"Sangue nas mãos americanas" Richard Falk na Palestina
por C.J. Polychroniou
[*]
Há 20 anos que Israel e os Estados Unidos trabalham para separar Gaza da
Margem Ocidental, violando os Acordos de Oslo que tinham acabado de assinar,
declarando-os uma unidade territorial indivisível. O último
massacre em Gaza faz parte duma política imperialista israelense que,
como me escreveu Noam Chomsky há alguns dias, procura "apoderar-se
do que há de valioso 'na terra de Israel', reduzir a
população a uma existência marginal (com a habitual
exceção neocolonialista: um enclave para os setores ricos e
ocidentalizados em Ramallah) e, se ela se for embora, tanto melhor". Mas
Richard Falk, Albert G. Milbank, professor emérito de direito
internacional na Universidade de Princeton, antigo relator especial das
Nações Unidas para a Palestina Ocupada, e autor do recente livro
Palestine: The Legitimacy of Hope
, que será publicado em setembro pela Just World Press, sublinha nesta
entrevista exclusiva que Israel protesta sempre que os seus ataques contra os
palestinos são provocados pelos próprios palestinos.
C.J. Polychroniou: Professor Falk, cá estamos de novo: Israel, uma das
mais poderosas potências militares do mundo, desencadeou mais uma
ofensiva terrestre na Faixa de Gaza com o pretexto bastante hipócrita de
que foi o Hamas quem provocou o ataque a Gaza. Qual é o verdadeiro
objetivo de Israel para atacar Gaza nesta altura?
Richard Falk:
Creio que Israel "faz uma poda" periodicamente em Gaza, conforme um
conselheiro de Sharon exprimiu o objetivo da política de Israel em
relação a Gaza, há uns anos. Há fatores presentes
no contexto deste ataque de Israel que podem explicar porquê agora. Os
dois principais fatores, na minha opinião, foram a
instituição mal aceite de um "governo de unidade"
temporário, em 2 de junho, pelos líderes da Fatah e do Hamas, que
prejudicaram a abordagem israelense de manter tão divididas quanto
possível as autoridades governamentais na Margem Ocidental e em Gaza. O
segundo elemento foi o forte incentivo de Israel, para enfraquecer o Hamas na
Margem Ocidental a fim de Israel poder justificar a sua posição
em abril para acabar com as negociações diretas com a Autoridade
Palestina e avançar ainda mais para a incorporação da
Margem Ocidental, ou a maior parte dela, em Israel e concretizar o sonho
expansionista sionista para avançar para além das fronteiras de
1967.
O incidente, em 12 de junho o sequestro de três colonos
adolescentes da colónia Gush Etzion, perto de Jerusalém
forneceu ao governo de Netanyahu o pretexto de que precisava para montar uma
campanha anti-Hamas que começou como uma suposta caçada aos
perpetradores, com a detenção de 500 suspeitos de
ligação ao Hamas e a imposição geral duma
série de medidas opressivas, incluindo demolição de casas,
cerco a aldeias palestinas, e violência a esmo que provocou a morte a
seis palestinos. Como se verificou, o incidente foi manipulado da forma mais
cínica pelo governo que fingiu andar à procura dos jovens
sequestrados, quando sabia que eles já estavam mortos, usando a
ansiedade e a cólera pública para incitar os cidadãos
israelenses a justificar as táticas opressivas do governo e a criar uma
atmosfera de vingança vigilante.
Depois de negar qualquer envolvimento no incidente do rapto, não
é de surpreender que, em retaliação pelas
provocações de Israel, o Hamas tenha começado a disparar
mísseis contra aldeias israelenses. Israel utilizou a sua tremenda
máquina de propaganda para contar ao mundo que o seu terceiro grande
ataque militar a Gaza indefesa nos últimos cinco anos (2008-09, 2012,
2014) foi uma resposta defensiva a ataques de mísseis não
provocados. Com uma inocência ridícula, Netanyahu disse a todo o
mundo que Israel tivera que agir para proteger os seus cidadãos dos
mísseis, sem mencionar, obviamente, a anterior razia anti-Hamas que
incluiu terríveis calúnias racistas israelenses dirigidas contra
os palestinos e ataques vingativos a crianças palestinas.
Porque é que fracassaram as negociações para um
cessar-fogo no Cairo?
O cessar-fogo fracassou por várias razões. O Hamas foi
excluído do processo conducente ao cessar-fogo proposto e só foi
informado pelos media públicos. Além disso, foram ignoradas as
condições do Hamas, previamente anunciadas, para aceitar um
cessar-fogo: libertação dos palestinos, que tinham feito parte da
troca do prisioneiro Gilad Shalit há três anos (em que foi
libertado um único soldado israelense capturado, em troca da
libertação acordada com Israel, de 1027 prisioneiros palestinos),
e que foram detidos de novo nas últimas semanas, na repressão
contra o Hamas; fim do bloqueio e abertura das passagens; fim da
interferência no governo de unidade; reposição do
cessar-fogo de 2012. Por outro lado, o Egito de Sisi dificilmente é um
intermediário de confiança na perspetiva do Hamas. Como pano de
fundo, está a brutal repressão da Irmandade Muçulmana no
Egito e a hostilidade para com o Hamas, que o governo de Sisi considera como
sua extensão.
Israel teria desencadeado um ataque se o novo governo egípcio não
estivesse também disposto a ver o Hamas destruído?
Isso é um assunto muito polémico. Israel iniciou um grande ataque
a Gaza em novembro de 2012, quando o presidente era Mohamed Morsi, apesar da
sua afinidade com a Irmandade Muçulmana e depois aceitou um cessar-fogo
sob os auspícios diplomáticos do Cairo. Claro que ter o general
Abdel Fattah el-Sisi como presidente do Egito é uma
evolução favorável do ponto de vista de Israel. Sisi
destruiu substancialmente a enorme rede de túneis de que o Hamas
dependia para receber os abastecimentos necessários assim como para
cobrar os impostos indispensáveis para administrar Gaza. Nos
últimos meses, o Egito tem vindo a cooperar com Israel e com os Estados
Unidos, inclusive na relação para controlar a passagem
através da fronteira de Rafah para o Egito, que é a única
via de fuga disponível para a população de Gaza, incluindo
os que precisam de assistência médica só disponível
no Cairo. Creio que o ataque de Israel ocorreu nesta altura principalmente por
razões da política de estado de Israel e teria ocorrido
independentemente das atitudes da liderança no Cairo.
Com 1,8 milhão de pessoas encurraladas numa zona de guerra superpovoada,
devia ser óbvio que os ataques dos jatos israelenses constituem uma
flagrante violação do direito humanitário internacional.
No entanto, mais uma vez, Israel é autorizado a avançar com os
assassínios porque beneficia do apoio diplomático dos EUA, assim
como do apoio militar e financeiro dos EUA. Nessa medida, isso não torna
os Estados Unidos um cúmplice nos crimes contra a humanidade, ao lado de
Israel?
Concordo que os Estados Unidos, pelas razões que citou, são
verdadeiros cúmplices no que se refere à natureza criminosa do
ataque de Israel. Se este tipo de cumplicidade envolve uma culpa legal, assim
como uma cumplicidade política e moral, é uma questão em
aberto. Os Estados Unidos, tanto quanto se sabe, não estão
diretamente envolvidos no planeamento e execução desta
"agressão" contra Gaza e da "punição
coletiva" contra a sua população. Dar apoio militar ou
fornecer equipamento militar a um governo estrangeiro, por si só,
não constitui uma relação suficiente com o ataque para
satisfazer os testes legais de cumplicidade.
O que é claro é que o apoio diplomático, continuado e
incondicional, dado pelos EUA a Israel, incluindo a proteção de
Israel contra uma censura formal na ONU, e o fracasso em desencorajar a
prática de crimes de guerra, resulta em muito sangue nas mãos
americanas. Ativistas que se opõem a esta política americana
estão atualmente mais empenhados em mobilizar as igrejas e as
universidades para abandonarem as empresas que fazem negócios com os
colonatos ou facilitam o militarismo israelense, e há crescentes apelos
nacionais e internacionais para um embargo de armamento a Israel, o que teria
apenas uma força simbólica, dada a robusta indústria de
armas de Israel, que está a fornecer armas a muitos países, com o
grotesco argumento de vendas de que são testadas "no terreno",
ou seja, usadas em Gaza.
O Hamas já enfrentou anteriormente uma situação semelhante
mas, sempre que entra em confronto militar com Israel, parece surgir mais forte
do antes. Devemos esperar que desta vez seja diferente?
Neste momento é difícil dizer. O que o confronto revelou foi que
o Hamas e outras milícias em Gaza têm um fornecimento
considerável de mísseis de longo alcance capazes de atingir
qualquer cidade em Israel, incluindo Jerusalém e Tel Aviv. Também
parece que a confiança de Israel nos ataques aéreos e
bombardeamentos navais não foi capaz de limitar o número de
mísseis que foram disparados. É verdade que, apesar de terem
lançado mais de 1000 mísseis, nenhum israelense foi morto por um
míssil palestino (segundo parece, o único israelense que morreu
até agora foi atingido por um morteiro disparado de Gaza, quando estava
a fugir para um abrigo, uma opção que os habitantes de Gaza
não têm) [segundo uma entrevista feita em 19 de julho].
Simultaneamente, os efeitos psicológicos e políticos de terem
sido incapazes de fazer parar o lançamento de mísseis prejudicou
o prestígio de Israel e pode levar a prosseguir em objetivos mais
ambiciosos do que destruir túneis de Gaza para Israel, o objetivo
declarado da Operação Margem Protetora, o nome de código
que Israel deu à sua operação militar. A alta
proporção de civis entre as baixas palestinas (75 a 80 por cento)
também sugere que o Hamas está mais sofisticado quanto à
proteção dos seus militantes contra o poder de fogo israelense,
em comparação com os resultados dos dois ataques precedentes.
Claro que, na medida em que Israel está politicamente mais fraco, o
Hamas surge mais forte, resistindo ao violento ataque israelense, demonstrando
resistência nas circunstâncias mais difíceis e montando uma
teimosa resistência que frustra os anunciados objetivos da guerra de
Israel.
Israel tornou-se num estado "fundamentalista", traindo todos os
sonhos e aspirações que levaram à sua
fundação inicial?
Penso que Israel se foi movendo definitivamente na direção duma
compreensão maximalista do projeto sionista, que atualmente pretende
claramente o exercício de um controlo de soberania permanente sobre a
"Judeia e a Samaria", o que o mundo ocidental conhece como "a
Margem Ocidental". O novo presidente de Israel, Reuven Rivlin, que em
breve substituirá Shimon Peres, pertence à ala direita do Partido
Likud de Netanyahu. É um defensor declarado de um Israel alargado que
reclama toda a Palestina bíblica e repudia toda a diplomacia associada
ao estabelecimento da paz na base de um estado palestino, na verdade, uma
abordagem de um único estado em que os palestinos serão uma
minoria permanente. Além disso, o Israel de hoje desviou-se muito para a
direita; muitos israelenses evoluíram para uma mentalidade consumista e
o conflito com a Palestina, exceto durante crises como a atual, tem colocado
sérias ameaças nos últimos anos à estabilidade e
serenidade do país. Também, por causa das altas taxas de
fertilidade e da importância do movimento colonizador, o judaísmo
religioso tem vindo a desempenhar um papel maior, e injeta um certo extremismo
religioso e intolerância étnica na vida política e social
de Israel.
A solução dois-estados, há muito proposta pelos defensores
da causa palestina, incluindo o falecido Edward Said, parece ser um beco sem
saída pelo menos aos meus olhos. Concorda com esta
afirmação e, se sim, qual é a alternativa para garantir
uma paz duradoura entre israelenses e palestinos?
Vou esclarecer a posição de Edward Said: Durante algum tempo, no
final dos anos 80, ele foi a favor, tal como a OLP, da solução
dois-estados mas, nos últimos anos da sua vida, aprovou veementemente um
estado único, binacional e laico como a única
solução praticável que permitia que os dois povos vivessem
juntos em paz e com dignidade. Said rejeitou a ideia de um estado étnico
para cada povo e achava que a exigência sionista de ter um estado judeu
na Palestina histórica nunca resultaria numa paz justa e
sustentável que reconhecesse os direitos palestinos sob o direito
internacional, incluindo o direito ao regresso e a igualdade para a minoria
palestina que vive em Israel.
Subscrevo a última declaração de Said e creio que a escala
e a determinação dos colonos é tal que torna
impossível a sua remoção politicamente. Por essa
razão, opus-me ao tipo de negociações diretas que o
secretário de Estado dos EUA, John Kerry, tanto pressionou há um
ano, criando falsas expetativas e pressões artificiais. Presentemente,
não existem pré-condições políticas para
dois estados com iguais direitos de soberania, vivendo lado a lado
definitivamente e provavelmente nunca existiram. Negociar com esse sentimento
de futilidade é fazer o jogo de Israel de conversações
infindáveis, enquanto as gruas de construção nos colonatos
continuam o seu trabalho ilegal a um ritmo acelerado. O tempo nunca jogou a
favor dos palestinos. As suas perspetivas territoriais têm sido
permanentemente reduzidas e chegaram agora praticamente a zero. Recorde que o
plano de partição da ONU em 1947 pareceu injusto aos palestinos,
quando lhes ofereceram apenas 45 por cento da Palestina, e que depois foi
reduzido a 22 por cento na sequência do resultado da guerra de 1948, com
a expulsão dos palestinos, e ainda mais pelos "factos no
terreno" (colonatos, muro, estradas só para colonos) paulatinamente
criados a partir de 1967.
A melhor esperança do movimento nacional palestino nesta altura é
avançar através de um governo de unidade, envolvendo
também a comunidade de 7 milhões de refugiados e exilados,
trabalhando em conjunto com o movimento global de solidariedade que está
a crescer rapidamente. Por outras palavras, as perspetivas palestinas no futuro
dependerão da mobilização contínua da sociedade
civil global para apoiar ações coercivas não violentas a
uma escala mundial. A campanha BDS (
Boycott, Divestment, and Sanctions
) tem vindo a crescer recentemente a um ritmo rápido, em que se tornam
mais relevantes as analogias com a luta anti-apartheid que derrubou um regime
racista na África do Sul contra todas as expectativas. Esta
mudança na tática palestina na direção do que eu
tenho chamado de "guerra de legitimidade" parece reforçada na
sua plausibilidade pela crescente indignação global perante a
tática de Israel, principalmente pelo seu desprezo insensível
pela inocência civil dos palestinos.
21/julho/2014
[*]
Investigador associado no Instituto de Economia Levy de Bard College e
colunista dum jornal nacional diário grego. Os seus principais
interesses de investigação são a integração
económica europeia, a globalização, a economia
política dos Estados Unidos e a desconstrução do projeto
político-económico do neoliberalismo. Ensinou durante muitos anos
em universidades nos Estados Unidos e na Europa e é colaborador regular
para
Truthout
assim como membro do Public Intellectual Project da
Truthout.
Publicou vários livros e os seus artigos têm aparecido numa
série de jornais e revistas. Muitas das suas publicações
têm sido traduzidas em diversas línguas estrangeiras, incluindo o
grego, o espanhol, o português e o italiano.
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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