Desenvolver "infraestrutura"
O termo "infraestrutura" abrange toda espécie de coisas,
desde portos até estradas, canais, pontes, construção de
linhas ferroviárias. Porque ele abrange uma tão grande amplitude
de coisas, muitas das quais parecem ser úteis, a maior parte das pessoas
encara o desenvolvimento de "infraestruturas" como algo
indubitavelmente desejável sob todas as circunstâncias. Poucas
perguntas são formuladas acerca da sua validade quando o governo atribui
grandes recursos para o sector das "infraestruturas", ou quando
recomenda a bancos do sector públicos que dêem maiores
empréstimos para o desenvolvimento da "infraestrutura".
O CONCEITO DE INFRAESTRUTURA TEM UMA DIMENSÃO DE CLASSE
Contudo, este modo de encarar a "infraestrutura" é
extremamente enganoso. Aquilo que é abrangido por essa palavra varia
tipicamente com a trajectória de desenvolvimento que está a ser
seguida. A "infraestrutura" que a trajectória indiana de
desenvolvimento
dirigista
enfatizava antes da "liberalização económica" e
aquela que a trajectória de desenvolvimento neoliberal enfatiza hoje
não são idênticas. Não se pode encarar a
infraestrutura isoladamente da trajectória de desenvolvimento e dar
carta branca a despesas com o desenvolvimento de infraestruturas que
corresponde a uma trajectória particular de desenvolvimento e, ao mesmo
tempo, ser crítico dessa trajectória devido à sua natureza
anti-popular. Dito de modo diferente, uma vez que o conceito do que constitui
infraestrutura é muito significativamente específico a uma
trajectória de desenvolvimento, e uma vez que qualquer
trajectória de desenvolvimento implica um padrão particular de
modificação do equilíbrio das forças de classe, o
conceito de infraestrutura tem uma dimensão de classe.
Karl Marx estava bem consciente disto e exprimiu-se claramente sobre a
questão quando se referiu às "ferrovias"
construídas na Índia sob o domínio britânico como
sendo "inúteis" para os indianos. Ele não queria dizer
com isso que os indianos nunca utilizariam as ferrovias; o que pretendia dizer
era que os britânicos estavam a utilizar recursos indianos para uma
finalidade que tinha uma alta prioridade do seu ponto de vista, nomeadamente a
de explorar a economia, mas uma baixa prioridade do ponto de vista dos
indianos. Ele estava, em suma, a colocar esta infraestrutura dentro de uma
trajectória de desenvolvimento; estava a revelar que o desenvolvimento
das ferrovias não era um acto imparcial e benevolente destinado a
beneficiar o povo indiano, mas sim um acto empreendido para servir interesses
britânicos.
Quando alguém pensa no [império]
Mughal
da Índia, o conceito de infraestrutura cobre principalmente estradas,
hospedarias ao longo delas, mercados em cidades onde cereais pudessem ser
comprados e vendidos e assim por diante. Na "Índia
britânica", quando o país era arrastado a um relacionamento
comercial significativo com a metrópole, proporcionando um mercado e
matérias-primas para os produtos da metrópole, o desenvolvimento
de portos e de instalações de transporte do interior para os
portos, adquiriu primazia. Antigas cidades como Agra, que anteriormente tinha
uma reputação mundial, minguaram em significância; e as
facilidades de transporte entre tais cidades tornaram-se matéria de
importância secundária. O conceito de infraestrutura, em suma,
adquiriu significado totalmente novo. Ferrovias foram construídas por
companhias privadas, cujas taxas de retorno eram garantidas a partir do
orçamento do governo, para servirem as necessidades da
exploração colonial. Na verdade, McPherson, historiador
económico de Cambridge, argumentou que a extracção de
matérias-primas da economia indiana era a motivação
primária por trás do padrão particular da rede
ferroviária que foi construída no país. A
observação de Marx acerca de as ferrovias serem
"inúteis" para os indianos tem de ser entendida neste contexto.
Muitos observadores contrastam os aeroportos de má qualidade que o
país tinha durante o período
dirigista
com os luxuosos que agora surgiram em vários lugares e
vêem nestes últimos um sinal de "desenvolvimento". O que
lhes escapa é que a trajectória de desenvolvimento sob o
regime
neoliberal, o qual está associado a um nível mais alto, e em
crescimento constante, da riqueza e das desigualdades de desenvolvimento,
provoca um enorme crescimento da procura por viagens aéreas e portanto
provoca congestão em aeroportos, a qual só pode ser ultrapassada
através do investimento em "infraestrutura" na forma de
aeroportos. Além disso, com o constante fluxo de executivos estrangeiros
de negócios a virem para o país sob o actual regime de fluxos de
capital muito mais livres, cuja sensação de "sentirem-se em
casa" na Índia torna-se uma condição
necessária para atrair investimento estrangeiro, o qual é
considerado essencial sob a administração neoliberal, tornava-se
obrigatório que aeroportos indianos devessem ser mais ou menos
indistinguíveis dos metropolitanos.
De facto, o fenómeno da globalização requer que todos os
aeroportos por todo o globo deveriam ser indistinguíveis uns dos outros.
Em conformidade com isto, mesmo os avisos públicos no aeroporto de Delhi
são feitos com uma pronúncia nitidamente inglesa. Se um nome de
cidade indiana como Udaipur é habitualmente pronunciado como
"You-dei-pore" no sistema de avisos públicos do aeroporto da
capital do país, a razão para isto repousa nas
características específicas da globalização
contemporânea.
O antecedente tem uma implicação importante. Uma vez que a
distribuição do rendimento num regime de
globalização muda continuamente afastando-se do povo trabalhador
e em direcção à oligarquia corporativo-financeira e a um
estrato da classe média que também se constitui como
beneficiário da globalização, há um perpétuo excesso de
procura pela espécie específica de
"infraestrutura" destinada a estes
beneficiários. (Isto não aconteceria naturalmente em
períodos de crise, mas esse é um assunto que examinaremos depois).
Portanto, deixando de lado os períodos de crise, descobrimos que mesmo
aeroportos recém construídos em breve tornam-se
insuficientes, à medida que o número de passageiros se multiplica
porque a crescente desigualdade de rendimento coloca mais dinheiro nas
mãos dos ricos; estradas recém construídas em breve
revelam-se inadequadas para evitar congestionamentos, porque o aumento
na desigualdade de rendimento implica cada vez mais carros sendo comprados
pelos ricos; e assim por diante. O crescimento da desigualdade coloca portanto
pressão contínua sobre a infraestrutura disponível para
utilização dos ricos. Em consequência, a espécie de
"infraestrutura" destinada aos ricos suga recursos que os afastam de
outras utilizações; e não importa quanto destes recursos
é afastada, a "infraestrutura" para a sua
utilização ainda permanece insuficiente.
Esta insuficiência sem dúvida desaparece em períodos de
crise quando acontece o oposto. Vários ítens da infraestrutura
permanecem inutilizados por falta de procura. Casas construídas prevendo
a continuação do boom ficam vazias; edifícios de
escritórios e de apartamentos permanecem desocupados. Cidades e estradas
fantasmas testemunham a transitoriedade do boom. Mas mesmo
durante uma crise, quando não há excesso de procura por
infraestrutura, a renovação da mesma continua a
verificar-se. Isto acontece porque os ricos locais desejam macaquear os
estilos de vida dos ricos metropolitanos e, quando se verificam
inovações de produtos nos países metropolitanos e
mudanças nos estilos de vida dos ricos metropolitanos, os ricos locais
também querem segui-los. Isto é verdadeiro não só
para mercadorias como também para infraestrutura. Portanto, no caso de
bens manufacturados e infraestrutura, mesmo quando existe capacidade não
utilizada é empreendido investimento adicional para dar uma nova
aparência a ítens de infraestrutura como aeroportos a fim
torná-los ainda mais actualizados. Novos aeroportos são
construídos incorporando os mais recentes gadgets mesmo quando os velhos
aeroportos não estavam a ser plenamente utilizados. Tal investimento
adicional nunca é suficiente para retirar a economia da crise, mas mesmo
assim é efectuado.
NECESSIDADE DE RACIONAMENTO
A necessidade de gastar em "infraestrutura" é habitualmente
mencionada como razão para não efectuar investimento suficiente em
saúde e educação, para não gastar o suficiente em
programas como o MGNREGS
[1]
(apesar de este ser orientado pela procura) e para não poupar
recursos suficientes a fim de proporcionar pensões adequadas a idosos. O
facto de o país encontrar recursos para construir aeroportos
pretensiosos mas não para pensões de idosos ou escolas para a
educação é sintomático da trajectória de
desenvolvimento do capitalismo neoliberal. Mas isto não significa que
simplesmente se critique esta trajectória de desenvolvimento e se espere
pelo dia em que isso possa mudar. Nem tão pouco significa que apenas se
procure mudanças na distribuição de rendimento num sentido
igualitário com o argumento de que a distribuição de
recursos, se devesse ser no sentido de construir aeroportos ou bons
edifícios para escolas de gestão pública, está em
última análise dependente da distribuição do
rendimento. Ou seja, com o argumento de que uma vez que a
distribuição de recursos depende do padrão de procura que
é determinado pela distribuição do rendimento, este
deveria ser o objectivo da intervenção. Alguém
também terá de dizer, como Karl Marx, que um bom acordo quanto ao
que é gasto como investimento em "infraestrutura" é
"inútil" do ponto de vista do povo, que tais investimentos
deveriam ser restringidos e que a "infraestrutura" em causa deveria
ser racionada.
A indicação de qual racionamento tem de ser exercido tem
naturalmente de ser escolhida adequadamente. Por exemplo: o congestionamento de
estradas é uma forma de racionamento uma vez que o espaço
da estrada é limitado relativamente ao número de carros, cada
carro tem de se mover vagarosamente. Mas ao invés de o racionamento
assumir a forma de congestionamento de tráfego, ele podia assumir a
forma de limitação do número de carros sobre as estradas,
assegurando por exemplo que deveria haver um número mínimo de
ocupantes por carro.
Esta espécie de racionamento existe em muitos países, inclusive
em alguns do terceiro mundo, mas não na Índia. Mas a
insistência sobre o racionamento é também um meio de
intervir na distribuição do rendimento. Assim como o racionamento
da distribuição de cereais a baixos preços é um
meio de intervir na distribuição do rendimento num sentido
igualitário além de forçar racionamento da
"infraestrutura" pedida pelos ricos, ao invés de divergir
recursos rumo ao atendimento desta procura a expensas de outras necessidades
socialmente prementes é também um meio de intervir na
distribuição do rendimento. É importante que não
tratemos todo investimento em "infraestrutura" indiscriminadamente,
como se constituísse uma prioridade social.
23/Outubro/2016
[1] Mahatma Gandhi National Rural Employment Guarantee Scheme
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2016/1023_pd/developing-infrastructure
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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