por Miguel Urbano Rodrigues
Mantive nos últimos trinta anos com Vasco Gonçalves uma amizade
na qual a admiração pelo soldado e pelo cidadão funcionou
como ponte para uma identificação ideológica tão
profunda que só encontrou igual na que me liga a Henri Alleg.
Escrevi muito sobre o general do povo. Hoje recordá-lo é
não apenas doloroso, mas difícil.
A dificuldade é inseparável do sentimento de amargura nascido da
contradição entre a consciência da dimensão
histórica de Vasco Gonçalves e a imagem que dele projectou uma
burguesia rancorosa que o responsabilizará pelo tempo afora por ter
desempenhado um papel fulcral na Revolução Portuguesa.
Há dias, em Serpa, comentando a morte do general, o filosofo
francês Georges Labica lembrou que o ódio da burguesia do seu pais
a Robespierre permanece tão vivo que em Paris, transcorridos mais de
dois séculos, não há sequer uma rua que lhe recorde o nome.
Os dois homens foram na intervenção sobre a história
muitíssimo diferentes. Mas a ambos os inimigos não perdoam a
opção revolucionária.
Ficará memória da atitude deste governo mascarado de socialista
ignorando na prática a morte do grande soldado de Abril.
A nota em que o ministério do Sr. Sócrates tornou publica o
motivo pelo qual não decretou luto nacional é um documento
indecoroso, quase grotesco, em que ficou plasmada a pequenez da gente que
aparece hoje ao leme do Pais.
UM MARXISTA ACTUALIZADO
Em artigos comentários e entrevistas sobre Vasco Gonçalves,
políticos e colunistas assumem uma postura sobranceira no esforço
de apresentar o ex-primeiro ministro como um militar de escassa cultura.
Mário Soares terá sido entre esses produtores de opinião o
mais severo nos juízos críticos emitidos.
Essa atitude não pode ser atribuída à tradicional
leviandade do ex-Presidente da Republica. Ele trabalhou com o general em
três governos provisórios e mente conscientemente ao afirmar que
Vasco Gonçalves carecia de uma formação política
sólida. Recorda-o como um homem bom, de carácter, mas ignorante.
Esse retrato, esboçado com displicência, inverte a realidade.
Com excepção de Álvaro Cunhal talvez nenhuma outra
personalidade política portuguesa tivesse um conhecimento tão
profundo do marxismo como Vasco Gonçalves. Ao longo dos anos, em muitas
horas de convívio e troca de ideias, impressionou-me a intimidade que
ele adquirira com os clássicos do marxismo. Não se limitara como
muitos políticos a folhear "O Capital" e obras de Engels, de
Lenine, e Gramsci. Vasco estudara o marxismo, assimilara-o e
esforçava-se por aplicar os seus ensinamentos a cada
situação histórica. Não sendo um militante
comunista, não escondia a sua adesão ao materialismo
dialéctico. As questões de método exerciam
fascínio sobre ele, na avaliação das
relações de forças e das condições
objectivas e subjectivas. Admirava muito Rosa Luxemburgo e relia com
frequência ensaios da Águia de Varsóvia por achar que eram
úteis e actuais para a compreensão do oportunismo dos falsos
renovadores portugueses do marxismo, afinal herdeiros de bolorentas teses de
Bernstein.
Vasco Gonçalves não perdia tempo a ler o que no movimento de
ideias lhe aparecia como espuma, textos de circunstância catapultados
pelo marketing para os tops de vendas.
Mas, integrado na autêntica "batalha das ideias", acompanhava
com interesse absorvente o que de melhor se publicava no mundo na frente
daquilo a que se poderia chamar o autentico renascimento do marxismo, na
acepção leninista da expressão.
Estudara e discutia as obras do húngaro István Meszaros, dos
franceses Georges Labica e Georges Gastaud, dos sociólogos e
economistas da
Monthly Review.
Conheceu pessoalmente os três primeiros em Serpa, no
Encontro "Civilização ou Barbárie"
no qual a sua
intervenção mereceu a esses pensadores de prestígio
mundial palavras de grande apreço.
Mas Vasco Gonçalves acompanhava com a mesma atenção
trabalhos de autores como o irlandês John Holloway e o italiano Toni
Negri que, autodefinindo-se como marxistas, estabelecem com as suas
polémicas teses a confusão no campo das forças
progressistas.
Ciente de que a informação no mundo das ideias é
complemento indispensável da criatividade, o general lia Chomsky,
Chossudovsky, Marta Harnecker, Petras, e o que lhe chegava as mãos de
autores do Brasil, da Colômbia, do México, da Venezuela
bolivariana, da Índia, da Palestina.
Admito que nos dislates maldosos emitidos por Mário Soares sobre Vasco
Gonçalves terá pesado o facto de o general o definir com
clareza no seu livro entrevista a Manuela Cruzeiro como um
contra-revolucionário.
APAIXONADO PELA HISTÓRIA
Vasco Gonçalves, militar, engenheiro, revolucionário marxista,
tinha paixão pela história que via como a mãe das
ciências.
Como eu compartilhava esse interesse, mantivemos infindáveis conversas
sobre obras de Lucien Febvre, Braudel, Hobsbawm, Evgeni Tarlé e outros
historiadores que ambos admirávamos.
Coincidíamos na impossibilidade de compreender o presente de qualquer
povo sem lhe conhecer o passado.
O interesse que manifestava em conhecer revolucionários e intelectuais
que de algum modo haviam sido protagonistas de acontecimentos
históricos inseria-se na perspectiva em que se colocava ao contemplar o
movimento da história.
Fidel Castro, que lhe atribuiu a Ordem de José Marti a mais alta
condecoração cubana admirava-o e estimava-o. Raul Castro
identificava nele um amigo pessoal. Pedro Pires, companheiro de Amílcar
Cabral, convidou-o, quando Primeiro-ministro, a pronunciar conferencias em Cabo
Verde.
Recordo conversas suas com o escritor britânico Basil Davidson e com o
dirigente comunista Simón Reyes quando os recebeu em casa.
Vasco sabia que era amigo de ambos e quis conhece-los pessoalmente. No final
do encontro com o primeiro (o dialogo teve a África como tema) procurou
na estante um livro do autor de
Old Africa Rediscovered,
pediu-lhe que o autografasse e na despedida fez uma confidência:
"A sua visita é uma honra para mim. Não era fácil
durante o fascismo obter os seus livros, mesmo em edições
estrangeiras. Aprendi muito lendo o que escrevia sobre o colonialismo!"
Simon Reyes, que na véspera o saudara num comício na Voz do
Operário como
General del Pueblo,
informou Vasco durante a visita que um livro seu de critica à Doutrina
de Segurança Militar dos EUA aplicada nas Forças Armadas
portuguesas fora traduzido na Bolívia e circulara clandestinamente
durante uma campanha eleitoral.
O general interrompeu-o quando Simón, ao tempo secretário-geral
da Central Obrera Boliviana, expressava a sua satisfação por o
ter conhecido.
"Não diga isso comentou Vasco Gonçalves. O senhor é
um herói da América Latina. Pode ser civil, mas combateu de
armas na mão à frente dos mineiros do seu país. Sinto-me
pequeno junto de si
"
Henri Alleg e o general tinham um pelo outro um apreço que se
transformou em amizade. Quando o autor de
A questão
vinha a Portugal, Vasco Gonçalves reunia um grupo de amigos, a maioria
militares de Abril, e durante horas, no seu apartamento da Av. dos Estados
Unidos, a conversa tinha como tema central o ultimo livro do escritor.
Não esqueci debates fascinantes sobre o fim da União
Soviética e sobre a China, quando foi lançada a
edição portuguesa de
O século do dragão
(Le Siècle du Dragon)
.
INTELECTUAL ACTIVISTA
Vasco Gonçalves tinha horror da pequena política e não
suportava os politiqueiros.
Mas ao deixar o governo e passar à Reserva como militar não
abandonou a política tal como a concebia ao serviço da ideia da
revolução social.
Participei a seu lado, com proveito, em muitas sessões de esclarecimento
sobretudo durante campanhas eleitorais, quando intervinha em apoio de
candidatos da CDU.
Grande tribuno, desenvolvera uma oratória própria, um estilo de
comunicação que conquistava os auditórios. Esclarecendo,
emocionava e comovia pela autenticidade. Os portugueses progressistas sentiam
ao ouvi-lo que o homem que lhes falava mantinha intacta a sua fidelidade aos
princípios que defendera no governo.
Caluniado pelos partidos da burguesia, o Companheiro Vasco foi até ao
fim o revolucionário que contribuiu decisivamente para a
instituição do salário mínimo, para as
nacionalizações para a criação de
condições que permitiram conquistas como o 13º e o 14º
salários, inexistentes nos EUA e na Grã Bretanha.
Tive a oportunidade no ano findo de comprovar em Coimbra como, dirigindo-se a
adolescentes numa escola secundaria, conseguia transmitir-lhes numa linguagem
muito simples algo muito difícil, ao colocá-los perante a
contradição entre o grande painel revolucionário da
esperança e da fraternidade de Abril e o quadro decepcionante do
Portugal de hoje onde políticos emplumados mas medíocres
funcionam como instrumento da estratégia de transnacionais e de uma
classe dominante empenhada em aprofundar o abismo entre os de cima e os de
baixo.
Em Serpa, no ano passado, dois jovens intelectuais de prestigio internacional,
o professor francês Remy Herrera, da Universidade de Paris, e o professor
argentino Nestor Kohan, da Universidade das Mães da Plaza de Mayo,
mantiveram com ele um dialogo sobre problemas do mundo contemporâneo que
foi posteriormente, como entrevista, publicado tanto por
Rebelión
como por
resistir.info
, e lido em dezenas de países. Ambos expressaram admiração
pela cultura e espírito revolucionário daquele soldado
ancião cujo discurso tinha o frescor da juventude.
Foi no lançamento da Comissão Nacional de Solidariedade com o
Povo da Venezuela Bolivariana que, pela última vez, em Abril pp, tive a
oportunidade de participar ao lado de Vasco Gonçalves numa sessão
pública. Ele foi o orador principal e a sua intervenção a
melhor e a mais aplaudida.
Antes do chamado Referendo revogatório enviara a Hugo Chavez um DVD com
uma mensagem de apoio um pequeno filme que foi exibido na Venezuela.
O seu delicado estado de saúde não lhe permitiu infelizmente
proibição dos médicos corresponder a
convites de Fidel e do presidente venezuelano para participar em Havana e
Caracas de iniciativas de carácter revolucionário.
O PATRIOTA INDEFECTÍVEL
A defesa da soberania nacional foi uma constante na política externa de
Vasco Gonçalves, quando Primeiro Ministro num período
dificílimo quando às tentativas do imperialismo que
visavam inviabilizar o desenvolvimento da Revolução de Abril se
somaram em varias frentes às manobras ambíguas de Mário
Soares orientadas no mesmo sentido.
É do domínio público a atitude de dignidade que o general
assumiu quando o presidente Ford, com arrogância, se lhe dirigiu em
termos inaceitáveis, exibindo um anticomunismo primário. Muito
recentemente, foram aliás divulgadas nos EUA declarações
de Kissinger, reproduzidas pelo
Diário de Noticias,
em que o ex-secretário de Estado de Nixon reconhece a firmeza de
carácter do Primeiro Ministro português, identificando nele um
interlocutor muito difícil.
Creio útil, entretanto, sublinhar aqui que, já afastado do
governo, Vasco Gonçalves demonstrou permanentemente o seu patriotismo.
Combateu sempre o espírito de vassalagem assumido por sucessivos
governos do PS e do PSD nas relações com os EUA e com as
estruturas de poder da União Europeia.
Mais de uma vez o ouvi comentar com indignação a tendência
desses governos para esconder datas nacionais ligadas a grandes acontecimentos
da nossa história. O feriado do 1º de Dezembro incomoda tal
gente. Recordar a vitória sobre Castela na Revolução de
1383 aparece-lhes como atitude inaceitável, quase uma vergonha. Temem
ferir a sensibilidade dos governantes de Madrid, também neoliberais e
europeístas.
Vasco tinha consciência de que o universal parte do particular, como
dizia Gide e recorda Fidel, sabia de que o internacionalismo não
é incompatível com a defesa dos valores nacionais. A
preservação das culturas é uma exigência do
progresso da humanidade, não pode ser confundida com o nacionalismo
obscurantista de raiz fascista.
Um dos mais belos trabalhos de Vasco Gonçalves é precisamente o
ensaio que escreveu sobre Aljubarrota e foi publicado num Suplemento de
o diário
comemorativo da
Revolução de 1383-1385
.
Não esqueci que ao pedir-lhe essa contribuição ele
resistiu, alegando que, não sendo historiador, não se sentia em
condições de produzir um texto de qualidade mínima sobre
tema tão complexo.
Consegui, então, convence-lo de que a sua modéstia não
devia travar a participação numa iniciativa de significado
revolucionário.
E que aconteceu? O ensaio de Vasco Gonçalves sobre a
formação do exército popular que nos campos de Aljubarrota
assegurou a continuidade de Portugal ao derrotar a cavalaria feudal castelhana
foi segundo o historiador Borges Coelho reconheceu o mais
importante estudo sobre o assunto.
Nestes tempos em que os olivais, os montados e as terras do Alqueva
estão a ser adquiridos por latifundiários e empresários
espanhóis, sob os aplausos de governos que cultivam a religião do
mercado neoliberal resistir.info entendeu que o trabalho de Vasco
Gonçalves conservava tamanha actualidade que o republicou.
Repito, para terminar: foi indecorosa a posição do governo do
sr. Sócrates ao ignorar, como se fora um incidente irrelevante, a morte
de Vasco Gonçalves e o significado da sua intervenção na
História de Portugal.
Álvaro Cunhal e ele deixam nessa historia marcas indeléveis,
positivas, muito mais fundas do que, somadas, as de todos os governos PS e PSD.
O crime que a burguesia não perdoa a Vasco é a tenacidade com que
ele segundo as suas palavras levou à prática
"ideias que abracei ao longo de toda a minha vida".
Ideias que respondiam a aspirações eternas do ser humano e que
por isso mesmo não podem ser destruídas. Sufocadas,
incompreendidas por muitos, voltarão a germinar.
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