Passos Coelho: da ambição de poder à vocação para a ditadura

por Miguel Urbano Rodrigues

Cartoon de Fernão Campos. Os inimigos do povo, encastelados no governo, recolhem os benefícios do conformismo de milhares de portugueses. Contemplar esse bando de políticos tal como é e não como, mascarado, se retrata e exibe, tornou-se hoje uma necessidade.

É difícil expressar o que senti ao acompanhar o programa da RTP em que Passos Coelho respondeu a perguntas de 20 cidadãos convidados por aquela emissora de televisão.

Alguns camaradas tendem a ver no atual Primeiro-ministro uma caricatura de Maquiavel sem a inteligência do autor do Príncipe.

Não os acompanho. A sua intervenção no referido programa permitiu-me confirmar a opinião que formei do político e do homem.

É minha convicção de que não pretende enganar o povo porque não tem consciência do papel que desempenha no exercício do poder político.

Passos faz-me lembrar aquilo a que a escritora sionista estadunidense Hannah Arendt chamou a banalidade do mal no seu livro sobre o julgamento de Eichmann. Mas, diferentemente dos carrascos nazis que de consciência tranquila praticavam rotineiramente crimes medonhos cumprindo ordens, o Primeiro-ministro julga-se investido de uma tarefa histórica. É ele quem, a serviço de um poder estrangeiro, elabora o plano para a execução dos crimes de que é vitima o povo português. Sente orgulho como intermediário. Vê-se como um predestinado incumbido da missão de salvar a pátria do atoleiro em que se encontrava quando, por via eleitoral, recebeu as insígnias do poder politico.

Admito que não tem a noção do mal que semeia.

A ideia que faz de si próprio melhorou provavelmente com a autoavaliação do seu desempenho no indecoroso programa, montado pela RTP para lhe envernizar a imagem que projeta através da resposta a perguntas quase todas inofensivas. A maioria, formulada por cidadãos sem experiência política, incidiu sobre temas pontuais ou locais. Com duas excepções, não foi questionado pela governação catastrófica da equipa a que preside, tendo Portas por lugar-tenente.

Registei apenas duas exceções: a primeira e a última perguntas.

A primeira incidiu sobre as suas insanáveis contradições e incoerência: incumprimento de compromissos assumidos, e o hábito banalizado de impor hoje o que na véspera garantia que jamais faria. Na última perguntaram-lhe se acredita ter condições mínimas para se manter à frente do governo após o desastre a que conduziu o país.

A ambas as questões respondeu quase eufórico, como um irresponsável. Aproveitou a primeira, para, numa pirueta, ignorando-lhe o conteúdo, repetir o seu bolorento e monocórdico discurso sobre os benefícios futuros da sua política de austeridade. O auditório (100 cidadãos selecionados pela RTP) teve de ouvir a lengalenga sobre os «sacrifícios» e a forma compreensiva como o povo os aceita, sua certeza de que o país está a caminho de vencer a crise. Manifestou alegria por indicadores fantasistas sobre a diminuição do desemprego e o crescimento da economia e a iminência de investimentos que vão chover sobre Portugal, etc, etc.

A última pergunta ofereceu-lhe a oportunidade, esperada, de esboçar o auto-elogio ditirâmbico da sua governação.

Foi categórico sobre a sua permanência no poder. Claro que fica. Conforta-o a certeza de que um dia, talvez não distante, o povo, finalmente grato, reconhecerá o significado histórico da sua obra.

Não é homem de dúvidas. Falou com a firmeza de Júlio César ao dirigir-se ao Senado no regresso triunfal a Roma depois de ter derrotado Pompeu em Farsala. Parecia, pela fogosidade, assumir o orgulho de Cromwell ao prever no Parlamento britânico que as suas reformas seriam o alicerce da futura grandeza da Inglaterra.

A VOCAÇÃO PARA A TIRANIA

Como é possível termos chegado a este pantanal, perguntam hoje, angustiados mas perplexos, milhões de portugueses. Como pôde esse homem e a sua equipa de inimigos do povo semear tanta destruição em dois anos?

Há políticos maléficos, mas que são dotados de uma inteligência diabólica.

Não é o caso de Passos. Além de inculto, é pouco inteligente. Mas não se apercebe da sua pequena dimensão humana e intelectual. Crê, repito, que está a fazer grandes coisas.

Ao fechar o televisor, meditei sobre a farsa a que tinha assistido.

Em Portugal cresce agora, a cada dia, a indignação provocada por uma política de desprezo pelo povo trabalhador, política que arruinou o pais e tripudia impunemente sobre direitos e garantias constitucionais.

O protesto nas ruas e lugares de trabalho adquiriu carácter permanente, abrangendo camadas da população que tradicionalmente não participavam em greves e manifestações. Mas essa ruptura de mecanismos de alienação não é generalizada.

A tomada de consciência das massas brota da conclusão, filha do sofrimento, de que isto não pode continuar como está, pelo que é urgente correr com este governo de pesadelo.

O alargamento da frente de luta é ainda, contudo, insuficiente. Uma parcela ponderável da população não participa da mobilização contra o monstruoso sistema de poder implantado no país.

A comunicação social, controlada pela engrenagem do grande capital, em vez de contribuir para ascensão das lutas populares, cumpre um papel desmobilizador. Os jornais ditos de referência, a televisão e a rádio criticam com displicência a obra devastadora de Passos & Companhia, mas não lhe contestam a legitimidade para a prosseguir.

Nesse jogo de astúcias, o papel dos analistas políticos – quase todos gente ligada ao poder – favorece a tendência de faixas importantes da população para aceitar com resignação, quase como fatalidade, a destruição do país.

Muitos cidadãos que condenam e desaprovam o desgoverno permanecem passivos. Cruzam os braços perante um suposto inelutável. Estabelecem clivagens entre os ministros. Alguns surgem-lhes no quotidiano como pessoas normais, ate bondosas.

Esses portugueses que assistem sem participar são, afinal, iludidos pela banalidade do mal.

Já lembrava Cervantes no Dom Quixote que a diferença entre el cuerdo y el loco é menos transparente do que muita gente imagina. Em muitos casos não é facilmente identificável.

Os inimigos do povo, encastelados no governo, recolhem os benefícios do conformismo de milhares de portugueses.

Contemplar esse bando de políticos tal como é e não como, mascarado, se retrata e exibe, tornou-se hoje uma necessidade.

Contrariamente a Portas, perverso e maléfico, mas dotado intelectualmente – Passos, repito, é pouco inteligente.

Não consegue sequer disfarçar o seu pendor para métodos autocráticos. Abomina a Constituição, desrespeita-a, viola-a com frequência. Desejaria poder despedaçá-la, revogá-la, mas não pode.

Enche diariamente a boca com a palavra democracia, apesar de incompatível com ela.

Identifico nele uma frustração indisfarçável por não estar ao seu alcance governar no quadro institucional do regime para o qual está vocacionado: a ditadura!

Vila Nova de Gaia, 10/Outubro/2013

O original encontra-se em http://www.odiario.info/?p=3054

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
13/Out/13