América Latina, da ficção à realidade
por Miguel Urbano Rodrigues
América Latina, ou Amérique Latine são expressões
geográfico-históricas relativamente recentes.
Essas palavras foram utilizadas pela primeira vez em 1836 por um francês,
Michel Chevalier, e vulgarizadas por Napoleão III quando invadiu e
ocupou o México em 1861. O objetivo do imperador foi excluir os povos da
América que falavam inglês.
Mas a expressão é enganadora. Com uma superfície de
21.070.000 km2, e uma população de aproximadamente 620
milhões, a América Latina é um conjunto heterogéneo
de países.
De comum entre eles somente falarem idiomas latinos apenas oficiais em
alguns e terem sido colonizados e espoliados por potências europeias, e
submetidos, a partir da primeira guerra mundial, à
dominação imperial dos Estados Unidos.
DIVERSIDADE
A composição étnica desses países é
extremamente diversificada.
No Haiti (27.000 km2 e 9 milhões de habitantes), em Cuba (110.000 km2 e
11.300.000 habitantes), em Porto Rico (8.500 km2 e 4.000.000 de habitantes) e
na República Dominicana (48.000 km2 e 10.000.000 de habitantes) os povos
autóctones foram totalmente exterminados. O Haiti é hoje uns pais
de afro-haitianos. No Brasil (8.500.000 km2 e 202.000.000 de habitantes) os
ameríndios são residuais (menos de 0,5%). A
população atual descende de europeus e africanos e, em
percentagem mínima, de asiáticos. Na Argentina (2.792.000 km2 e
43.000.000 de habitantes) e no Uruguai (176.000 km2 e 3.500.000 habitantes) a
quase totalidade da população é hoje de origem europeia.
A diversidade de critérios adotados nos censos da
população retira credibilidade às estatísticas
relativas à composição étnica.
Admite-se que no México (1.964.000 km2) 12 dos 120.000.000 de habitantes
são índios, dos quais uma elevada percentagem se expressa ainda
em idiomas anteriores à conquista espanhola. No Peru (1.285.000 km2 e
31.000.000 de habitantes) e na Bolívia (1.09. 000 km2 e 11.000.000 de
habitantes), o quéchua e o aimará, línguas do
Incário, são oficiais, ao lado do espanhol. No Equador (243.000
km2 e 16.000.000 de habitantes) a maioria dos índios mantêm como
língua materna o quéchua.
No Paraguai (406.000 km2 e quase 7.000.000 de habitantes), o guarani é
falado pela maioria da população, embora esta descenda hoje
sobretudo de emigrantes europeus. A chacina foi tamanha durante a guerra
genocida contra a Triple Aliança (Brasil, Argentina e o Uruguai), que a
poligamia foi autorizada porque quatro quintos dos homens morreram durante o
conflito, incentivado pela Inglaterra.
No Chile (756.000 km2 e 18.000.000 de habitantes), os mapuches, descendentes
dos antigos araucanos, são aproximadamente 1.500.000.
Na Colômbia (1.140.000 km2 e 48.000.000 de habitantes) e na Venezuela
(915.000 km2 e 30.000.000 de habitantes) os ameríndios são pouco
numerosos, mas a miscigenação foi intensa. No primeiro desses
países existe uma importante minoria de afro-colombianos (quase 5
milhões).
Na Guatemala (109.000 km2 e 16.000.000 de habitantes) a maioria da
população é ameríndia, descendente dos antigos
maias, Nas Honduras (110.000 km2 e 8.700.000 habitantes; na Nicarágua
(148.000 km2 e 5.000.000 de habitantes); em El Salvador (21.500 km2 e 6.500.000
de habitantes); e no Panamá (78.000 km2 e 3.000.000 de habitantes, a
maioria é mestiça, mas a percentagem de ameríndios
pequena. Na Costa Rica (51.000 km2 e 5.000.000 de habitantes) a maioria tem
aspeto europeu, mas isso resultou do genes ibérico ter prevalecido sobre
o dos autóctones, porque a miscigenação foi intensa.
A quase totalidade da população das Antilhas Francesas (2.835 km2
e 850.000 habitantes) e da Guiana Francesa (83.000 km2 e 250.000 habitantes)
é de origem africana.
A MESTIÇAGEM E AS INTERAÇÕES CULTURAIS
Dois franceses, Carmen Bernand e Serge Gruzinski, escreveram a obra mais
importante que conheço sobre os processos de miscigenação
na América
[1]
.
Esses historiadores analisam exaustivamente os processos de mestiçagem
no Hemisfério, que diferiram muito consoante as regiões.
Chamam nomeadamente a atenção para uma realidade pouco estudada.
No México e no Peru, os conquistadores espanhóis massacraram
sistematicamente as elites que detinham o poder e o saber. Mas os
capitães peninsulares pouparam as mulheres das classes altas de
Tenochtitlan e do Incário e em muitos casos casaram com elas.
Os filhos dessas uniões foram educados como espanhóis e muitos
deles destacaram-se como pioneiros de uma nova cultura que fundia os valores da
asteca, da inca e da europeia.
É conhecido o caso de Garcilaso de la Vega, autor de uma obra
clássica da historiografia espanhola. Sua mãe era uma princesa
inca e seu pai um capitão espanhol.
Martin, o filho de Hernan Cortês e de Dona Marina, uma asteca de origem
nobre, também se distinguiu pela sua intervenção na
História.
O México gerou um notável historiador mestiço, Fernando
Alva Ixtlixochitl, descendente dos reis de Tenochtitlan e Texcoco.
A partir de meados do século XVI o nauhatl a língua mais
falada no planalto central mexicano passou a ser escrito no alfabeto
latino. As elites indígenas tiveram acesso à cultura do
Renascimento no século de ouro espanhol.
No México surgiu uma geração de escritores, músicos
e pintores mestiços cujas obras, pela criatividade e
imaginação, expressavam uma nova cultura, síntese e
fusão das autóctones e da introduzida pelos conquistadores. E
isso ocorreu também no Peru, berço de outra das grandes
civilizações do Novo Mundo, a dos incas.
Os historiadores dedicaram escassa atenção às
consequências sociais, económicas e politicas da tragédia
que do Canadá à Patagónia resultou das doenças
vindas da Europa.
No México, um século após a conquista, a
população do país era aproximadamente de um milhão
de habitantes, um décimo da existente quando Cortés entrou em
Tenochtitlan. No Peru, na Bolívia e no Equador, o despovoamento foi
similar porque os índios não tinham defesas contra epidemias como
a da varíola e a da gripe.
Transcorreu quase um quarto de século desde a publicação
do importante livro de Carmen Bernand e Serge Gruzinski. Estudos
genéticos recentes encaram a problemática das
miscigenações num período curto e sob uma perspetiva mais
cultural do que étnica.
LUZ E SOMBRAS
No início do século XIX as lutas pela independência foram
sobretudo lideradas por crioulos de grandes famílias. Miranda, Bolivar,
San Martin, Sucre, Santander, O'Higgins, José Artigas descendiam de
europeus.
Mas no México as insurreições armadas foram dirigidas por
dois sacerdotes, Miguel Hidalgo e José Maria Morelos, este um
mestiço.
O sonho de Bolivar uma América Latina unida, democrática,
progressista e verdadeiramente independente foi rapidamente desmentido
pelo rumo da História. As oligarquias que assumiram o poder governaram
despoticamente em benefício da classe dominante, descendente de
europeus. No Brasil, o príncipe D. Pedro, filho de D João VI,
proclamou-se imperador e a monarquia durou até 1889.
A ditadura foi, com poucas exceções, a forma de governo mais
comum nas repúblicas latino-americanas.
O recurso permanente a empréstimos, resultantes do desgoverno e da
estagnação económica, foi determinante para o
endividamento galopante desses países. A Inglaterra foi a potência
dominante na Região até final da I Guerra Mundial. Na Argentina e
no Chile a sua influência económica e política foi
hegemónica. A partir de 1920, o imperialismo norte-americano dominou o
Continente e multiplicou as intervenções militares em
países que não se submetiam às suas exigências
(México, Nicarágua, Haiti, República Dominicana,
Panamá, Granada, entre outros).
DA REVOLUÇÃO CUBANA À CRISE DO PROGRESSISMO
A vitória da Revolução Cubana em 1958 gerou uma grande
esperança na América Latina. A década de 60 ficou
assinalada pela convicção de que era possível tomar o
poder através da luta armada e implantar o socialismo em países
de capitalismo dependente, semi colonizados pelos EUA. Na Venezuela, no Peru,
na Argentina, na Guatemala, na Nicarágua, em El Salvador
organizações revolucionárias pretensamente marxistas,
inspiradas pela experiência de Cuba, recorreram à guerrilha rural,
como estratégia de combate ao imperialismo. A trágica morte do
Che na Bolívia sepultou duramente essa ilusão romântica. As
guerrilhas foram derrotadas militarmente na maioria desses países. Em El
Salvador um compromisso patrocinado pelos EUA pós fim ao conflito
armado. Na Nicarágua a Frente Sandinista de Libertação
Nacional chegou ao poder em 1979, derrubando a ditadura de Somoza, mas perdeu-o
em 1990 pela via eleitoral.
A grande e inesperada exceção teve a Colômbia por
cenário. A sobrevivência há mais de meio século das
Forças Armadas Revolucionarias da Colombia-Exército do Povo
demonstrou que em condições históricas, politicas e
económicas excecionais era possível desencadear e manter a luta
armada contra o Exército mais numeroso e bem armado da América
Latina. As FARC-EP são aliás uma guerrilha-partido que se assume
como marxista-leninista.
Com a derrota norte-americana no Vietnam e da França na Argélia
acentuou-se o desprestígio do imperialismo em escala mundial. A
solidariedade da URSS aos movimentos de Libertação na
África e na Ásia afetou também duramente a
estratégia de dominação norte-americana.
A eleição de Salvador Allende no Chile, o advento no Peru e na
Bolívia dos governos progressistas dos generais Velasco Alvarado e Juan
José Torres e a resistência vitoriosa da Revolução
Cubana renovaram a esperança nos países a sul do Rio Bravo.
Mas o imperialismo norte-americano, que alcançara uma grande
vitória no Brasil com o golpe militar de 1964, que derrubou o presidente
João Goulart, retomou a iniciativa na América Latina. Washington
contribuiu decisivamente para a preparação e o êxito da
contrarrevolução chilena; Kissinger confirmou-o nas suas
memórias.
No resto do Hemisfério, a derrota das guerrilhas rurais e urbanas
permitiu a consolidação de uma série de ditaduras, no
Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Paraguai, na Bolívia, nas Honduras,
no Haiti, na Guatemala, na Nicarágua.
Os EUA apoiaram esses regimes que se submeteram docilmente às
exigências do Banco Mundial e do FMI, adoptando políticas
neoliberais ortodoxas, inspiradas no modelo chileno imposto por Pinochet.
O resultado foi desastroso. Para as economias latino-americanas os anos 80
foram "a década perdida".
Não há em qualquer país da Região com
condições subjetivas para um choque frontal dos povos com o
imperialismo estadounidense.
Mas o aumento torrencial da contestação social ao neoliberalismo
do México à Argentina alarmou Washington. Gradualmente retirou o
seu apoio às ditaduras, consciente de que esses regimes não
favoreciam já os seus interesses. Mudou de tática.
No Brasil e no Chile foram eleitos presidentes que condenaram os regimes
militares. Na Argentina, o povo insurgiu-se contra a política de Menem,
o país entrou em bancarrota e, após prolongada crise, Nestor
Kirchner sobiu à presidência e iniciou uma política
populista com um discurso anti neoliberal.
Mas foi na Venezuela que, inesperadamente, um militar, o coronel Hugo
Chávez, venceu com ampla maioria as eleições em 1999.
Derrotou um golpe de estado em 2002 (apoiado e financiado pelos EUA) e um
lock-out contrarrevolucionario, venceu sucessivas eleições e
morreu como presidente em 2013.
Inspirado em Bolivar, desenvolveu uma política que gradualmente o
confrontou com os EUA, sobretudo a partir do momento em que declarou a
opção socialista da Revolução Bolivariana.
Mas apesar da nacionalização real do petróleo fonte
principal do PIB e da reforma agrária, a Venezuela continuou a
ser uns pais capitalista com o sector privado a controlar áreas chaves
da economia e dos serviços.
A ideologia do regime, o chamado Socialismo do século XXI, foi mais um
slogan do que uma realidade, até porque o Partido Socialista Unido da
Venezuela (PSUV) é uma organização heterogénea,
distanciada do marxismo.
Nicolas Maduro, o atual presidente, carece do carisma de Chávez. A
oposição venceu as eleições legislativas, conta com
ampla maioria no parlamento, e a situação económica
degrada-se a cada semana. O futuro da Revolução Bolivariana
é muito preocupante.
Dificilmente o regime progressista da Bolívia que se caracteriza
por contradições complexas poderia sobreviver a um
regresso ao poder da direita em Caracas.
Os Estados Unidos encontram-se no momento na ofensiva em toda a América
Latina. James Petras tem chamado insistentemente a atenção para
essa realidade, criticando o otimismo irresponsável de muitos
intelectuais progressistas.
O Brasil atravessa uma crise muito profunda de desfecho imprevisível. Na
Argentina, Macri, o sucessor de Cristina Kirchner, executa uma política
de direita de submissão total aos Estados Unidos.
Washington renunciou aos golpes de estado tradicionais, promovidos por
militares. A tática agora é outra. Obama o presidente dos
EUA mais perigoso para a humanidade das últimas décadas
incentiva e financia golpes institucionais através dos parlamentos para
afastar presidentes incómodos.
Isso aconteceu nas Honduras e no Paraguai.
As próprias FARC-EP que desafiam há 60 anos numa luta
épica, a oligarquia colombiana, tutelada pelo imperialismo americano,
enfrentam hoje problemas que suscitam legitimas interrogações
quanto ao desfecho dos Diálogos de Paz com o governo de Juan Manuel
Santos. O Acordo de Cessar fogo foi assinado por ambas as partes. Mas
será viável na prática a chamada
"reconciliação" nos termos em que foi discutida, com o
aval do secretariado do Estado-Maior Central da organização
revolucionária? Mas seja qual for o desfecho do processo de paz, o
combate épico das FARC-EP será recordado como exemplo maravilhoso
da eterna luta do homem pela liberdade.
Cuba é hoje o último baluarte revolucionário que
detém o poder na América Latina. Mas o restabelecimento de
relações diplomáticas com os EUA ao nível de
embaixadores justifica apreensões. O bloqueio persiste, assim como a lei
do ajuste cubano, e a entrada de capitais americanos no país e de
centenas de milhares de turistas é encarada com compreensível
temor por muitos dirigentes do Partido, tal como as medidas mercantis aprovadas
pelo último congresso do PC de Cuba.
Não exagera o Partido Comunista do México num documento do seu
Comité Central datado de Fevereiro p.p. ao afirmar (
http://www.odiario.info/america-crise-do-capitalismo-crise-do/
) que na América Latina "temos um panorama no qual a crise do
progressismo favorece a reinstalação da
contrarrevolução e, além disso, em que o progressismo,
auxiliado por partidos comunistas de prestígio, está à
condenar a crítica revolucionária".
Os Acordos de Havana, assinados pelo comandante chefe das FARC e pelo
presidente da Colômbia são preocupantes. Significativamente foram
festejados pela direita na Europa e na América Latina.
Gostaria de ser otimista, mas a situação existente na
América Latrina, impõe-me o dever de ser realista.
Vila Nova de Gaia, Julho de 2016
[1]
Carmen Barnand e Serge Guzinski, Histoire du Nouveau Monde-Métissages,
Ed. Fayard, Paris, 1993
O original encontra-se em
http://www.odiario.info/america-latinada-ficcao-a-realidade/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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