A mercantilização e a esfera pública
Para o liberalismo é central uma distinção entre duas
esferas: a do mercado (ou mais geralmente da economia) onde indivíduos e
firmas interagem para trocar suas mercadorias e a do discurso público
onde indivíduos interagem como cidadãos de uma sociedade
organizada para debater e determinar as acções do Estado. A
importância que os liberais concedem a esta segunda esfera foi sublinhada
no século XIX por Walter Bagehot, o ensaísta britânico da
persuasão liberal, o qual louvou a democracia como "governo pela
discussão". Ele enfatizou com isso dois princípios
políticos liberais de base, nomeadamente o papel do discurso
público e a necessidade de o Estado de ser a ele receptivo.
Não importa de que tendência do liberalismo estamos a falar, esta
distinção permanece sempre crucial. Em matérias
económicas, por exemplo, podem-se distinguir entre duas tendências
diferentes de liberalismo, nomeadamente o liberalismo de John Maynard Keynes e
seus antecessores Alfred Marshall e A.C. Pigou (todo os quais são
geralmente abrangidos pela expressão "a Escola de Cambridge") e o
liberalismo de pessoas como F.A. von Hayek.
Estes últimos acreditavam que o Estado não deve interferir na
economia, uma vez que esta funciona muito bem se deixada aos seus
próprios esquemas, ao passo que os primeiros acreditavam que o
funcionamento do mercado é enviesado e que há necessidade de o
Estado intervir no mesmo. Mas ao querer a intervenção do Estado
para rectificar os males da economia de mercado, a Escola de Cambridge
considerava como garantido que o Estado representava uma racionalidade
"social" extrínseca do mercado. Uma tal
impregnação do Estado com "racionalidade social", que
estava implícita na sua percepção, só era
possível através da existência do discurso público.
Os liberais hayekianos também acreditavam na necessidade do discurso
público, mas como um meio de
impedir
o Estado de intervir no funcionamento suave do mercado. Todas as
tendências de liberalismo enfatizavam a necessidade
tanto
de ter uma economia de mercado
como
de ter uma esfera de discurso público que ou corrigiria o Estado dos
seus viéses ou impediria o Estado de desorientar-se com isto.
Esta visão liberal da sociedade, a qual se supunha apoiada por uma
economia de mercado e uma esfera de discurso público activo, pode ser
criticada a partir de uma perspectiva marxista de dois modos distintos. Uma,
que é bem conhecida, chama a atenção para o
carácter de classe do Estado. Longe de ser uma
corporificação da "racionalidade social" como Keynes
assumira, o Estado representa deliberadamente ou (no caso de um governo
"reformista" subir ao poder) é a isso constrangido os
interesses dos capitalistas. (A visão hayekiana da economia de mercado
não precisa deter-nos aqui uma vez que está errada: ela ignora a
anarquia do capitalismo, como a tradição keynesiana tem
destacado, para não mencionar a tradição marxista que fez
isso desde o princípio).
Mesmo quanto à eliminação do desemprego
involuntário, o qual Keynes havia considerado ser de importância
primordial, o Estado é incapaz de actuar da maneira exigida. Esta
proposição tem sido tão claramente demonstrada em tempos
recentes quando, no meio a uma crise prolongada, o Estado parece absolutamente
impotente para adoptar quaisquer remédios orçamentais, seja na
forma de despesas estatais maiores ou de uma distribuição de
rendimento mais igualitária mantendo-se a fustigar uma
política monetária débil e ineficaz que
ninguém precisa insistir mais nesse ponto.
Entretanto, há uma segunda crítica à visão liberal
a partir da perspectiva marxista que é menos frequentemente mencionada
mas cuja validade está a ser justificada diante dos nossos olhos. Uma
das mais profundas percepções do marxismo quanto ao funcionamento
do capitalismo é que é um sistema "espontâneo"
conduzido pelas suas próprias tendências imanentes. E uma destas
tendências "espontâneas" importante é a da
progressiva mercantilização de todas as esferas da vida. O que
hoje estamos a testemunhar é a destruição da esfera
pública através destas tendência imanente rumo a uma
difusão generalizada da mercantilização.
Uma esfera activa de discurso público tem vários requisitos,
dentre os quais dois são importantes: um sistema de
educação que esclareça seus estudantes sobre
questões sociais expondo-os a uma variedade de percepções;
e a existência de media impressos e electrónicos que
escrupulosamente desempenhem o papel de fornecer informação
correcta e um leque de opiniões. Estas duas instituições
estão a ser minadas pela mercantilização.
A propriedade e o controle corporativo sobre os media já
avançaram um longo caminho na subversão do seu papel de fornecer
elementos autênticos para o discurso público, ao converterem-se em
porta-vozes do capital corporativo. Além disso, a
mercantilização efectuada através de vários outros
meios avançou ainda mais nessa direcção.
A dependência dos media de receitas ganhas a partir de publicidades do
governo tem servido para atenuar a liberdade de imprensa e dessa forma levado a
uma mercantilização implícita dos media. Mas agora o
processo de mercantilização prosseguiu ainda mais longe.
"Notícias", assim parece, já podem ser plantadas nos
media, e agendas particulares promovidas, simplesmente pelo pagamento de um
montante adequado de dinheiro. E se qualquer nova prova disto fosse
necessária, então a "operação
ferrão"
(
"sting operation"
),
executada recentemente pelo portal
Cobrapost
sobre todo um conjunto de importantes jornais e canais de TV indianos,
demonstra-o claramente.
Além disso, a mercantilização da educação
a qual torna-se completamente incapaz de fornecer aos estudantes os
recursos para se envolverem em qualquer discurso público activo e que
valha a pena tem prosseguido rapidamente sob o regime neoliberal. A
recente decisão do governo indiano de dar "autonomia"
financeira às 60 melhores universidades e instituições de
ensino superior do país, dentre as quais estão as cinco
universidades de topo que incluem Jawaharlal Nehru University, Hyderabad
University, Aligarh Muslim University, Banaras Hindu University e English and
Foreign Language University, dá um enorme impulso a este processo.
Estas universidades a partir de agora levantarão seus recursos por si
próprias, isto é, a partir do "mercado" para o qual
elas terão de dar cursos "comercializáveis"
("marketable")
e atrair estudantes dispostos a pagar enormes taxas. Isto não só
exclui os estudantes socialmente e economicamente destituídos como
também assegura que os produtos deste sistema de educação
são auto-centrados, indivíduos egocêntricos e totalmente
alheios tanto à realidade social em torno deles como do esplendor do
mundo do conhecimento.
A mercantilização está portanto a destruir a esfera
pública, cujos debates supostamente informam a política do
Estado, ao negar esta esfera suas contribuições essenciais. Mas,
o que é mais grave, a mercantilização também
está a entrar directamente na esfera da política. As enormes
despesas incorridas na disputa de eleições resultam tanto da
dominação de instituições políticas
representativas pelos ricos como da utilização de tais
instituições para "ressarcirem-se" dos investimentos
que fizeram.
Em suma, o gabinete de um representante do povo torna-se uma mercadoria, e
cara, o que garante que ela é comprada só pelos que podem
pagá-la. Alternativamente, aqueles que não podem se dar ao luxo
de comprar tais cargos, fazem-no na base do dinheiro fornecido por alguns
estabelecimentos corporativos e então utilizam o seu gabinete a fim de
permitir que os seus doadores possam "recuperar" o dinheiro que
eles
haviam investido.
CAMBRIDGE ANALYTICA
As coisas, entretanto, foram ainda mais longe como sugere o episódio
recente da
Cambridge Analytica.
Aquela firma foi contratada ostensivamente para gerar dados para o seu cliente
disputar eleições; mas desde que ignoremos a insensatez acerca de
como "dados" assim gerados podem ser úteis para combates
eleitorais, está claro que o papel de tais firmas é
essencialmente executar certos "truques sujos" que funcionariam a
favor do seu cliente, em troca de uma soma adequada de dinheiro. Isto
também não é outra coisa senão
mercantilização da política.
Portanto, a visão liberal, de uma sociedade capitalista onde a esfera do
mercado é distinta de, e coexiste com, uma esfera de discurso
público, com tal discurso a informar a política do Estado para
rectificar as distorções do mercado, é fundamentalmente
indefensável. É indefensável não só por
causa dos constrangimentos colocados pelas relações de
propriedade sobre as acções do Estado, como também porque
uma das duas esferas, o mercado, "espontaneamente" intromete-se na
outra, a esfera pública, através da sua tendência imanente
rumo à mercantilização.
Sem dúvida esta destruição da esfera pública tem
prosseguido com uma rapidez surpreendente por todo o mundo, incluindo a
Índia, com a ascendência da direita. Mas isso acontece porque a
direita tem promovido a mercantilização com muito maior vigor do
que antes. Os sintomas do problema, entretanto, eram claramente evidentes desde
muito mais antes.
O liberalismo, porque ele ignora as tendências imanentes do sistema
económico, e mais geralmente do papel do factor económico na vida
política de uma sociedade, é incapaz de apreciar a razão
porque a sua própria visão não pode ser aceite. Quando
confrontado com o facto do fim trágico desta visão, ele recorre a
explicações que na melhor das hipóteses apenas reafirma o
problema de um modo diferente, mas dificilmente explicam alguma coisa.
Segue-se portanto que a existência autêntica de uma esfera
pública exige uma ultrapassagem das tendências imanentes do
capitalismo, isto é, uma transcendência do capitalismo. Mas o
facto de a democracia e a instituição de uma esfera
pública só poderem ser realizadas sob o socialismo não
significa que não combatamos por ela agora. Ao contrário, este
mesmo combate é um meio de avançar a luta pelo socialismo.
01/Abril/2018
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2018/0401_pd/commoditisation-and-public-sphere
.
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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