Com a crise, lutas sociais tendem a se intensificar
por Miguel Urbano Rodrigues
entrevistado por Nilton Viana
[*]
A ÚNICA alternativa para o capitalismo senil, que ameaça conduzir
a humanidade ao abismo, é o socialismo. Essa é a
convicção do jornalista e escritor português Miguel Urbano
Rodrigues. Em entrevista exclusiva ao
Brasil de Fato,
Urbano fala sobre a grave crise desencadeada a partir do Império
estadunidense, que já provoca efeitos perversos em todo o mundo. Ele
vislumbra um futuro próximo de grandes sofrimentos para a humanidade,
sofrimentos que, segundo Urbano, serão diferentes de continente para
continente, de país para país, como diferentes serão as
características da luta dos povos contra o sistema que continuará
a impor-lhes a sua dominação. É categórico ao
afirmar: os trabalhadores vão pagar a maior fatura dessa crise. Mas
é otimista. Para ele, grandes movimentos de massa devem surgir,
principalmente nos países da União Européia e nos Estados
Unidos.
Brasil de Fato O mundo inteiro vive um drama com a crise financeira
desencadeada a partir do centro do império. Tem se dito que essa crise
ainda está apenas começando e que ela tende a se agravar. Na sua
avaliação, qual é a dimensão dessa crise? É
apenas mais uma das tantas que o capitalismo já produziu? O
neoliberalismo foi derrotado?
Miguel Urbano Rodrigues Esta crise é estrutural, e não
cíclica como as anteriores. Do sistema financeiro, alastrou para a
economia real, e dos Estados Unidos, passou à Europa e à
Ásia Oriental. Ela tende a agravar-se muito. E o seu desfecho é
por ora imprevisível. Uma certeza: o neoliberalismo, glorificado como a
ideologia definitiva que assinalaria "o fim da História",
fracassou. Hayek [Friedrich August von Hayek] é enterrado e Keynes [John
Maynard Keynes] ressuscita.
BF: O senhor disse que se trata de uma crise estrutural. As medidas anunciadas
até agora alteram a atual estrutura desse processo?
MUR: Por ser uma crise estrutural, e não apenas cíclica como as
anteriores confirmando previsões de autores marxistas como
István Mészaros e Georges Labica , as medidas tomadas pelos
governos do G-8, transformados em bombeiros do capital, são apenas
paliativos. A recuperação das bolsas e do dólar geram a
ilusão de que tudo vai voltar rapidamente à normalidade,
entendida esta como um reflorescimento do capitalismo sob um novo figurino. Tal
convicção é enganadora. A economia real nos EUA, no
Japão e na União Européia vai continuar a afundar-se em
proporções no momento imprevisíveis. Os despedimentos
maciços em dezenas de gigantescas transnacionais, os apelos angustiados
dos grandes da indústria automóvel e aeronáutica à
ajuda estatal e o encerramento de milhares de empresas ligadas à
construção e ao comércio funcionam como espelho da
gravidade e complexidade de uma crise de muito longa duração.
BF: O senhor acredita que os Estados Unidos, como potência imperialista,
saem derrotados dessa crise ou se fortalecem ainda mais?
MUR: Os Estados Unidos, pólo hegemônico do sistema do capital,
saem enfraquecidos. Mas enquanto o atual sistema monetário subsistir,
com o dólar como moeda de referência mundial, os custos da crise
serão distribuídos. Os Estados Unidos são o país
mais endividado do mundo (a dívida já iguala o PIB do
país). Mas o privilégio de emitir a moeda em que é
faturado o petróleo o produto-chave no comércio
internacional tem adiado um desfecho de bancarrota.
Um sistema midiático perverso e desinformador, dominado no fundamental
por grandes transnacionais estadunidenses, ocultou, por exemplo, que grande
parte do chamado "resgate" de 700 bilhões de dólares
será pago por países da Ásia, nomeadamente a China e o
Japão, principais compradores dos Títulos emitidos pelo Tesouro
dos Estados Unidos. Somente a China possui cerca de 1.300 bilhão de
dólares em reservas e bônus do Tesouro. Se os trocassem por outras
moedas, os EUA iriam à falência. Mas a China também, porque
a sua economia depende muito das exportações para os Estados
Unidos.
BF: Que avaliação o senhor faz das conseqüências desse
cenário para a América Latina?
MUR: No momento, a maioria das previsões sobre as
conseqüências da crise para a América Latina são no
fundamental do domínio da especulação. Mas essas
conseqüências serão certamente graves. Os Estados Unidos
são o principal mercado para as exportações da
América Latina, em alguns casos com mais de 50%. No plano
político, a estratégia de Washington terá de ser revista.
É previsível uma redução da agressividade contra a
Venezuela bolivariana e contra o governo de Evo Morales (Bolívia). As
manobras conspirativas persistirão, mas a nova
administração utilizará outra linguagem.
BF: Em todo o mundo, temos a impressão de que a classe trabalhadora
está apenas assistindo a crise. O senhor compartilha da idéia de
que vivemos um perído de descenso do movimento de massa e essa crise
veio num momento muito ruim para os trabalhadores?
MUR: É minha convicção de que, pelo contrário, as
lutas sociais tendem a intensificar-se, sobretudo nos países da
União Europeia e nos Estados Unidos, porque os trabalhadores vão
pagar a fatura maior da crise. O movimento de massas ganha amplitude na Europa.
Por exemplo, no dia 8 de novembro, 120 mil professores (80% da categoria
profissional) desfilaram em Lisboa, Portugal, protestando contra a
política educacional do governo reacionário de Sócrates.
BF: Como em toda crise, há sempre saídas. As elites já
estão tratando de encontrar suas saídas. Quais os rumos que a
esquerda deve buscar?
MUR: A situação é dilemática porque todas as
saídas são, na aparência, más. A única
alternativa para o capitalismo senil, que ameaça conduzir a humanidade
ao abismo, é o socialismo. Mas o capitalismo não vai acabar em
data próxima, e o socialismo é, por ora, aspiração
distante. As tentativas orientadas para a humanização do
capitalismo (como é o caso de governos como o Lula, no Brasil; os
Kirchner, na Argentina; Tabaré, no Uruguai) são perversas, por
enganarem o povo com a cumplicidade de forças e partidos progressistas.
Vão fracassar. Grandes sofrimentos essa é outra certeza
esperam a humanidade no futuro próximo. Sofrimentos que
serão diferentes de continente para continente, de país para
país, como diferentes serão as características da luta dos
povos contra o sistema que continuará a impor-lhes a sua
dominação.
BF: Nesses períodos de crise, quem paga a conta são sempre os
trabalhadores. Teremos novamente de pagar a conta? O senhor acredita ser
possível unir os proletários do mundo e encontrar saídas
ou as soluções tendem a ser isoladas?
MUR: A crise coloca os povos por ela atingidos, nomeadamente na Europa
Ocidental, perante uma situação dilemática. A
relação de forças, da Suécia à
Itália, de Portugal à Grécia, não abre a
possibilidade de que a crise atual desemboque em rupturas
revolucionárias. Mas, simultaneamente, a transformação
profunda das sociedades da União Européia, moldadas e oprimidas
pelo capitalismo, não é possível pela via institucional,
dita pacífica. A burguesia nunca entrega o poder sem uma
confrontação final com as forças do progresso. Sejamos
realistas.
No caso português, fora do contexto de uma crise de
proporções continentais, os partidos que representam o capital
continuarão a vencer todas as eleições. A
alternância no governo do PS e do PSD ilustra bem o controle que a classe
dominante exerce sobre os mecanismos eleitorais da impropriamente chamada
democracia representativa, que na prática funciona como ditadura da
burguesia com máscara democrática. A crise do sistema financeiro
mundial adquiriu as proporções de uma crise de
civilização que atinge toda a humanidade. O seu desfecho é
por ora imprevisível. A única certeza é a de que milhares
de milhões de pessoas vão pagar a fatura da falência do
capitalismo neoliberal e da ideologia a ele subjacente, enquanto os
responsáveis pela crise pouco ou em nada serão afetados, no
imediato, pelo naufrágio da monstruosa engrenagem por eles montada.
BF: Em momentos como estes, o que fazer?
MUR: Lutar, lutar com energia redobrada. Não são apenas a
falência do sistema financeiro mundial, a recessão que alastra nos
países do G-7, o encerramento de milhares de empresas em dezenas de
países, que iluminam a gravidade e a fragilidade da crise estrutural do
capitalismo. O sistema do capital dispõe de uma força enorme. Mas
não pode mais funcionar de acordo com a sua lógica. Os EUA,
pólo e motor do sistema, estão envolvidos em duas guerras
perdidas no Oriente Médio e na Ásia Central. Na América
Latina, desenvolvem-se processos de ruptura com a dominação
imperial. Na Europa, anunciam-se num horizonte próximo grandes lutas
inseparáveis das conseqüências da crise, que vai
lançar milhões de trabalhadores no desemprego. No movimento da
História, a maré da contestação ao sistema tende a
subir. Da luta dos povos, da fusão do particular e do geral, do nacional
e do universal, depende que essas lutas adquiram um carácter torrencial,
assumindo com o tempo dimensão planetária numa atmosfera de
internacionalismo dinamizado pelas organizações e partidos
revolucionários.
BF: Como jornalista, como o senhor tem acompanhado a cobertura da mídia
sobre a crise?
MUR: O sistema midiático apresenta uma frente única na
difusão da mentira, nas explicações falsas da crise e nos
remédios propostos para resolvê-la, todos orientados para a
preservação do capitalismo. No discurso de sociólogos,
economistas, historiadores, ministros e parlamentares chamados à
televisão para esclarecer a "massa ignorante" da
população, o povo não aparece como personagem. Está
ausente. Os porta-vozes e epígonos caseiros do grande capital,
cúmplices do caos financeiro e social que alastra pelo mundo, desprezam
os trabalhadores. O panorama social da crise não é iluminado pela
mídia, porque isso seria perigoso para os senhores da finança.
BF: Nos Estados Unidos, Obama acaba de ganhar as eleições
presidenciais. Como o senhor analisa essa vitória e o que pode mudar com
o novo presidente?
MUR: É positivo que o povo estadunidense tenha optado por Obama, um
presidente negro, com um discurso muito diferente do de seu adversário
republicano. Mas não participo da euforia gerada em nível mundial
pela vitória de Barack Obama. É um grande orador e um
político hábil e inteligente. Mas aparece-me também como o
produto de uma gigantesca e milionária campanha de marketing eleitoral.
Não esqueçamos que Obama foi o candidato da Finança, dos
grandes grupos transnacionais.
As suas primeiras iniciativas não justificam o entusiasmo que por
aí vai. Para chefe de gabinete na Casa Branca, designou já um
falcão, sionista, ex-voluntário na guerra do Golfo, um belicista
inflamado. Obama afirma pretender "ganhar" a guerra do
Afeganistão, defende uma política agressiva contra o Irã,
afirma que manterá o bloqueio a Cuba. O vice Joe Binden antecipou uma
evidência ao afirmar que as primeiras medidas do futuro presidente
serão "muito impopulares". Alguns dos assessores são
republicanos de direita e clintonianos conservadores. A
designação de Madeleine Albright como sua representante na
Conferência dos 20 (G-20) é inquietante. Temo que Obama seja uma
grande decepção para a humanidade progressista.
[*]
Director do semanário
Brasil de Fato,
editado em S. Paulo.
O original encontra-se em
Brasil de Fato,
edição 299, 20-26 de novembro de 2008, pg. 11.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
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