Concepções erradas acerca do neoliberalismo
O neoliberalismo muitas vezes é encarado apenas como uma política
económica. Isto por si pode não importar, uma vez que um conjunto
específico de medidas económicas cai, sem dúvida, sob a
categoria de neoliberalismo. Mas ao reduzir o neoliberalismo apenas a um
conjunto de medidas económicas por vezes é transmitida a
impressão enganosa de que tais medidas são uma questão de
escolha
por parte da formação política burguesa dominante, isto
é, que um conjunto "não neoliberal" de medidas
também poderia ser seguido, mesmo nas condições do
capitalismo contemporâneo, bastando apenas que a formação
política burguesa instalada no governo assim o decidisse.
Reduzir o neoliberalismo a uma mera política económica abre
caminho para esta concepção errada. Na verdade, o neoliberalismo
é de facto uma mera descrição (e bastante má) de
todo um conjunto de medidas que estão
necessariamente
associadas à hegemonia da finança globalizada. Estas medidas
não são uma matéria de
escolha
por parte de alguma formação política burguesa
particular; elas teriam de ser adoptadas na época contemporânea
por
qualquer formação política burguesa,
isto é, desde que o país permaneça dentro da
órbita capitalista, de onde se segue que qualquer formação
política que pretenda seriamente anular estas medidas teria
necessariamente de estar preparada para transcender o capitalismo. Ela pode ter
de fazer isso, sem dúvida através de toda espécie de
complexos passos tácticos, mas não pode tranquilizar-se fazendo
vista grossa para a necessidade de assim fazer. Este ponto adquire particular
significância no contexto da Grécia de hoje e de outros
países europeus que no futuro possam vir a ter governos de esquerda
anti-"austeritários".
O ponto a destacar aqui é análogo àquele que Lenine
apontou contra Karl Kautsky na questão do imperialismo. Ele acusou
Kautsky de pensar acerca do imperialismo como uma
política
e dessa forma sugerir que uma política não imperialista
também seria possível naquele tempo, ou na base do próprio
capitalismo monopolista ou através de uma regressão do
monopolismo outra vez à "livre competição", da
qual havia emergido. Mas tais possibilidades, argumentou ele, eram
absolutamente irreais e representavam uma absoluta lavagem cerebral, ou uma
fantasia "pequeno-burguesa".
Para sublinhar que não se pode destacar o imperialismo do capitalismo
monopolista desta maneira, que não se tratava de uma
"política" que pudesse ou não ser adoptada conforme a
vontade do governo dominante sob o capitalismo monopolista, ele definiu o
imperialismo como
a fase monopolista do capitalismo.
A réplica de Kautsky a isto, nomeadamente de que se alguém
definiu imperialismo como capitalismo monopolista, então esse
alguém não provou a "necessidade" do imperialismo para
o capitalismo mas simplesmente avançou-a como definição,
também emergia naturalmente da
sua
posição. Eles apenas exprimiu a sua percepção de
que a necessidade do imperialismo era um assunto independente o qual tinha de
ser tratado separadamente, de onde se seguia como uma possibilidade manter o
capitalismo monopolista mas abolir esta necessidade, isto é, que uma
política não imperialista seria possível naquele tempo
mesmo sem transcender o capitalismo.
De modo exactamente análogo, o neoliberalismo não é uma
coisa separada e destacável do capitalismo contemporâneo. Ele
é
o capitalismo contemporâneo, uma manifestação deste
capitalismo contemporâneo, caracterizado pela hegemonia do globalizado,
isto é, do capital financeiro, internacional.
Frequentemente encontramos uma imagem espelhada deste argumento da
"separabilidade" quanto à
"globalização", a qual predomina em círculos de
esquerda, especialmente na Europa. Este argumento sustenta que a
"globalização" que hoje se verifica é uma coisa
"boa", muito embora o capitalismo contemporâneo seja
"mau", de modo que deveríamos de algum modo reter esta
"globalização" mesmo enquanto tentamos transcender o
capitalismo contemporâneo. O que faz esta argumentação
é destacar a "globalização" contemporânea
do capitalismo contemporâneo e sugerir que deveríamos reter uma
mas não o outro. Mas a "globalização" que se
está hoje a verificar não é menos
manifestação do capitalismo contemporâneo do que as medidas
económicas abrangidas pelo termo neoliberalismo. Assim como não
podemos nos livrar do neoliberalismo e ao mesmo tempo reter o capitalismo
contemporâneo, da mesma forma não podemos nos livrar do
capitalismo contemporâneo e ao mesmo tempo reter a
globalização contemporânea. Eles em conjunto constituem uma
unidade integral que tem de ser transcendida. Através de que passos
tácticos particulares se faz isto é uma questão separada,
mas imaginar que um componente disto pode ser retido enquanto o outro é
descartado é ignorar esta unidade. Isto equivale a lavagem cerebral.
CAPITALISMO DESENFREADO
A questão que se levanta é: quais são os
traços
característicos desta unidade que constitui o capitalismo
contemporâneo? Obviamente aqui só se pode aflorar alguns deles,
mas todos eles decorrem do facto de que o capitalismo de hoje é um
"capitalismo desenfreado". A restrição que o
capitalismo enfrentava quando estava empenhado numa luta contra a aristocracia
(a qual havia entre outras coisas forçado a aprovação de
legislações fabris na Inglaterra); a restrição que
o capitalismo enfrentava quando estava empenhado numa luta contra a
ascensão do proletariado, quando o encarava como se o socialismo
estivesse prestes a conquistar o mundo; e a restrição que o
capitalismo enfrentava quando estava organizado em linhas
"nacionais", quando o capital financeiro "nacional" tentava
impor-se sobre o Estado-nação contra a resistência dos
trabalhadores, especialmente no período pós segunda guerra quando
esta resistência forçou a instituição da democracia
eleitoral nos países capitalistas avançados: esta
conjuntura de
restrições parece por agora tem sido suspensa. O desafio
socialista diminuiu por enquanto; e a "globalização" do
capital forçou Estados-nação, mesmo aqueles cujos governos
obtêm apoio da classe trabalhadora, a aceder às exigências
deste capital. As características do capitalismo contemporâneo
portanto decorrem de certo modo desta conjuntura de "capital
desenfreado". O que são estas características que são
imanentes ao capitalismo, mas estão agora a serem exprimidas com uma
"liberdade" sem precedentes?
Uma é o propagar da
mercantilização
(commoditisation)
numa escala até agora nunca vista. De particular relevância aqui
é a mercantilização de sectores como
educação e saúde. No país capitalista mais velho do
mundo, a Inglaterra, mais de dois séculos decorreram desde a
revolução industrial, antes de a esfera da educação
superior ficar aberta à obtenção de lucro privado. A
mercantilização da educação superior tem duas
implicações. Uma é que aqueles que são os produtos
desta também são meras mercadorias com pouca sensibilidade social
e o que é verdade para os países capitalistas avançados
verifica-se com muito maior força nos chamados países
capitalistas "emergentes". A destruição da
sensibilidade social entre os produtos da educação superior
é executada aqui com muito maior extensão. Os outro é uma
tentativa de mercantilizar seja o que for que reste da resistência
intelectual ao capitalismo e portanto enfraquecê-la.
A segunda característica é uma
destruição implacável da pequena produção
. Historicamente o capitalismo subjugou a pequena produção (ou,
mais geralmente, a produção pré capitalista) para os seus
próprio objectivos através do colonialismo, sem necessariamente
suplantá-la (excepto nas regiões temperadas de
colonização branca onde a terra dos "nativos" foi
tomada pelos imigrantes das metrópoles); mas contra tal
subjugação também houve resistência maciça
dos pequenos produtores. Na nossa própria história, a cadeia de
revoltas, desde a
revolta do Indigo
ao levantamento de 1857, culminando num apoio do campesinato em grande escala
à luta de libertação anti-colonial, são exemplos
óbvios de tal resistência. A descolonização trouxe
restrição a esta subjugação, mas o capitalismo
contemporâneo, negando os
regimes
económicos
dirigistas
pós coloniais e integrando as oligarquias corporativo-financeiras das
nações ex-coloniais no corpus do capital financeiro
internacional, não só ressuscitou este processo implacável
de subjugação de pequenos produtores como está agora a
embarcar num processo maciço de expropriação
(dispossession)
de tais produtores, de "acumulação primitiva de
capital" nua, da qual a "Lei de tomada da terra"
("
Land Grab Bill
")
actualmente no parlamento indiano é um exemplo óbvio. O
fenómeno de 200 mil camponeses cometerem suicídio após a
assimilação da Índia dentro do mundo hegemonizado pelo
capital financeiro internacional revela a severidade deste processo.
O terceiro é um
enorme aumento da desigualdade económica
, não só em riqueza mas também em rendimentos e não
só globalmente, entre os trabalhadores do mundo e as oligarquias
corporativo-financeiras mundiais, mas também dentro de cada país,
entre estes dois pólos dentro de cada país. Este problema
tornou-se tão significativo que o livro de Thomas Piketty se tornou um
best-seller instantâneo. E mesmo a cimeira económica de Davos dos
líderes mundiais do capital listou-a como uma das três principais
questões que confrontam a "espécie humana". A
razão para este aumento da desigualdade é que enquanto o
exército de reserva mundial do trabalho permanece grande e em toda
plenitude, suas consequências destrutivas, de não permitir que as
taxas de salário reais aumentem, agora não estão
confinadas apenas aos países do terceiro mundo onde existem grandes
reservas de trabalho. Elas estendem-se aos países capitalistas
avançados cujos trabalhadores também têm de evitar
reivindicações de aumentos salariais, temendo que o capital,
agora "globalizado", se mude para países do terceiro mundo com
salários mais baixos. Portanto, com salários reais por toda a
parte a não aumentarem, todos os aumentos na produtividade do trabalho
aumentam a fatia do excedente no produto e em consequência a desigualdade
do rendimento. Isto ocorre globalmente bem como dentro de cada país.
CRESCIMENTO DA FOME MUNDIAL
Um aspecto deste fenómeno é o crescimento da fome mundial.
Sugerimos acima que salários reais permanecem ligados a algum
nível de subsistência em países do terceiro mundo. Mas
mesmo isto não acontece. A privatização da
educação, saúde e outros serviços essenciais
aumenta os seus custos enormemente, o que corrói o poder de compra dos
trabalhadores e realmente reduz sua despesa real per capita com alimentos.
Quando acrescentamos a isto, que basicamente afecta os trabalhadores empregados
ou "exército do trabalho na activa", o facto de que a
expropriação de pequenos produtores também incha o
exército de reserva, a escala de aumento na magnitude da fome mundial
torna-se entendível.
A quarta característica está ligada a este aumento na
desigualdade. Um tal aumento produz ao nível mundial uma
tendência rumo à super-produção
(uma vez que uma mudança de distribuição do rendimento
dos trabalhadores para os grandes capitalistas tem como efeito deprimir a
procura). Numa situação em que os Estados-nação que
confrontam o capital internacional têm pouca opção a
não ser obedecer ao seu
diktat,
o capital utiliza este facto para extorquir novas concessões do Estado
com o fundamento de que tais concessões, ao melhorarem o estado de
confiança dos "investidores", superariam a crise de
super-produção. Em suma, foi construída na conjuntura
contemporânea uma dialéctica de crescente desigualdade de
rendimento, persistindo ou mesmo acentuando a crise económica e o
crescente poder de classe do capital que realmente agrava tanto a
desigualdade como a crise mas que paradoxalmente é defendida como um
caminho de saída da crise.
A quinta característica decorre da anterior. As
instituições democráticas
tais como existem em países capitalistas
resultaram de lutas dos trabalhadores. Uma vez que esta
"restrição" da militância de trabalhadores foi
levantada, a tendência natural do capitalismo seria
afundar tais instituições
(também,
inter alia,
mercantilizando-as). Entretanto, além da persistente dialéctica
mencionada acima, de desigualdade crescente, crises persistentes e aumento do
poder de classe do capital, a qual é justificada em nome da
superação da crise que no entanto persiste, aumenta o temor do
capitalismo, e a sua hostilidade, a instituições
democráticas. Desde financiar grupos fascistas, dividir o povo de acordo
com linhas étnicas e religiosas, o flagrante recurso à mentira
(como no caso da guerra do Iraque), à supressão absoluta de
instituições democráticas, todo um conjunto de
métodos é empregue para assegurar que tais
instituições sejam adequadamente enfraquecidas. Ao mesmo tempo, a
tentativa de manter o povo dividido cria uma situação de
desintegração social. O recurso ao autoritarismo político
e a desintegração social tornam-se então a marca
inconfundível do capitalismo contemporâneo.
17/Maio/2015
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2015/0517_pd/misconceptions-about-neo-liberalism
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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