Globalizar a luta em defesa da humanidade
por Miguel Urbano Rodrigues
[*]
O fracasso da farsa eleitoral montada no Iraque representou uma derrota
política para o imperialismo estadunidense.
O enorme poder de desinformação da gigantesca máquina
mediática dos EUA não consegue esconder que 150 mil soldados do
exército de ocupação estavam nas ruas das grandes cidades
do centro e do sul onde a comparência às urnas foi mais elevada.
Mas durante o dia bombas explodiram por todo o pais. Pela manhã a
embaixada dos EUA foi bombardeada.
Ao apresentar a farsa como vitória da democracia e da liberdade, George
Bush comportou-se como personagem de Kafka.
O rumo da história nos próximos anos será marcado por uma
evidência: a guerra do Iraque é uma guerra perdida para o sistema
de poder imperial neofascista que aspira ao domínio perpétuo
sobre a humanidade.
As mudanças cosméticas introduzidas na Alta
Administração no início do segundo mandato de George Bush
foram acompanhadas de uma ofensiva de propaganda pouco inteligente com o
objectivo de persuadir a opinião pública internacional de que
algo de fundamental seria alterado na estratégia imperial. Analistas
próximos da Casa Branca, para promover a confusão, falam do
advento de um «Novo Bush». Mas essas ridículas manobras
deixam transparecer o desespero da extrema-direita estadunidense.
O discurso contraditório da senhorita Condoleeza Rice
ameaças a uns e sorrisos para outros confirma, aliás, que
a irracionalidade e o messianismo persistem na condução da
estratégia de um sistema de poder cujo símbolo é um
político colocado na Presidência dos EUA precisamente pela sua
indigência mental.
O conceito de solidariedade dos países desenvolvidos ficou aliás
bem iluminado pela atitude assumida perante a tragédia de Dezembro na
área do Índico. O total da ajuda material dos EUA aos
países golpeados pelo tsunami (saldo de quase 300 mil mortos e
destruições incalculáveis) não atingiu mil
milhões de dólares. Semanas depois, Bush pedia ao Congresso mais
85,1 mil milhões de dólares para gastos suplementares com a
guerra.
EM DEFESA DAS FARC-EP
Importantes frentes de luta na América Latina são as da
solidariedade com a insurgência colombiana e a Revolução
Bolivariana da Venezuela. Tem faltado gente disponível para o combate
na primeira delas.
Este Seminário da PT é um dos poucos eventos internacionais onde
é possível hoje falar em defesa da organização
revolucionária de Manuel Marulanda e do ELN.
Devemos reconhecer o óbvio. O governo de Washington conseguiu nos
últimos anos, através de pressões ilegítimas e de
uma ininterrupta campanha de calúnias, satanizar a insurgência,
dificultando a solidariedade.
As FARC-EP são o alvo principal. Os processos mais abjectos foram
utilizados por George Bush e pelo Departamento de Estado, incluindo a chantagem
económica, para que a União Europeia incluísse as FARC na
lista de organizações terroristas. Desde então os seus
membros somente podem movimentar-se clandestinamente no Velho Mundo.
Álvaro Uribe, um presidente neofascista, pôs a prémio a
cabeça dos principais dirigentes das FARC-EP. O poder de
intimidação é tão forte que alguns partidos
comunistas cessaram os contactos com as FARC.
No Continente americano o panorama não é muito diferente. Os
companheiros das FARC foram expulsos dos países onde mantinham
delegações. Foi o que ocorreu aqui, no México, onde Fox
cedeu ao ultimato de Bush.
Neste contexto é muito positivo que 50 Partidos Comunistas reunidos em
Atenas no XVII Congresso do PCG tenham assinado um protesto contra o sequestro
do comandante Rodrigo Granda e a extradição para os EUA do
comandante Simon Trinidad. A iniciativa fortalece a corrente da
solidariedade.
Na Colômbia o imperialismo e a oligarquia por ele financiada e armada
enfrentam uma situação diferente de qualquer outra. A
existência ali de importantes organizações guerrilheiras
constitui um pesadelo para o Pentágono. A luta das FARC sobretudo
confirma que em circunstancias históricas, geográficas e sociais
excepcionais, a luta armada continua a ser possível na América
latina. Há muitos anos que a oligarquia colombiana anuncia o fim do
movimento-partido de Manuel Marulanda. Mas os factos desmentem essa
afirmação. Nestas quatro décadas o núcleo inicial
de 47 guerrilheiros, de Marquetália, transformou-se num exército
popular de 17 mil combatentes que luta em 60 frentes, infligindo duras derrotas
às mais poderosas forças armadas da América Latina (quase
300 mil homens). Periodicamente, generais com comandos operacionais
importantes têm sido demitidos, o que é esclarecedor.
O Plano Patriota, integrado no Plano Colômbia, fracassou como os
anteriores. Em Fevereiro, contra-atacando em Departamentos diferentes,
sobretudo no Meta, no Caquetá, no Putumayo e em Nariño, as FARC
abateram dezenas de soldados e marines em combates vitoriosos.
Neste contexto, o imperialismo e Uribe (que tinham organizado com êxito o
sequestro do comandante Simón Trinidad) montaram a
operação do sequestro em Caracas do comandante Ricardo Gonzalez
(Rodrigo Granda), responsável pelas Relações
Internacionais das FARC-EP.
Mas Hugo Chavez não é Lúcio Gutierrez. A
violação da soberania venezuelana pelos serviços de
inteligência colombianos, com muitas cumplicidades, incluindo a da CIA,
provocou um escândalo internacional maiúsculo. Washington
pretendia criar um sério choque entre a Venezuela e a Colômbia
utilizando o seu fiel aliado Uribe Vélez. Mas a manobra fracassou.
Companheiros
Identifico no comandante Ricardo Gonzalez um dos revolucionários mais
puros e autênticos que conheci na minha longa vida. É o tipo de
comunista que me traz à memória os bolcheviques da
geração de Outubro, companheiros de Lenine. Entrevistei-o mais
de uma vez.
A ultima delas antes do sequestro. Foi convidado por ele que em Junho de 2001
passei algumas semanas em acampamentos das FARC numa inesquecível
experiência que me permitiu conhecer o quotidiano da guerrilha e a
comandantes como Marulanda e Raul Reyes, e escrever sobre essa
legendária organização de combatentes, tão
caluniada, a qual, pelo heroísmo, efectivos e firmeza ideológica
somente encontra precedente no Vietnam de Ho Chi-min e Giap.
Sair nestes dias em defesa de Ricardo Gonzalez para exigir a sua
libertação assim como a de Simón Trinidad
é assumir o lema do Encontro de Caracas em Defesa da Humanidade.
O DESAFIO VENEZUELANO
Creio haver entre nós, aqui reunidos, consenso no tocante à
necessidade de ampliar a solidariedade com a Revolução
bolivariana.
A grande maioria do povo da Venezuela comporta-se hoje como uma vanguarda que
encarna aspirações não somente dos povos da América
Latina como de quantos lutam por uma independência real e por valores e
princípios ameaçados pela estratégia imperial de
dominação planetária.
A Venezuela emerge hoje, num mundo trágico e caótico, como um
fascinante laboratório social no qual se desenvolve uma luta de classes
como não se conhecia desde as revoluções russas de 1917.
Na pátria de Bolívar e Ezequiel Zamora foi retomado um velho
desafio: transformar radicalmente a sociedade e libertá-la da
dominação imperialista optando pela via pacífica, isto
é, utilizando para o efeito as instituições criadas pela
burguesia para servir os seus objectivos, incompatíveis com os do
projecto revolucionário.
Os êxitos alcançados por Chavez não devem, porém,
levar a uma subestimação das dificuldades que se multiplicam e
renascem, inseparáveis da própria dialéctica das
vitórias parciais. O desafio é tremendo porque a burguesia, ao
fim e ao cabo, não entrega nunca o poder sem luta. Há limites
para a via dita pacifica.
A vitória por ampla margem de Chavez no referendo revogatório,
após uma campanha em que a oposição, estimulada e
financiada pelo imperialismo, desceu a níveis de perversão
incomuns, foi um acontecimento de significado mundial. O povo venezuelano,
assumindo mais uma vez o papel de sujeito da historia, voltou a derrotar as
forças unidas da oligarquia crioula e do imperialismo. Sem a sua
participação decisiva não teria sido possível o
triunfo na confrontação com a engrenagem golpista que pretendia
tal como no golpe de 11 de Abril de 2002 e no
lock out
petrolífero derrubar o presidente Chavez e destruir a
Revolução bolivariana.
O Encontro Mundial de Intelectuais em Defesa da Humanidade abriu as portas em
Caracas ao aprofundamento da solidariedade dos povos com a
Revolução bolivariana.
Um alerta, companheiros. O interesse despertado pela Revolução
bolivariana não é acompanhado em dezenas de países pelo
conhecimento do quadro político e social existente quando Chavez
conquistou a Presidência e dos factos ligados à cadeia de
conspirações posterior. A própria expressão
Revolução bolivariana gera ainda perplexidade. Na Europa, nos
EUA, na Ásia e na África, Bolívar continua quase um
desconhecido, não obstante ser um gigante na história.
Hugo Chavez tem afirmado repetidamente que a Revolução
bolivariana não é, contrariamente ao que ocorreu com a chilena,
uma revolução desarmada. Essa evidencia não deve,
contudo, levar-nos a esquecer que mais de uma centena de oficiais superiores
das forças armadas estiveram directa ou passivamente envolvidos no
golpe de Abril de 2002.
O sequestro do comandante Ricardo Gonzalez das FARC em pleno centro de
Caracas, com a provada cumplicidade de polícias venezuelanos, envolve
um convite à reflexão.
O muito que se fez até agora na Venezuela é insuficiente
sejamos realistas para que a Revolução possa atingir as
suas metas. É longo e semeado de obstáculos o caminho a
percorrer.
Rodolfo Sanz, cientista político e dirigente do Partido Pátria
para Todos escreve no seu livro
Dialéctica de una Victoria
que uma segunda assembleia constituinte será necessária para
«transformar a estrutura do Estado, para derrubar o que permanece em
pé do antigo aparelho da IV Republica». O governo não
controla a totalidade do Estado, nomeadamente em sectores cruciais como a
Educação. O Poder Judicial em momentos decisivos assumiu uma
posição hostil.
No Encontro Mundial de Intelectuais Chavez radicalizou o discurso, anunciando
que a revolução entrou numa nova fase.
Os factos confirmam essa tomada de posição. Entretanto, a
agressividade do imperialismo para com o governo de Chavez acentuou-se. Nas
suas críticas à Revolução bolivariana Condoleeza
Rice viola ostensivamente as normas internacionais que regulamentam as
relações entre estados soberanos.
István Meszaros lembra-nos que Washington tem adoptado sempre uma
atitude de hostilidade perante todos os processos revolucionários que
desde o final da II Guerra Mundial fixaram como objectivo a
introdução de
mudanças estruturais radicais
na ordem capitalista anterior.
O projecto transformador da Unidade Popular no Chile era inaceitável
para os EUA porque ameaçava o capitalismo.
Julgo útil recordar aqui que a Revolução Portuguesa de
Abril de 74 também foi identificada em Washington como ameaça ao
sistema. O imperialismo estadunidense e a social-democracia europeia uniram
esforços para a travar. Nesse caso não foi necessário
recorrer ao golpe de estado para impedir o seu avanço porque o Partido
Socialista de Mário Soares cumpriu o papel que lhe distribuíram,
contribuindo decisivamente para a ruptura da unidade entre a vanguarda militar,
o MFA, e o movimento popular, o que mudou a correlação de
forças em beneficio da direita. Merece reflexão a hostilidade
que políticos como o sueco Olaf Palme e o alemão Willy Brandt
demonstraram desde o inicio para com a Revolução Portuguesa.
Pela sua solidariedade com processos como o da Revolução
Sandinista e a sua repulsa pela ditadura de Pinochet tinham adquirido a imagem
de políticos progressistas. Mas a sua solidariedade em Portugal, pais
europeu, beneficiou ostensivamente partidos como o PS e o PSD, promotores da
contra-revolução. A ameaça ao capitalismo, que
identificavam em Portugal, alarmou-os. Ambos compreenderam que a
Revolução Portuguesa, com uma reforma agrária radical e a
nacionalização da banca e das indústrias
estratégicas, era a mais profunda ocorrida na Europa Ocidental, desde a
Comuna de Paris.
Hoje, Washington não esconde a sua satisfação perante o
rumo capitulador adoptado no Brasil pelo governo de Lula e não manifesta
inquietação relativamente à política de Kirchner
na Argentina. Em ambos os casos, a «ordem social» preexistente
não é posta em causa pelas políticas de dirigentes que
ignoram os compromissos assumidos com o povo.
O grande medo que a Venezuela inspira resulta precisamente da fidelidade de
Chavez ao compromisso popular. A Revolução Bolivariana é
vista por Bush como ameaça ao sistema capitalista. O projecto, embora
não se defina ainda como socialista está orientado para uma
mudança estrutural radical.
[*]
Excerto da introdução e dos capítulos dedicados às
lutas na Colômbia e na Venezuela na comunicação do autor ao
Seminário Internacional do Partido del Trabajo
LOS PARTIDOS Y LA NUEVA SOCIEDAD
a realizar na capital do México de 4 a 6 de Março de 2005.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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