A desmontagem da "Democracia Representativa"
novo livro de Jean Salem
por Miguel Urbano Rodrigues
Jean Salem, com o seu livro
"Élections, piège à cons?
Que reste-t-il de la démocratie?"
[1]
dá um contributo valioso para a desmontagem do mito da chamada
democracia representativa. Em apenas 104 páginas, o autor consegue
imprimir força de evidência a um conjunto de questões que
condicionam o futuro da humanidade. Ilumina as engrenagens da falsa democracia,
desmonta os mecanismos do circo eleitoral e alerta para o papel que a
manipulação mediática representa hoje na estratégia
de poder do grande capital.
Élection piège à cons? Que reste-t-il de la
démocratie?
[1]
, de Jean Salem, é uma contribuição valiosa para a
desmontagem do mito da chamada democracia representativa. Em apenas 104
páginas, o autor consegue imprimir força de evidência a um
conjunto de questões que condicionam o futuro da humanidade.
Salem, professor de História da Filosofia na Sorbonne, conhecedor
profundo do pensamento dos materialistas gregos, consegue numa linguagem muito
acessível encaminhar os leitores para a reflexão sobre problemas
inseparáveis da crise global que está encaminhando a humanidade
para o abismo.
No seu livro Lénine et la Révolution
[2]
, recorrendo a seis teses do grande revolucionário russo, demonstrou que
elas não perderam actualidade na luta contra a barbárie
capitalista. Neste ensaio ilumina as engrenagens da falsa democracia, desmonta
os mecanismos do circo eleitoral e alerta para o papel que a
manipulação mediática representa hoje na estratégia
de poder do grande capital.
AS DINASTIAS REPUBLICANAS
Filho de Henri Alleg, Jean Salem herdou do pai o talento de usar a ironia com
eficácia na denúncia de facetas pouco lembradas do drama e da
comédia politica. Comentando a proliferação das
"dinastias electivas" chama a atenção num dos primeiros
capítulos para o estranho fenómeno da tendência
dinástica em regimes formalmente republicanos. Nos EUA, George Bush pai
preparou George Bush filho para chegar à Casa Branca após o
intermezzo de Clinton. No Haiti Papa Doc Duvalier teve como sucessor Baby Doc
Duvalier. Na Nicarágua foi necessária uma revolução
para dar fim à dinastia dos Somoza. No Paquistão Benazir Butto
sucedeu a seu pai Ali Butho e o marido, Asif Zardari tornou-se presidente
quando a assassinaram. O filho, Bilwal, é o herdeiro provável. Na
Índia de Indira Gandhi, filha de Jawaharlal Nehru, o sucessor foi o
filho, Rajiv, também assassinado e Sonia, a viúva, uma italiana,
somente não foi primeira-ministra porque recusou. Na Coreia do Norte,
Kim il Jong herdou a Presidência do pai, Kim Il Sung e o neto deste, Kim
Jong Un governa agora o país. Na Colômbia, duas famílias,
os Gomez e os Lopez têm vocação dinástica e o actual
presidente, Juan Manuel Santos, orgulha-se do fundador da estirpe presidencial,
Eduardo Santos. No Togo, Fauce Gnassingbé Éyadmé recebeu o
poder do pai Gnassigbé Eyedema. No Gabão, Ali Ben Bongo governa
com escassa contestação após o pai, Gongo Omar. Na
República Popular do Congo, quando Laurent Desiré Kabila faleceu,
o poder foi atribuído ao filho, Joseph Kabila. No Egipto a
insurreição popular impediu que Osni Mubarak colocasse no poder o
filho Gamal.
Todos definiram nos seus países a forma de governo como
democrática.
O SUFRÁGIO UNIVERSAL
O sufrágio universal foi instituído por Napoleão III
depois de ter liquidado a República. Não para entregar o poder ao
povo, mas como sublinhou Lénine em
O Estado e a Revolução
para "o utilizar como instrumento de dominação da
burguesia".
Bismark imitou-o depois de ampliar os privilégios dos
latifundiários prussianos. Milhões de eleitores acreditaram
ingenuamente que lhes fora atribuído um poder real, quando na realidade
o sufrágio universal serviu para reforçar o despotismo.
Salem recorda que na sua crítica ao parlamentarismo Lénine nunca
defendeu o boicote das eleições. Os comunistas, na sua
opinião, deviam estar presentes na DUMA (o parlamento do Czar), mas
para, vacinados contra o cretinismo parlamentar, defenderem ali os interesses
dos trabalhadores.
Para ele, a democracia capitalista limitava-se a autorizar os oprimidos de
três em três ou de seis em seis anos a decidir que elementos da
classe dominante os representariam, e calcaria aos pés os seus
interesses no Legislativo. Nada mais. Foi igualmente em
O Estado e a Revolução
escrito durante a Revolução de Fevereiro de 17 que
Lénine chamou a atenção para a realidade: a verdadeira
tarefa do Estado falsamente democrático é executada nos
bastidores e não através do Parlamento. Este servia
fundamentalmente para enganar o povo e conferir legitimidade à ditadura
de classe.
Transcorrido um século, o mundo mudou muito, mas não a
função dos Parlamentos. O seu papel resume-se "a avalisar o
que foi decidido sem eles".
Jean Salem recorda o que se passou com o projecto da Constituição
Europeia para desmascarar o conceito de democracia do Estado burguês.
Quando o povo francês em 2005 votou contra o texto que impunha à
União Europeia uma Constituição que institucionalizava o
capitalismo, soou o alarme no mundo do capital. E o medo alastrou dois meses
depois, quando os eleitores da Holanda num referendo similar rejeitaram
também o projecto.
Porventura a burguesia aceitou o veredicto popular? Não.
Os governos no poder mudaram o título do Tratado Constitucional,
introduziram-lhe alterações cosméticas, mas, em vez de o
submeterem novamente à votação do povo, transferiram para
os parlamentos a decisão. O desfecho foi o esperado: em França e
na Holanda o projecto recauchutado foi facilmente aprovado em 2008.
Inesperadamente, porém, os irlandeses tinham, em referendo, recusado o
mostrengo constitucional. A pressão e a chantagem exercidas sobre aquele
povo foram tamanhas que, meses depois, noutro referendo, o Não passou a
Sim!
A partir de então não houve mais referendos em países da
União Europeia e os parlamentos aprovaram docilmente o famigerado
Tratado. Em Portugal, o governo de Sócrates engavetou para o efeito o
compromisso de confiar ao povo a decisão.
A dualidade de critérios sobre o carácter democrático de
"eleições livres" é enfatizada por Jean Salem a
propósito do que ocorreu na Palestina em 2006. Ao território
afluíram observadores internacionais de dezenas de países. Os EUA
os governos da UE tinham como certa a vitoria das forças de Mamoud Abbas
e da sua corrupta Autoridade Palestina, submissa às
imposições de Washington e de Israel. Mas, contrariando as
sondagens, o Hamas obteve uma vitória límpida. A
reacção do imperialismo foi imediata. Aplicaram
sanções económicas e politicas a Gaza, bastião do
Hamas. Não perdoaram aos palestinos terem desafiado o Ocidente. E em
2008 Israel invadiu a Faixa de Gaza, cometendo crimes que indignaram a
humanidade.
O binómio EUA-União Europeia orgulha-se de ser o guardião
da democracia, declarando-se sempre disponível para condenar aqueles que
a violam.
Mas admite excepções. Quando Ieltsin ordenou o assalto sangrento
ao Parlamento russo em 1993 (150 mortos e 1000 feridos) o
Washington Post
escreveu: "Aprovação geral para a acção de
força de Ieltsin, encarada como vitória da democracia". O
secretário de Estado Warren Christopher correu a Moscovo para apoiar o
golpe porque se tratava de "circunstâncias excepcionais".
O PODER REAL
Comparando a política, tal como é hoje nos países
industrializados, a um teatro de sombras, Jean Salem, sempre didáctico,
coloca o dedo na ferida.
As pompas oratórias confundem, mas não alteram o movimento da
história. O Poder real não está na sala oval da Casa
Branca nem em Bruxelas. Quem toma as decisões importantes é a
Finança, o Capital, mais exactamente aqueles que representam o deus
dinheiro: o Banco Mundial, o FMI, a OMC, os instrumentos de um poder
"monográfico e tecnocrático", como diz o italiano
Sabino Acquaviva, agentes de uma soberania transnacional, incontrolável,
desumanizada.
Os capítulos dedicados por Salem ao funcionamento da farsa
democrática permitem ao leitor assistir a espectáculos de teatro
de absurdo.
Não revela coisas que não sejam do domínio público.
Mas, ao recordar a rodagem da máquina apodrecida do sistema, aviva a
repulsa que a engrenagem do capitalismo inspira hoje a uma grande parte da
humanidade. Na Europa é particularmente grotesco o debate entre a
direita assumida e a social-democracia. Ambos quando governam praticam
políticas neoliberais. Somente se diferenciam porque os
social-democratas acreditam administrar melhor o capitalismo.
O CIRCO ELEITORAL
Nada ridiculariza mais o discurso sobre a grandeza da democracia americana do
que um facto insólito, confirmado pelas estatísticas: todos os
presidentes dos EUA são levados à Casa Branca por uma pequena
minoria de eleitores: em média 25% dos inscritos. Assim aconteceu com
Reagan, Carter, Bush pai, Clinton, Bush filho. Barack Obama, olhado por
Mário Soares como esperança da humanidade, recebeu 30%, um
recorde.
O sistema é perverso. Com "grandes eleitores" a representarem
os votantes, as primárias são condicionadas pelo dinheiro
acumulado pelos candidatos em campanhas milionárias, e as
convenções que decidem qual o escolhido transcorrem em atmosfera
de circo.
Em 2000, Bush filho obteve menos votos do que Al Gore, as fraudes na Florida e
noutros estados foram transparentes, houve recontagem, mas, após largos
dias, Bush foi proclamado presidente após intervenção do
Supremo Tribunal. Assim funciona a "grande democracia americana"
O modelo é repulsivo, mas contaminou a Europa.
Em Portugal, o PS e o PSD esforçam-se por o aplicar como bons
discípulos. Nos programas prometem obras faraónicas,
benefícios sociais, aumentos salariais, centenas de milhares de
empregos. O discurso, a postura, os gestos, a voz, o penteado, a roupa dos
candidatos a primeiro-ministro são estudados e impostos por
especialistas contratados, alguns estrangeiros.
Uma vez nomeado, o primeiro-ministro do Partido vencedor engaveta todas as
promessas e desenvolve uma política reaccionária com elas
incompatíveis.
Os governantes, aplaudidos pelo coro de epígonos, repetem diariamente,
monocordicamente, que o regime é democrático, o parlamento a
expressão da vontade popular e os media carimbam a mentira.
Mentem conscientemente. Sabem que a chamada democracia representativa obedece
no seu funcionamento a regras concebidas para promover a desigualdade,
beneficiar o grande capital e manter na pobreza a maioria da
população.
O sistema não tem conserto possível. Não pode ser
reformado, tem de ser destruído. A burguesia não entrega o poder
através de eleições.
Que fazer, então?
"O que é preciso mudar, na realidade, é o conjunto"
afirma Jean Salem no final do seu belo e lúcido livro um
sistema no qual o omnipresente modelo do mercado é suficientemente
repugnante para que analistas mais ou menos desinteressados tenham transformado
o cidadão-eleitor num vulgar consumidor da "escolha tradicional
(
) um sistema em cujo cerne estão inscritas a desigualdade, a
falta de carácter, a violência, a guerra".
Jen Salem escreveu um livro muito importante em que arranca a máscara
à falsa democracia imposta aos povos pelo capital.
21/Fevereiro/2012/V.N. de Gaia
Notas:
1- Jean Salem,
Élections, Piège À Cons?-Que Reste-T-Il De La Démocratie
, Flammarion, Paris, 2012, ISBN: 978-2-08-124879-3
2- Jean Salem, Lenine e a Revolução, Editorial Avante, Lisboa,
2005
O original encontra-se em
http://www.odiario.info/?p=2392
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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