", ela representa uma medida de longo prazo para afastar a
utilização da cash da economia e nesse sentido tem
importância para restringir actividades não explicadas que
tipicamente não são financiadas através de canais
institucionais reconhecidos. Mas mesmo ignorando o facto de que
"actividades negras" financiadas através de bancos
estrangeiros ainda escapam à detecção numa Índia
que não utiliza papel-moeda
(cashless),
a própria ideia de uma Índia
cashless
representa uma fantasia de um segmento da elite, a qual está totalmente
inconsciente da dificuldade que uma pessoa comum enfrenta para obter um
cartão de crédito, ou mesmo abrir uma conta bancária
(apesar das jactâncias ruidosas de Modi acerca da expansão da
"bancabilidade" do povo). O movimento rumo a uma economia sem
papel-moeda, ainda que não se concretize, simplesmente
tornar-se-á um meio adicional através do qual o povo será
espremido.
E quanto ao outro argumento de que tal desmonetização actua
contra o terrorismo ao impedir a circulação de notas falsas
através impressas "além fronteira"? Este argumento
depende crucialmente da suposição de que a tecnologia empregada
na impressão do novo dinheiro de curso legal impedirá qualquer
possibilidade de falsificá-lo. Vamos aceitar essa
suposição. Mesmo assim, a introdução do tal novo
dinheiro de curso legal que não pode ser falsificado, à custa do
dinheiro legal existente, poderia ter sido efectuada de um modo gradual e
discreto, exactamente como é efectuada rotineiramente a
introdução de notas de dinheiro novo em
substituição da velhas. Se o governo não estava à
espera de uma avalanche de notas falsas na noite de 8 de Novembro, por que
não evitou o ataque súbito, surpreendente e maciço
à segurança e comodidade do povo que lançou nessa noite?
MEDIDA INSENSATA
O que o governo Modi fez é sem precedentes na história da
Índia moderna. Mesmo o governo colonial mostrou maior sensibilidade
quanto à conveniência do povo do que o governo Modi pois
desmonetizou apenas aquelas notas possuídas pelos super-ricos e
não as possuídas pela generalidade do povo. Esta "medida de
emergência, contudo, está de acordo com numerosas outras medidas
que estão a ser actualmente perseguidas pelo governo Modi, o qual
embarcou numa "Emergência" não declarada: ela é
tão insensata quanto anti-popular.
20/Novembro/2016
Ver também:
L’or cote 2 800 dollars l’once en Inde
, 22/Nov/16
India's War On Cash Is Forcing The Rich To Beg The Poor For Help
, 22/Nov/16
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2016/1113_pd/demonetisation-currency-notes
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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