Vinte anos após a crise financeira asiática
Exactamente a vinte anos atrás uma grande crise financeira atingiu os
países do Leste e do Sul da Ásia, em Julho de 1997. Esta crise
foi um divisor de águas na história do desenvolvimento do
terceiro mundo, no sentido de que estes "tigres económicos"
que haviam experimentado taxas de crescimento extraordinariamente altas
até então ficaram permanentemente incapacitados depois disso. Bem
no momento em que estavam a livrar-se dos efeitos da crise de 1997 nas suas
respectivas economias, o colapso da "bolha habitacional" nos Estados
Unidos mergulhou todo o sistema capitalista mundial dentro de uma crise que
também os afectou, de modo que nunca puderam recuperar a sua
tendência de crescimento anterior.
O desempenho anterior de crescimento destas economias asiáticas fora
utilizado pelo Banco Mundial, pelo FMI e pela OCDE (o clube dos países
ricos) para desprestigiar a estratégia de crescimento perseguida pela
Índia e um punhado de outras economias do terceiro mundo na
sequência imediata da descolonização (a que chamamos a
"estratégia de Nehru"), a qual encarava o desligamento do
capitalismo mundial através do comércio e do controle de
capitais, assim como enfatizava o desenvolvimento
dirigista
baseado no mercado interno, para romper o padrão colonial da
divisão internacional do trabalho. O argumento utilizado contra uma tal
estratégia de "nacionalismo económico" era que as
economias asiáticas estavam a sair-se bem ao amarrarem-se à
economia global e evitarem o
dirigismo
e controles.
Dito de modo diferente, o argumento era que uma ruptura com o padrão
herdado da divisão internacional do trabalho verificar-se-ia
espontaneamente sob o capitalismo; não era precisa a parafernália
da intervenção e controles do Estado. Na verdade países
que recorriam às mesma haviam fracassado, ao passo que países, a
exemplo dos "tigres asiáticos", que haviam adoptado o
liberalismo e "deixado as coisas para o mercado", haviam-se
desempenhado muito melhor. Uma vez que a antiga estratégia
económica tivera origem num certo entendimento do capitalismo mundial,
nomeadamente que estava marcado pelo "imperialismo" o qual tendia a
produzir "subdesenvolvimento" no terceiro mundo, a experiência
das economias do Leste e do Sul da Ásia era utilizada para invalidar a
ideia de "imperialismo", certamente no mundo pós colonial e
mesmo como um acompanhamento económico necessário do anterior
sistema político do colonialismo.
A OCDE publicara vários volumes em 1970 contendo estudos de caso de
países do terceiro mundo, nos quais argumentava esta tese e
lançava um ataque à estratégia
dirigista.
A esquerda também fora crítica da estratégia
dirigista
(no nosso caso a "estratégia de Nehru"), mas com bases
totalmente diferentes. Ela apoiara resolutamente todos os aspectos
anti-imperialistas que tinha esta estratégia, mas criticara-a por sua
incapacidade para efectuar reformas agrárias radicais e romper a
concentração da terra, a qual mantinha tanto a
dimensão
do mercado interno como a sua
taxa de crescimento
restringidas (esta última devido à baixa taxa de crescimento da
agricultura dentro de uma estrutura agrária em grande medida não
reformada). A limitação da estratégia, argumentava a
esquerda, tem
esta
origem e não na sua adopção da substituição
de importações, do investimento do Estado, dos controles de
capitais e de comércio e das restrições ao
big business
interno e internacional.
Com um olhar mais atento verificou-se que a estratégia do Leste
asiático não fora realmente o que economistas da OCDE, do FMI e
Banco Mundial haviam afirmado. Não se baseara na confiança em
mercados livres, evitando a intervenção do Estado e dando
rédea solta ao capital. Ao contrário, o Estado havia tentado
intervenção mesmo ao nível micro, exortando capitalistas a
exportarem, permitindo-lhes fazer dumping de mercados no exterior
(através da cobrança de preços mais altos no mercado
interno) e estabelecendo zonas de processamento de exportação
às quais o capital interno e estrangeiro (principalmente japonês)
podia utilizar como bases para o lançamento de campanhas de
exportação. A sua estratégia fora neo-mercantilista ao
invés de neoliberal, com o Estado a desempenhar um papel principal,
embora um papel diferente daquele em países como a Índia, e
tivera êxito porque países imperialistas lhes permitiram acesso ao
mercado.
O que deitou abaixo as trajectórias de crescimento destas economias
foram os fluxos mais livres da finança internacional. Estas economias
lançaram um programa de "liberalização
financeira" apenas uns poucos anos antes da crise, a qual fez entrar
enormes montantes de finança estrangeira. A própria abertura de
economias em crescimento rápido mas até então
financeiramente fechadas (elas estiveram a obter investimento estrangeiro
directo mas não de finanças com livre transito) para fluxos
livres de finança teria provocado de qualquer forma grandes influxos
financeiros. Mas além disso tais influxos foram ajudados por um
diferencial de juros. Nos EUA, as taxas de juros haviam sido mantidos baixos no
princípio dos anos 90 numa tentativa de estimular o crescimento, ao
passo que as taxas de juros eram comparativamente mais elevadas nas economias
em crescimento rápido da Ásia. Com a liberalização
financeira, isto fez com que firmas internas se voltassem para fundos
estrangeiros mais baratos e também fizeram com que bancos e
instituições financeiras estrangeiras despejassem fundos nas
economias asiáticas para obter maiores ganhos de juros.
Sempre que há um surto de influxos financeiros para dentro de uma
economia,
então, não importa o que provoque, esta economia entra em
dificuldades.
Pense-se apenas nas várias possibilidades. Se ela simplesmente permite
que estes fundos entrem sem qualquer intervenção e a despesa
interna não aumenta, então a taxa de câmbio valoriza-se, a
qual tem um efeito contraccionário sobre o produto interno e o emprego,
mesmo quando os passivos externos do país vão em aumento. Isto
é uma situação bizarra, um caso de
"desindustrialização financiada por dívida",
isto é, contracção de empréstimos no exterior para
arruinar a própria economia.
Se com maiores influxos de fundos o défice corrente se expande
por causa da maior despesa interna,
então também se verificam problemas. Se o aumento é em
despesas de consumo, então efectivamente o país está a
tomar fundos emprestados a curto prazo a fim de permitir-se um consumo
ostentatório, tipicamente dos ricos, e quando tais fundos são
retirados há uma crise cambial, a qual provoca um esmagamento,
tipicamente sobre o consumo dos pobres, para gerar recursos para os fluxos de
saída. Por outro lado, se o país utiliza os fundos para
finalidades de investimento, então país está "tomar
emprestado a curto prazo para investir no longo", isto é, a
utilizar fundos de curto prazo para investimento de longo prazo, o que
significa que quando os fundos são retirados ele enfrentará uma
crise de liquidez.
Ele pode naturalmente simplesmente manter reservas e impedir qualquer
apreciação da taxa de câmbio. Mas uma vez que reservas (as
quais são equivalente a emprestar ao estrangeiro) rendem muito pouco
como retornos, possuir reservas maiores, embora previna as perspectivas de uma
crise cambial no caso de os fundos serem retirados, implica em que o
país está a "tomar emprestado caro para conceder
empréstimos baratos", o que é evidentemente absurdo.
Portanto, quaisquer grandes influxos de fundos estrangeiros a curto prazo
estão necessariamente repletos de perigos para a economia hospedeira.
As economias asiáticas tipicamente ampliaram suas taxas de investimento
quando se verificou este surto de influxos financeiros externos. Alguns destes
influxos aumentaram de qualquer modo porque firmas internas estavam a tomar
emprestado no exterior para aumentar o investimento. Além disso, outras
firmas aumentaram seu investimento com a disponibilidade fácil de fundos
devido a estes influxos, alguns dos quais encontraram o seu caminho para bancos
locais. Estas economias, sendo a Coreia do Sul um exemplo primário,
estiveram portanto não só a "tomar emprestado no curto prazo
para investir no logo" como também a tomar emprestado em divisa
estrangeira para financiar investimentos sem ganhos de divisa estrangeira, tais
como no sector de infraestrutura.
Quando a crise chegou, houve tanto uma corrida à divisa estrangeira como
uma corrida aos bancos e estas duas reforçaram-se uma à outra.
Quando a taxa de câmbio cai, os passivos dos bancos que eram em divisa
estrangeira aumentam em relação aos seus activos que eram em
divisa interna, tornando-os vulneráveis. E este mesmo facto faz com que
investidores estrangeiros retirem seus depósitos o que mais uma vez faz
com que a taxa de câmbio entre em colapso.
As políticas impostas pelo FMI para as quais estas economias se voltaram
fizeram as coisas piores, uma vez que o FMI, se bem que concedendo
empréstimos, insistia em que aqueles que retiravam fundos deviam ter
liberdade de assim fazer. Os empréstimos do FMI foram portanto
utilizados para financiar a fuga de capitais, enquanto as medidas de
austeridade draconiana e de "desnacionalização"
(entregando activos internos a estrangeiros) cobravam um alto preço
às vidas dos povos e à soberania dos países. Ironicamente
o país que saiu da crise em primeiro lugar e com os efeitos menos
penosos sobre o povo foi a Malásia, a qual impôs controles de
capitais para impedir a fuga da finança.
Desde a crise, estas economias (e a de outros países do terceiro mundo
também, incluindo a Índia) começaram a manter reservas de
divisas externas muito maiores a fim de evitar uma repetição de
tal eventualidade. Mas ao mesmo tempo a sua
dívida a estrangeiros,
o que é diferente de
dívida em divisa externa,
subiu substancialmente. Esta distinção pode ser entendida como
se segue: quando um indivíduo estrangeiro entra com divisa externa,
troca-a por divisa local e compra activos internos com isso, então
há uma dívida a indivíduos estrangeiros mas não uma
dívida em divisa externa. Mas a partir daí, na ausência de
controles de capitais, o indivíduo estrangeiro pode sempre vender o
activo e levar a moeda para fora trocando a divisa interna em divisa externa, a
ameaça para a economia do país não é menor com a
anterior espécie de dívida do que com a última. Se ambas
as espécies de dívidas são somadas, então as
reservas cambiais destes países ainda permanecem lamentavelmente
inadequadas, em relação a esta dívida total, para impedir
a recorrência de uma crise no caso de uma saída de capitais. Mas
enquanto tais países permanecem tão vulneráveis como
antes, e estão bem abaixo da trajectória de crescimento que
seguiam anteriormente, o controle estrangeiro sobre os seus activos aumentou
dramaticamente. O problema, em suma, jaz em permitir fluxos livres de capital,
incluindo fluxos financeiros, e não em medidas específicas de
políticas dentro de tal regime.
A hegemonia do capital financeiro internacional, a qual levou economias a
"abrirem-se" ao turbilhão de fluxos financeiros globais,
demoliu
tanto
o
dirigismo
de Nehru como o neo-mercantilismo do Leste asiático. E a mesma
hegemonia trouxe agora a economia capitalista mundial a uma crise da qual
não está em posição de recuperar-se.
06/Agosto/2017
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2017/0806_pd/twenty-years-after-asian-financial-crisis
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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