Capitalismo e discriminação entre trabalhadores
Há um paradoxo peculiar no centro do capitalismo. Como é um
sistema que institui a mobilidade livre dos trabalhadores entre sectores, as
taxas de salário real deveriam ser equalizadas entre
ocupações que não fossem demasiado diferentes uma das
outras em termos de penosidade, periculosidade ou desconforto, ou
exigências de qualificação, ou intensidade de
esforço, etc. Por outras palavras, empregos mais árduos, mais
perigosos e mais desagradáveis deveriam ser mais bem pagos em
comparação com aqueles menos árduos, menos perigosos ou
menos desagradáveis, tudo o mais constante (isto é, por unidade
de tempo de trabalho homogéneo). Mas na realidade sob o capitalismo, os
empregos mais árduos e mais desagradáveis são sempre os de
pagamentos mais baixos. O exemplo óbvio é o dos empregos servis,
os quais recebem os pagamentos mais baixos muito embora sejam muito mais
árduos e desagradáveis. Este é o paradoxo.
Alguns podem pensar que empregos servis exigem menos
qualificações, isto é, que o trabalho em tais empregos e o
trabalho em outros empregos não pode ser incluído na mesma
categoria de "tempo de trabalho homogéneo", ou, mais
geralmente, que todas estas comparações que aparentemente
relacionam tempo de trabalho homogéneo estão realmente a examinar
empregos que envolvem diferenças de qualificação, de modo
que a existência de diferenças salariais, uma vez que reflectem
diferenças de qualificação, não constituem paradoxo
de modo algum.
Mas este argumento e indefensável por duas razões. Primeiro,
mesmo o que é considerado "trabalho servil" exige
qualificações não menores do que vários outros
empregos com salários mais altos. E, segundo, mesmo assumindo que outros
trabalho exija "qualificações" enquanto o trabalho
servil não, estas "qualificações" em muitos
casos são adquiridas na própria prática
("on the job"),
caso em que a taxa salarial de um novo estreante em tais empregos não
deveria ser mais alta do que no trabalho servil; mas isto também
é não verdadeiro.
Adam Smith foi o primeiro a ter proposto a teoria da "igual vantagem
líquida", a qual sustenta que a livre mobilidade do trabalho que
caracteriza o capitalismo competitivo assegura que o equilíbrio da
vantagem sobre a desvantagem em diferentes ocupações fica
equalizada pelo trabalho homogéneo (isto é, depois de descontar
diferenças de qualificação). Ele especificamente listou
cinco diferentes "circunstâncias" para que os rendimentos
monetários se afastassem da uniformidade entre diferentes empregos:
"a amenidade ou não amenidade dos próprios empregos";
"a facilidade ou dificuldade de aprender a profissão"; "a
constância ou inconstância do emprego"; "o grau de
responsabilidade adstrito à mesma"; e "o grau de incerteza ou
de êxito". Alguém poderia acrescentar outras mais a esta
lista, mas nenhuma delas pode explicar porque se paga menos a
ocupações servis mais árduas e desagradáveis do que
a outras, um facto que foi observado por John Stuart Mill que o considerava
paradoxal. Como se pode explicar este facto?
DESIGUALDADE SALARIAL
A resposta óbvia, quase uma tautologia, é que não
há "livre mobilidade" do trabalho entre as
ocupações. O próprio Adam Smith observou que este
movimento livre não existia na Europa no tempo em que escrevia, o qual
explicava as diferenças salariais muito maiores entre
ocupações que realmente existiam então: "a
política da Europa, ao não deixar as coisas em perfeita
liberdade, provoca outras desigualdades de muito maior importância";
e o que ele escreveu tinha validade histórica naquele tempo. Mas por que
deveria a desigualdade salarial persistir quando o
"laissez faire"
supostamente acabou por prevalecer?
Para obter um indício de uma resposta deveríamos talvez
principiar por olhar para a economia indiana. Nela não pode haver
emprego mais desagradável do que respigar coisas no lixo
(scavenging),
o qual infelizmente persiste na Índia destes dias. A questão
óbvia que se levanta é: por que deveria o respigar manual estar
entre as ocupações de pagamento mais baixo? A resposta não
pode ser encontrada no simples facto do desemprego. Tal desemprego, apesar de
poder explicar porque algumas pessoas são forçadas a aceitar este
emprego, não explicaria porque ele é tão mal pago. A
resposta encontra-se acima de tudo no facto de que algumas pessoas estão
"trancadas" nesta ocupação e são deliberadamente
excluídas de outras devido à discriminação
explícita ou implícita contra elas.
Mais genericamente, sob o capitalismo, os empregos servis, apesar de serem
árduos e desagradáveis, são os piores pagos, porque
algumas pessoas não têm livre mobilidade de trabalho e
estão "trancadas" em tais empregos, devido entre outras coisas
à discriminação explícita ou implícita
contra elas. Esta ausência de mobilidade de trabalho deve ser distinguida
daquilo que Adam Smith estava a falar quando se referiu à
"política da Europa" de não "deixar as coisas em
perfeita liberdade". Ele estava a falar acerca da ausência geral e
difusa da livre mobilidade do trabalho na era pré
laissez faire
devido à existência de guildas e outras restrições.
Mas mesmo quando a livre mobilidade do trabalho foi introduzida, mesmo quando
todas as restrições jurídicas foram removidas ao movimento
do trabalho de um emprego para outro em busca do que Smith havia chamado
"vantagem líquida" mais elevada, mesmo então alguns
segmentos da força de trabalho, apesar de desfrutar esta liberdade de
jure, não desfrutavam de facto da liberdade de movimento, porque estavam
"trancados" em ocupações particulares, uma razão
importante para a qual entre outras está a explícita ou
implícita discriminação que eles enfrentam.
Se a existência deste fenómeno notável, em que os trabalhos
mais árduos e mais desagradáveis são também os
piores pagos, é devida ao "trancamento" de algumas pessoas
nestas ocupações de baixo pagamento, então segue-se um
importante corolário. O facto de que o capitalismo sempre tenha sido
caracterizado por este fenómeno apenas sugere que o estado
"ideal" do capitalismo de livre competição, onde todos
desfrutam tanto de jure como de facto de livre mobilidade entre
ocupações, nunca foi realizado na prática.
Importa recapitular aqui um ponto que foi tratado antes. O desemprego, ou a
existência de um exército de reserva do trabalho, só por si
não explica esta violação do prognóstico
smithiniano acerca do capitalismo de livre competição que
alcança "igual vantagem líquida". Na verdade, a
existência de exércitos de reserva do trabalho torna o trabalho
disponível para ocupações árduas e
desagradáveis e impede mesmo a mecanização nestas esferas.
Mas a questão a ser perguntada não é porque pessoas fazem
este trabalho, mas porque pessoas fazem este trabalho quando salários
nesta actividade são mais baixos do que alhures. E para responder a esta
última questão a existência de emprego absoluto não
é suficiente. Deve haver algum factor a impedir o movimento destes
trabalhadores para outras actividades; eles devem em suma estar
"trancados" nestas actividades particulares, muito embora o regime
económico em geral lhes conceda a liberdade jurídica para
mudarem-se para outras esferas.
RAZÕES DIVERSAS
As razões para tais "trancamentos" podem ser diversas. No caso
indiano, a opressão de casta constitui a razão principal para
isso. Em numerosas investigações académicas nestes dias, a
discriminação contra os intocáveis
(dalits)
procura-se demonstrar que em idênticas ocupações paga-se
menos a eles do que a outros segmentos da força de trabalho. Quando isto
realmente acontece, certamente estabelece-se discriminação. Mas
mesmo quando isto não é directamente observado, se há uma
concentração de intocáveis em ocupações
particulares,
então podemos inferir que estão a ser "trancados"
nestas ocupações e portanto que há
discriminação contra eles. E este último fenómeno
é muito mais generalizado na economia indiana.
Discriminação semelhante caracteriza o capitalismo também
alhures. No capitalismo ocidental contemporâneo, o trabalho imigrante
tipicamente ocupa tais empregos servis e está trancado em tais empregos
devido à discriminação que enfrenta na entrada em outros
empregos. Portanto os empregos mais árduos e, paradoxalmente na
perspectiva smithiniana, os piores pagos, são ocupados por migrantes das
Índias Ocidentais e do subcontinente indiano na Grã-Bretanha, da
Argélia e de outras ex-colónias africanas em França, e da
Turquia na Alemanha (embora a onda recente de imigrantes da Europa do Leste
possa ter deslocado alguns deles em tais empregos).
Mesmo entre estes grupos discriminados, há segmentos especificamente
discriminados que muitas vezes são "trancados" nos empregos
mais desagradáveis e degradantes e que também têm os piores
salários. Portanto, mesmo entre por exemplo os trabalhadores da
Ásia do Sul na Grã-Bretanha, as mulheres imigrantes
frequentemente ocupam os empregos mais desagradáveis e menos bem pagos.
Além disso, dizer que grupos particulares estão
"trancados" em ocupações servis não significa
que não haja mudança ao longo do tempo, nenhuma mobilidade
social. Não há dúvida que há, mas qualquer que seja
a complexa dinâmica da mobilidade social de um grupo particular que
aconteceu sofrer discriminação durante um certo tempo, ou de
segmentos particulares dentro daquele grupo, a existência de alguns
trabalhadores discriminados a ocuparem os empregos mais desagradáveis, e
os piores pagos, é uma característica perene do capitalismo.
Apesar de isto ser claro hoje, pode-se perguntar: sempre foi assim? Em tempos
primitivos, antes de o trabalho imigrante das colónias,
ex-colónias ou dependências começar a transbordar para
dentro de países capitalistas avançados, houve outros grupos
discriminados entre os trabalhadores, exemplo; os imigrantes irlandeses na
Grã-Bretanha. A migração em massa da Europa no
século XIX para regiões temperadas de colonização
branca como o Canadá, Austrália, Estados Unidos, Nova
Zelândia sem dúvida proporcionou algum alívio para este
segmento "trancado" da força de trabalho e pode ter reduzido
as diferenças salariais entre ocupações, ainda que
mantendo os salários reais médios acima do que teriam sido de
outra forma (com o exército de reserva do trabalho mais elevado que
teria existido na ausência de tal emigração).
Uma diferença importante entre países capitalistas
avançados e a Índia parece então estar no facto de que nos
primeiros há alguma mudança ao longo do tempo na
composição do segmento "trancado" da força de
trabalho, ao passo que na Índia a herança de um sistema de casta
ossificado, juntamente com a ausência de quaisquer possibilidade de
emigração (e a incapacidade do desenvolvimento capitalista para
progredir nas reservas de trabalho maciças), mantém a
composição do segmento "trancado" mais ou menos intacta.
Duas importantes conclusões seguem-se do precedente: primeiro, o
capitalismo parece sempre ter mantido uma "subclasse" entre os
trabalhadores (a qual não é sinónima com o "lumpen
proletariado"). A notação de um "capitalismo de
competição livre" onde a mobilidade do trabalho equaliza a
taxa de salário real para tempo de trabalho homogéneo, muito
embora esta taxa de salário real seja mantida próxima a um
nível de subsistência historicamente determinado devido à
existência de um exército de reserva do trabalho, é um
"ideal" que nunca foi realizado sob o capitalismo realmente
existente. E, segundo, o capitalismo, portanto, actua para segmentar romper a
classe trabalhadoras de dois modos bastante distintos: um pela
promoção da competição entre trabalhadores mesmo
dentro de um regime de "capitalismo de livre
competição" que Marx analisou em profundidade; o outro
é pela ruptura da classe trabalhadora numa "subclasse" de
trabalhadores discriminados e o resto. O movimento da classe trabalhadora na
prática tem tido de ajustar-se a estas duas formas de
segmentação na sua longa história para erguer um desafio
à hegemonia do capitalismo.
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2014/1012_pd/capitalism-and-discrimination-between-workers
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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