por Miguel Urbano Rodrigues
Foi em San Salvador há quase dez anos que conheci Schafik Handal.
Encontrava-me na capital salvadorenha como observador internacional durante
umas eleições legislativas.
A Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN)
transformara-se em partido político e conquistou tantos lugares no
Parlamento como a Arena, a organização de direita que governava o
pais sob a tutela dos EUA.
Leonel Gonzalez, que era na época o coordenador da FMLN, marcou uma
entrevista com Schafik, mas à ultima hora foi cancelada por um problema
de agenda. Apenas trocamos meia dúzia de palavras. Ao despedir-se com um
"fica para o próximo encontro" ele fez uma sugestão:
"Estude um pouco a história de El Salvador se quiser compreender
este povo".
Recordo o pormenor por dois motivos.
1. A entrevista falhada foi substituída por outra com Facundo Guardado,
que se transformaria no líder dos "renovadores" da FMLN.
2. O meu professor da Historia não apenas de El Salvador, mas de toda a
América Central seria, transcorridos dois anos, o próprio Schafik.
Quando voltei a encontrá-lo em Havana, a camaradagem estabelecida
evoluiu para um sentimento de amizade. Ele estava na capital cubana para
tratamento médico. Já fizera uma operação ao
coração e os controles periódicos eram recomendados pelos
médicos.
Como se hospedava no Hotelito de 41, do Partido, onde eu então residia,
aproveitei a oportunidade. Comíamos juntos quando possível e,
após o jantar, mantínhamos longas conversas.
Descobri que Schafik tinha um conhecimento profundo da história dos
povos da América Central. Contrariamente ao que ocorrera no Caribe, onde
os crioulos actuaram como detonador da revolução libertadora, a
alta classe que descendia dos espanhóis permaneceu no México ao
lado da Coroa e teve um papel decisivo no esmagamento das rebeliões
populares lideradas pelos padres Hidalgo e Morelos. Após a
independência, essa gente identificou um perigo na unidade da
América Central e tudo fez, com êxito, para a fragmentar em
pequenas repúblicas oligárquicas. No sec XIX, heróis
centro americanos, como o revolucionário hondurenho Morazan, foram
vítimas de tal política, obviamente incentivada pela Inglaterra e
pelo nascente imperialismo estadunidense.
Historiador sem cátedra, Schafick evocou episódios do tempo da
guerra que me ajudaram a compreender melhor a epopeia da FMLN e, sempre apoiado
em situações vividas, esboçou o quadro social de El
Salvador após os acordos do cessar fogo, quando a Frente, finda a luta
armada, passou a actuar no quadro institucional como partido político.
Guardo dessas conversas uma lembrança muito forte porque cada uma delas
continha lições de estratégia. Eu tinha consciência
das dificuldades que nascem para um movimento revolucionário quando os
seus quadros saem do mato para as cidades e são integrados, de repente,
num quotidiano modelado pela burguesia. Em El Salvador houve ex-comandantes
como Joaquim Villalobos que foram seduzidos pela atmosfera que os envolveu. De
Oxford, onde lhe ofereceram um doutoramento, voltou tão contaminado pelo
sistema que acabou líder de um partidinho por ele fundado, que acabou
pró-EUA e aliado da direita.
Schafik que fora um dos principais comandantes da guerrilha
contou-me que até nos EUA, durante as conversações para o
fim da guerra o cumularam de gentilezas, com altos funcionários do
establishment
a insinuar-se como "amigos" num processo de sedução de
objectivos transparentes.
Não esqueço a impressão desfavorável que na
primeira visita a San Salvador me causou o então comandante Facundo
Guardado. Era então um dirigente tão destacado que foi candidato
pela FMLN à presidência da Republica. O seu discurso conciliador,
tímido, aplaudido em Washington não ajudou. Mas conseguiu chegar
à liderança do Partido.
Quando em 2002 voltei ao país a fim de participar numa conferencia
internacional de solidariedade com as forças progressistas da
Colômbia, estava no auge a campanha mediática que apresentava os
"renovadores" da FMLN como a alternativa aos revolucionários
marxistas da velha guarda, satanizados como "conservadores",
incompatíveis com a modernidade e com a democracia. Facundo, ainda na
FMLN, mas já afastado da direcção, fora transformado pela
direita no bom revolucionário, o homem no qual a esquerda, se
lúcida, poderia encontrar o seu guia e salvador.
Em Portugal os auto-intitulados "renovadores" do PCP, faziam
então muito barulho nos media. A linguagem era muito semelhante apesar
de diferenças abissais entre as sociedades salvadorenha e portuguesa. As
afinidades impressionaram-me tanto que abordei o tema numa entrevista com
Schafik, publicada no "Avante".
Lá como cá, a campanha "renovadora" não passou
da gritaria.
Facundo é hoje um cadáver político e os portugueses que
então proclamavam a sua impaciência militante para lutar pela
"renovação" do marxismo comportam-se como
anticomunistas e alguns não hesitaram mesmo em apoiar candidatos
à Presidência da Republica do Partido Socialista, que é um
partido vocacionado para administrar o capitalismo melhor do que a direita
quimicamente pura. Na América como na Europa, a febre renovadora
não está, aliás, mais na moda. Os seus porta vozes
perderam toda a credibilidade.
O Partido da FMLN, entretanto, cresceu na fidelidade aos princípios.
A capital dos pais e as principais cidades são governadas por quadros
seus. Schafik foi candidato à Presidência nas ultimas
eleições e somente não venceu porque os EUA intervieram na
campanha, ameaçando suspender as remessas de divisas dos imigrantes
salvadorenhos se o candidato da oligarquia local o homem de Washington
não fosse eleito. Num pais onde esse dinheiro é a
principal fonte do PIB, a manobra de chantagem funcionou.
O prestígio de Schafik permaneceu, porem, intacto. Era o deputado mais
querido do povo de El Salvador e o mais combatido e caluniado pelas
forças da direita.
Fidel Castro tinha por ele uma grande admiração e tornou-a
publica muitas vezes em Havana. Schafik era como revolucionário
simultaneamente um homem de acção e um ideólogo.
Não esqueço nem os seus ensaios políticos sobre grandes
problemas do nosso tempo, nem as intervenções que lhe ouvi em
conferências internacionais. Ajudou-me a compreender melhor a
América Latina.
Descendente de palestinianos, lembrava pelo perfil, apesar da barba, um romano
antigo. Não sorria com muita frequência, mas tinha um sentido de
humor que desmontava os adversários.
Mais de uma vez, em conversa, lamentou não conhecer Portugal. Esteve
quase a concretizar essa aspiração no ano passado, por
ocasião do Encontro "Civilização ou
Barbárie", em Serpa, mas o projecto foi adiado.
Escrevi-lhe então e tinha a esperança de o reencontrar,
finalmente, nesta cidade alentejana. O convite era permanente.
Não virá. A morte abateu o combatente internacionalistra de
maneira fulminante no regresso da Bolívia onde fora representar o FMLN
na posse de Evo Morales.
De Schafik Handal se pode dizer que lutou e viveu como um revolucionário
exemplar.
resistir.info já publicou os seguintes artigos de Schafik Handal:
Eleições presidenciais em El Salvador: Ventos favoráveis a uma mudança real
O debate da esquerda na América Latina
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