O significado do trabalho: Uma perspectiva marxista
O texto que se segue, é uma reconstrução a partir de
anotações de uma apresentação ao Terceiro
Diálogo Norte Americano Cristão-Marxista, em Maio de 1982, no
Seminário Teológico de Wesley, Washington, D.C. Na sessão
de abertura, onde ocorreu esta apresentação, uma perspectiva
cristã foi apresentada por monsenhor George Higgins.
Pode-se esperar que os marxistas tenham poucas discordâncias sobre o
significado do trabalho no passado e no presente. O mesmo não se pode
dizer, entretanto, acerca do trabalho no futuro. Uma vez que irei falar acerca
do trabalho sob o socialismo e o comunismo, sob uma perspectiva
histórica, o que vou apresentar aqui é
uma
perspectiva marxista, não
a
perspectiva marxista.
Um bom exemplo de como as interpretações subjectivas e os
preconceitos de classe podem influenciar a visão individual de uma
sociedade socialista encontra-se na novela utópica outrora popular de
Edward Bellamy,
Looking Backward.
Este livro apareceu em 1888, no meio de um período de rápida
industrialização, concentração crescente de poder
económico e luta de classes violenta. Bellamy imaginou que a
construção de trusts da sua época acabaria finalmente por
levar à concentração de todo o capital nas mãos de
uma única corporação gigante. Isto simplificaria a
mudança de propriedade de todos os meios de produção para
o estado, o qual aplicaria então regras racionais, para criar uma
sociedade bem ordenada e igualitária. Tal cenário de uma
transição indolor, pacífica, e a concepção
de uma ordem social justa, prendeu a imaginação do público
aqui e no estrangeiro. Nada desde o romance
Uncle Tom's Cabin
teve uma influência tão grande neste país. Milhões
de exemplares do livro foram vendidos, muitos leitores foram convertidos a
formas de pensamento socialistas, "Bellamy Clubs" brotaram por todo o
lado, e as ideias expressas no livro contribuíram fortemente para o
programa do Partido Populista.
Bellamy utilizou um artifício literário simples e agora familiar
para apresentar a sua utopia. O herói, Julian West, emerge de um sono
hipnótico no ano 2000 para descobrir-se nuns Estados Unidos em que as
classes, a exploração e o dinheiro haviam desaparecido e onde
todos desfrutavam dos padrões de vida das camadas médias
acomodadas da Boston do século XIX. Como West estava no novo mundo, o
leitor aprendia como uma boa sociedade teria sido alcançada e como
funcionava.
O que é relevante para a presente discussão é o modo como
Bellamy tratou o trabalho na sua utopia, uma vez que ele transporta para o seu
sonho sobre o futuro as atitudes características da burguesia em
relação ao trabalho e ao lazer. O trabalho é um fardo.
Idealmente, deveria ser evitado. Mas se isso não for possível,
deveria ser ultrapassado na vida o mais cedo possível, de modo a que o
máximo tempo de vida das pessoas pudesse ser desfrutado no lazer.
Assim, em
Looking Backward,
toda a gente é obrigada incorporar-se ao exército do trabalho
aos 21 anos, laborando em tarefas de "interesse comum" durante os
primeiros três anos. Posteriormente seriam livres para escolher uma
ocupação, sujeita a algumas restrições do governo.
O trabalho obrigatório acaba aos 45 anos, começando então
um novo período de boa vida para damas e cavalheiros cultivados.
Para sermos justos devemos dizer que Bellamy não denigre o trabalho como
tal. É a sua concepção do lazer que tipifica a
mentalidade da burguesia na sociedade capitalista e nas classes superiores ao
longo de história. Adam Smith, o grande teórico da economia
capitalista, é muito mais explícito quando, num contexto
diferente, define trabalho como uma actividade que exige ao trabalhador que
desista "da sua tranquilidade, liberdade e felicidade". O
salário, de acordo com Smith, é a recompensa que o trabalhador
recebe pelo seu sacrifício. Como é totalmente diferente a
perspectiva marxista! Veja-se o profundo desprezo de Marx, relativamente a
esta atitude negativa de Smith para com o trabalho:
"O teu trabalho será medido pelo suor do teu rosto"! Era a
maldição de Jeová sobre Adão. E isto é o
trabalho para Smith, uma maldição. A "tranquilidade"
surge como o estado adequado, como idêntica à
"liberdade" e à "felicidade". Parece bastante
afastado do pensamento de Smith que o indivíduo, "no seu estado
normal de saúde, força, actividade, habilidade e destreza",
necessite também do dispêndio normal de um número de horas
de trabalho, e da interrupção da sua tranquilidade. É
certo que o trabalho é medido exteriormente, pela
adequação dos objectivos atingidos e pelos obstáculos a
superar na procura desses objectivos. Mas Smith nem suspeitava que a
superação de obstáculos constituísse, em si mesma,
uma actividade libertadora, e que, por outro lado, os objectivos
externos fossem estabelecidos a partir das urgências naturais e meramente
externas, tornando-se assim em objectivos do próprio indivíduo
daí a auto-realização, a objectivação
do assunto, daí a verdadeira liberdade, cuja acção
é, precisamente, o trabalho. Ele tem de facto razão, em que o
trabalho nas suas formas históricas, tais como o trabalho escravo, o
trabalho servil e o trabalho assalariado, aparece sempre como algo repulsivo,
sempre como
trabalho forçado por causas externas;
em oposição, e por contraste, ao trabalho como forma de
"liberdade e felicidade". Isto é duplamente válido:
para este trabalho contraditório; e, relacionadamente, para o trabalho
que ainda não criou, por si próprio, as condições
subjectivas e objectivas... pelas quais se torna trabalho atraente, uma forma
de auto realização do indivíduo, que exclui uma mera forma
de diversão ou de gozo pessoal. O trabalho realmente livre ... é
ao mesmo tempo o da mais maldita severidade e o do mais intenso esforço.
O trabalho da produção material pode assumir este
carácter apenas (1) quando seu carácter social é assumido,
(2) quando é de uma natureza científica e ao mesmo tempo de
carácter geral, não meramente um esforço humano, como uma
força natural especificamente dirigida, mas algo aparece no processo de
produção de uma forma meramente natural, espontânea, como
uma actividade que regule todas as forças de natureza. A
propósito, Adam Smith só tinha em mente os escravos do capital.
Marx e Engels, viram o trabalho como fundamental para a existência
humana. Este tema é desenvolvido por Engels, no seu ensaio inacabado
"O papel desempenhado pelo trabalho na transformação do
macaco em homem"
("The Part Played by Labour in the Transition from Ape to Man")
onde sustenta que o trabalho "é a primeira condição
básica para toda a existência humana, e isto numa tal
extensão que, em determinado sentido, nós temos de dizer que o
trabalho criou o próprio homem". Esta especulação de
Engels sobre a evolução dos seres humanos, focaliza-se na ideia
de que, caminhando em dois pés, liberta-se o uso das mãos,
tornando possível o seu desenvolvimento para tarefas mais complexas. A
especialização das mãos, em contrapartida, conduziu ao
trabalho, ao domínio sobre a natureza, e à
diferenciação das espécies humanas. O trabalho conduziu as
pessoas a uma situação em que "tinham que dizer algo uns aos
outros". Assim, com o trabalho surgiram a fala e os estímulos, que
tiveram uma influência decisiva no cérebro dos símios,
transformando-os gradualmente em seres humanos. Desenvolvimentos posteriores da
evolução, nesta direcção, conduziram à
sociedade:
Pela combinação do funcionamento das mãos, dos
órgãos da fala, e do cérebro, não só em cada
indivíduo mas também em cada sociedade, os homens tornaram-se
aptos a executar operações mais complicadas, e puderam fixar e
alcançar, para si próprios, objectivos progressivamente mais
elevados. O trabalho de cada geração modificou-se, tornando-se
melhor e mais diversificado. A agricultura foi complementada pela caça e
pela criação de gado; depois apareceram a fiação, a
tecelagem, o tratamento de metais, a cerâmica e a
navegação... comércio, indústria, arte e
ciência.*
Entretanto, com a crescente complexidade da sociedade, surgiu a propriedade
privada, a separação das pessoas em classes, e uma divisão
social do trabalho tudo isto alterou profundamente o significado do
trabalho. Diferenças no ambiente, conduziram a diferenças no
modo como as pessoas trabalhavam e nas coisas que produziam. O tipo de terra e
a disponibilidade de animais, peixe, florestas, minérios, carvão,
quedas de água, etc, influenciaram os meios de produção e
de subsistência de cada comunidade. A Natureza providenciou, igualmente,
as oportunidades e os obstáculos. Apesar destes constrangimentos, foi
no entanto o factor social que cada vez mais determinou a
organização do trabalho e a distribuição de seus
produtos.
A primeira divisão social do trabalho
Nas primeiras formas de organização social, a família e as
relações de parentesco fixaram o padrão da forma como
empreender ou nomear as diferentes tarefas. Há várias teorias
ou deveremos antes dizer especulações? sobre como
este modo de produção de baixa-tecnologia baseada nas
relações pessoais, e de produção para uso
próprio (em lugar de produção direccionada para a troca)
levou a que se desse o domínio do sistema de troca, da propriedade
privada, e de uma divisão do trabalho crescentemente rígida. De
acordo com Engels, a precoce divisão "natural" do trabalho
"eventualmente arruina a colectividade de produção e de
apropriação, eleva, em regra geral, a apropriação
de produtos por indivíduos, criando assim a troca entre
indivíduos.... Gradualmente, a produção de artigos
torna-se a forma dominante" (
Origin of the Family, Private Property and the State
[New York: International Publishers, 1972], 237). Mas seja qual for a
exactidão da sucessão destes desenvolvimentos, é claro que
a divisão do trabalho baseado na propriedade privada e a troca tornou-se
a característica dominante de vida económica.
Para Marx e Engels a primeira e decisiva divisão está entre a
cidade e o campo. Tal como expôs Marx:
Os fundamentos de toda a divisão do trabalho já bem desenvolvida,
e que surge pela troca de artigos, estão na separação
entre a cidade e o campo. Pode-se dizer que toda a história
económica da sociedade é resumida no movimento desta
antítese. (
Capital,
vol. 1 [Moscow: Progress Publishers], 333)
A diferenciação de cidade e campo surge, claro está, da
divisão entre o trabalho agrícola e o industrial e comercial.
Eventualmente outras separações acontecerão dentro das
cidades, tais como entre trabalho industrial, comercial, e actividades
financeiras. Mas o que precisa de ser entendido é que a antítese
cidade-campo abrange muito mais do que somente cidade versus quinta. Tal como
as nações evoluem, as diferenças regionais emergem e
cristalizam-se. Hoje, mesmo nos países industriais mais
avançados, os conflitos e contrastes existem entre, por um lado,
regiões que se especializaram na indústria, comércio, e
finanças, e, por outro, aquelas que se ocupam principalmente da
agricultura. Além disso, com o progresso do comércio
internacional e do império construído pela superioridade
industrial e militar das nações capitalistas, é criada uma
divisão internacional do trabalho e é reproduzida (pelo uso de
força e pelas "normais" operações do mercado)
entre os países centrais ("cidade") e os periféricos
("campo").
Para ser preciso, as novas formações sociais e os avanços
verificados nas forças produtivas alteram aspectos particulares no modo
como as pessoas são separados por especialização de
trabalho e estilo de vida. Há ainda duas características comuns
a todas as formas de divisão do trabalho social: (1) é sempre
coincidente com um jogo particular de relações
hierárquicas entre indivíduos, grupos sociais, e, em certos
períodos da história, ou das nações se
associado ao sistema patriarcal, à escravidão, às castas,
propriedades, ou classes modernas. E (2) é sempre assumido, é
amoldado, e é reproduzido por e para um grupo social dominante,
geralmente incluindo aqueles que detêm ou controlam os meios de
produção primários.
Quando a formação social opera com base na escravidão, nas
castas, na propriedade, ou nas corporações, a
distribuição das ocupações é normalmente
rigidamente controlada e tende a ser hereditária. Mas até mesmo
num ambiente de individualismo com um mercado de trabalho "livre", a
gama de oportunidades profissionais é mantida dentro de limites
estreitos. Neste tipo de sistema social, uma classe relativamente pequena de
capitalistas possuí e controla os meios de produção
principais, nos quais a maioria das pessoas procuram emprego para viver. Em
última análise, a definição dos tipos de trabalhos
disponíveis e a forma como trabalho é dividido, é
directamente ou indirectamente determinado pelo egoísmo dos donos e
gestores do capital.
A segunda divisão do trabalho
As estruturas hierárquicas que enquadram a antítese cidade/campo
vinculam a segunda principal divisão que estabelece a
perpetuação das diferenças entre as pessoas, i.e., a
separação entre as actividades mental e manual. As raízes
desta contradição e o seu reforço psicológico
radicam em tempos longínquos. Atente-se, por exemplo, como
Sócrates vê o trabalho manual e o trabalhador manual:
Aquilo que se designam de artes mecânicas, guarda em si um estigma social
e são justamente desonradas nas nossas cidades. Estas artes causam dano
aos corpos daqueles que trabalham nelas ou dos que as têm a seu cargo,
quer compelindo os trabalhadores a uma vida sedentária, quer compelindo,
na verdade, em alguns casos a passar o dia inteiro junto à fornalha.
Esta degeneração física resulta também na
deterioração da alma. Além disso, os trabalhadores nestas
actividades simplesmente não têm disponibilidade para estabelecer
amizades ou exercer a cidadania. Por conseguinte eles são vistos como
maus amigos e maus patriotas. E em algumas cidades, especialmente as militares,
não é legal a um cidadão dedicar-se a actividades
mecânicas.*
Sócrates reflecte claramente as atitudes e a ideologia dos
cidadãos livres da classe alta numa sociedade onde os escravos
estão quase na sua totalidade comprometidos com tarefas manuais. Mas a
humilhação do trabalho físico não é apenas
típica de sistemas sociais baseados em várias formas de trabalho
forçado; é comum a todas as sociedades divididas por classes.
Como explicou Veblen:
A distinção entre proezas e trabalhos penosos é uma odiosa
distinção entre empregos. Aqueles empregos classificados como
exploração são merecedores, honrados, nobres; os empregos
que não contêm o elemento proeza, e especialmente aqueles que
impliquem subserviência ou submissão, são desmerecedores,
humilhantes, ignóbeis. O conceito de dignidade, valor, ou honra,
aplicado tanto a pessoas como a comportamentos, tem como consequência
primeira o desenvolvimento de classes e as distinções de
classe.... (Thorstein Veblen,
The Theory of the Leisure Class
[New York: Random House, 1934], 15)
A "proeza" de Veblen difere do uso marxista dado a este termo. A
diferença deve-se ao facto de ele considerar um largo espectro de
actividades não-manuais. O objectivo da sua classificação
é identificar os grupos sociais "proeza" que emergem
tão rapidamente logo que os trabalhadores manuais assim consigam
produzir meios de subsistência excedentarios que suportem caciques,
fidalgos, padres, latifundiários, comerciantes, capitalistas, pessoal
militar, governadores, etc. Esclarece-se que a categoria "proeza"
neste contexto inclui muitas ocupações úteis e
não-exploradoras. Mas o que é importante é que os
elementos objectivos que criam e perpetuam divisões e subdivisões
nos trabalhadores manuais e não-manuais a propriedade privada,
as estruturas de classe exploradoras, e o estado são
reforçadas por uma psicologia social subjectiva, encorajadora e
ideológica, que separa as pessoas e o seu trabalho de acordo com graus
de inferioridade e superioridade.
Os tipos particulares de classificação alteram-se, obviamente,
com o passar do tempo. Porém, os preconceitos profundos passam
directamente de um sistema social para o outro. Por essa razão, a
submissão tradicional das mulheres relativamente aos homens e a
identificação do trabalho das mulheres dentro e fora de casa com
o trabalho penoso tem-se adequado aos interesses de muitas classes
exploradoras, até aos nossos dias. De forma semelhante, o racismo que
serviu os donos de escravos norte-americanos há mais de cem anos,
persistiu como um instrumento de opressão e discriminação,
como a principal restrição aos negros que os conduziu para
empregos mais inseguros, de baixo-estatuto, e menos remunerados.
A divisão do trabalho e a indústria moderna
As classes dominantes sempre estiveram interessadas no recrutamento, na
disciplina e na manutenção da força de trabalho. Isto
é verdadeiro tanto para as sociedades capitalistas como para as
sociedades feudais ou escravocratas. Embora nos dias de hoje o sistema
salarial possa parecer estabilizado, possa parecer até uma
instituição auto-regulada, isso deve-se a uma longa
história de luta, durante a qual, a interacção de
pressões económicas e estatais foi forjando um proletariado
dependente do salário para o seu próprio sustento. As formas
mais severas de coerção aconteceram quando as
relações capitalistas foram impostas nos territórios
coloniais. Mas a formação de um proletariado industrial nas
nações "civilizadas" também não foi um
mar de rosas:
Devido à natureza da sociedade britânica do século XVIII,
na qual surgiu o industrialismo moderno, devido à competitividade cruel
imposta pelo mercado que o simples produtor tem de enfrentar, devido à
alienação do trabalho que esta mudança de hábitos
implica, e devido, acima de tudo, ao facto deles encararem os empregados como
inimigos dentro do sistema distributivo de uma economia capitalista, o
proletariado industrial moderno foi introduzido no seu papel, não tanto
pela atracção ou recompensa monetárias, mas mais por
compulsão, força e medo. Não era permitido que se
crescesse num jardim vibrante de sol; esse proletariado foi forjado a fogo
pelos golpes poderosos de um martelo.... A relação típica
é de domínio e medo, medo da fome, do despejo, da prisão
para aqueles que desobedecerem às novas regras industriais. Até
agora, a experiência de outros países num estágio
semelhante de desenvolvimento não tem, no essencial, sido muito
diferente. (Sidney Pollard,
The Genesis of Modern Management
[Baltimore, Maryland,: Penguin Books, 1968], 243)
A mudança para o sistema de trabalho assalariado alterou profundamente o
modo de vida e o significado do trabalho para os antigos agricultores
independentes e artesãos. No século XVII o trabalho para os
assalariados em Inglaterra era visto como uma forma de escravatura. Não
só eram muitas as fábricas construídas como asilos e
prisões como também a disciplina laboral imposta nessas
instalações pressupunha práticas prisionais. No
período pre-industrial o tempo dedicado ao trabalho era determinado pela
tarefa a ser executada e por condições naturais (o clima para os
agricultores, as marés para os pescadores, etc). O trabalho, o lazer e
as festas religiosas, foram interrelacionados, resultando daí uma
ténue demarcação entre "trabalho" e
"vida". *O sistema fabril, por outro lado, criou uma disciplina de
trabalho completamente nova, onde o tempo e a tarefa passaram a ser rigidamente
controlados por inspectores.
O capitalismo acabou também por introduzir uma nova fase na
divisão do trabalho. Para além de se ter verificado uma precoce
divisão social do trabalho, o processo de produção foi ele
próprio fragmentado. O extensivo uso da máquina, rotinizou os
diferentes segmentos da produção à qual todo o trabalhador
está ligado, transformando desta forma o trabalhador num apêndice
da máquina que, tanto ele como ela, operam. Estas mudanças
são analisadas de uma forma brilhante no clássico de Harry
Braverman,
Labor and Monopoly Capital
(Nova Iorque: Monthly Review Press, 1974)
[1]
. Actualizando a análise de Marx do processo do trabalho no Volume I de
O Capital,
Braverman esclarece:
A força de trabalho [numa sociedade capitalista] tornou-se um produto. O
seu uso já não está organizado de acordo com as
necessidades e desejos daqueles que a vendem, mas bastante mais de acordo com
as necessidades dos seus compradores, que são principalmente
empregadores que procuram ampliar o valor do seu capital. E é do
especial e permanente interesse destes compradores o depreciar este produto. O
modo mais comum de depreciar a força de trabalho está
exemplificado no princípio de Babbage: subdividi-lo nos seus elementos
mais simples. E tal como o modo de produção capitalista cria uma
população activa adequada às suas necessidades, o
princípio de Babbage é, como um perfeito molde deste
"mercado de trabalho", imposto em proveito dos próprios
capitalistas.
Cada uma das fases do processo de trabalho é separada, tanto quanto
possível, do conhecimento especializado e da formação, e
reduzido a uma simples operação. Enquanto isso, as relativamente
poucas pessoas que tiveram acesso ao conhecimento especializado e à
formação, são libertadas, na medida do possível,
das obrigações relacionadas com as operações
simples. Deste modo, todo o processo de trabalho se enquadra numa estrutura
que nos seus extremos polariza aqueles cujo tempo é infinitamente
valioso, e aqueles cujo tempo quase nada vale. Inclusivamente, poder-se-ia
designar isto como a lei geral da divisão capitalista do trabalho. Esta
não é a única força que actua sobre a
organização do trabalho, mas é certamente a mais poderosa
e a mais abrangente. Os seus resultados, mais ou menos conseguidos em todo o
tipo de indústria e de ocupação, dão um forte
testemunho da sua validade. Ela molda não apenas o trabalho, mas
também as populações, pois a longo prazo leva à
criação de uma força de trabalho massificada e
desqualificada que é a característica principal das
populações em países capitalistas desenvolvidos. (82.83)
No subtítulo do livro de Braverman pode-se ler: "A
Degradação do Trabalho no Século XX". É
importante entender que não é apenas a alienação e
a desumanização do próprio processo de trabalho que
humilha o trabalho numa sociedade capitalista. A insegurança, o
desemprego frequente, a exigência dos aspectos ligados à procura
de trabalho, o emprego crescente em ocupações geradoras de
desperdícios e socialmente prejudiciais, não mencionando as
reduzidas recompensas para a maioria dos trabalhadores tudo isto
são contributos para a degradação do trabalho nos nossos
dias. Não é portanto de admirar que Studs Terkel, que
entrevistou um conjunto alargado de trabalhadores ao longo do país,
sobre as suas ocupações laborais, referisse na
introdução do seu fascinante livro
Working
(New York: Pantheon Books, 1972):
Este livro, embora seja acerca do trabalho, é, pela sua própria
natureza, acerca da violência tanto para o espírito como
para o corpo. É acerca das úlceras mas também dos
acidentes, acerca dos gritos nos estádios mas também das lutas ao
murro, acerca dos colapsos nervosos mas também dos pontapés no
cão que passa. É, acima de tudo (ou abaixo de tudo), acerca das
humilhações diárias. Sobreviver ao dia-a-dia é
já um considerável triunfo para os mortos vivos que estão
entre os muitos de nós....
É também acerca da procura do significado de cada dia, mas
também do pão de cada dia, do reconhecimento mas também do
dinheiro, da surpresa em vez do entorpecimento; em resumo, de um tipo de vida
em vez de um tipo de morte de segunda a sexta. Talvez a imortalidade seja
também parte da questão. Ser recordado foi o desejo, revelado ou
não, dos heróis e heroínas deste livro....
Para muitos, existe um descontentamento dificilmente escondido. O
blues
dos colarinhos azuis já não são cantados mais amargamente
do que os queixumes dos colarinhos brancos. "Eu sou uma
máquina", diz o soldador. "Eu estou enjaulado", diz o
caixa do banco, e repete o balconista de hotel. "Eu sou uma mula",
diz o metalúrgico. "Um macaco pode fazer o que eu
faço", diz o recepcionista. "Eu sou menos do que uma
enxada", diz o trabalhador emigrante. "Eu sou um objecto", diz o
modelo de alta moda. Tanto o colarinhos azuis como os brancos pronunciam uma
frase idêntica: "eu sou um robô"....
Nora Watson [uma entrevistada] poderia ter dito muito sucintamente a mesma
coisa. "Eu penso que a maioria de nós está à procura
de uma profissão, não de um trabalho. A maioria de nós,
como é o caso do trabalhador de uma linha de montagem, tem trabalhos que
são irrelevantes para espírito. Os trabalhos não
são suficientemente estimulantes para pessoas."*
Marx e o trabalho sob o socialismo
Para Marx, o objectivo primeiro do socialismo seria eliminar as
misérias do trabalho e do modo de vida surgidos do capitalismo. Mas,
como é bem conhecido, ele não definiu o projecto de uma tal
sociedade. O futuro seria moldado no processo da revolução,
influenciado pelas circunstâncias históricas e em resposta
à experiência ganha pela classe trabalhadora na medida em que se
envolvia na transformação revolucionária do estado e da
sociedade. Não obstante havia aspectos que seriam essenciais à
revolução levada a cabo pelos explorados: a
abolição de classes e da propriedade privada no que diz respeito
aos meios de produção, e a favor do controlo social da
produção. Isto necessariamente implicou, na estrutura marxista, a
dissolução de todas as formas da divisão do trabalho nele
criada, divisão essa determinante para a existência tanto de
propriedade privada como de uma sociedade baseada na divisão por
classes. Tão central foi este ponto no pensamento de Marx que se pode
percepcionar a sua visão do que poderia ou deveria ser o objectivo
último de uma sociedade comunista:
Numa fase mais avançada da sociedade comunista, depois da
subordinação escravizante dos indivíduos à
divisão do trabalho, e com isso também o fim da antítese
entre trabalho mental e o físico, depois de o trabalho se ter tornado,
não apenas um meio para viver, mas uma necessidade primária da
vida, depois de as forças produtivas terem aumentado com todo a
envolvente de desenvolvimento do indivíduo, e depois de todas as
nascentes de riqueza cooperativa fluírem mais abundantemente
só então se pode abandonar completamente o estreito horizonte do
direito burguês, e a sociedade inscrever finalmente nas suas bandeiras:
de cada um de acordo com as suas capacidades, para cada um de acordo com as
suas necessidades.
(Critique of the Gotha Program)
É preciso enfatizar que Marx viu este ideal como sendo algo que seria
percebido só após se ter passado por um longo processo, desde a
nova ordem social "emergida da sociedade capitalista que é, sob
todos os aspectos, económico, moral, e intelectual, ela própria
estampada com as marcas de nascença do útero da velha sociedade
da qual ela emergiu". Ele não abordou no entanto, os
obstáculos que se atravessarão no caminho para o objectivo
último se as "marcas de nascença da velha sociedade"
estiverem embutidas no seio da nova sociedade. Este problema tornou-se evidente
com o resultado da experiência daqueles países que sofreram
revoluções sociais. É agora evidente que, após a
revolução, a persistência em dividir o trabalho entre
intelectuais e trabalhadores, entre os administradores e as massas, e entre os
dirigentes das cidades e da província, levam à
perpetuação de conflitos de interesse entre sectores da
sociedade, juntamente com o espírito de competição e o
individualismo. Não existem dúvidas de que Mao Tse-tung foi
profundamente impressionado por esta experiência, dado que ele enfatizou
repetidamente que, se se pretendia que o socialismo progredisse, havia a
necessidade de prestar atenção à eliminação
das principais diferenças entre as pessoas.
E acerca desta última visão que Marx nos deixou? Será
razoável considerarmos isso como um ideal? Não há tempo
agora para fazermos uma abordagem desta questão em todas as suas
vertentes. Porém, gostaria de referir que por detrás desta
visão, repousam duas suposições, sendo que uma é
alicerçada nos escritos de Marx e Engels, e a outra, de acordo com o meu
conhecimento, eles ignoraram.
Uma suposição básica da factibilidade do objectivo
comunista é que a natureza humana não é constante ao longo
do tempo: que os impulsos aquisitivos, o individualismo, e a
competição não são dados biológicos. O
facto de as pessoas mudarem o seu comportamento social e as suas atitudes
está no próprio cerne da teoria do materialismo histórico:
embora os "homens sejam produto das circunstâncias e da
educação, e portanto homens transformados sejam produtos de
outras circunstâncias e de outra educação também ela
mudada", não deveria ser esquecido "que as
circunstâncias são mudadas precisamente por homens e que o
próprio pedagogo deve ser também ele educado" (Marx,
Theses on Feuerbach
). O suporte desta proposição vem de um estudo da história
e especialmente de investigações de antropólogos. "O
Sr Proudhon não sabe", escreveu Marx em
Poverty of Philosophy,
"que toda a história não é mais do que a
transformação contínua da natureza humana".
Uma objecção à visão comunista, apontada
frequentemente, é a de se considerar que as pessoas só trabalham
por incentivos económicos. Isto apesar de tal noção ser
refutada por muitas das sociedades primitivas de que temos conhecimento, onde
predominam incentivos não-económicos para o trabalho:
responsabilidade social, tradição, desejo de prestígio, e
prazer na habilidade artesanal. Dado que existem registos de no passado se
terem verificado mudanças nas atitudes das pessoas para com a comunidade
e para com o seu trabalho, é razoável assumir que a natureza
humana se adaptará, e com entusiasmo, a uma ordem social baseada na
cooperação, na eliminação da divisão
rígida do trabalho, e na oportunidade de um desenvolvimento mais
completo do indivíduo.
Encontra-se aqui envolvida precisamente uma segunda suposição
relativa à natureza das necessidades das pessoas um assunto ao
qual Marx e os marxistas prestaram pouca atenção. Se as
necessidades das pessoas são ilimitadas, e especialmente se elas gerarem
em si mesmas uma paixão pelo consumo, como aquele que caracteriza as
nações capitalistas avançadas do Ocidente, então
isso levaria a concluir que as propostas para alcançar a fase mais alta
de comunismo, são na realidade muito fracas. O problema não
é apenas a questão de os recursos da Terra serem limitados,
embora isso só por si já fosse razão suficiente para
cepticismo. A procura sem limites de um sempre cada vez mais elevado
nível de vida material, e à escala mundial, só poderia
resultar na reprodução das mais nefastas características
de uma sociedade de classes. A procura de um incessante crescimento da
produção de uma já bastante alargada gama de bens
requereria, entre outras coisas, a continuação de uma
rígida divisão do trabalho, a concentração do
fabrico em grandes empreendimentos e enormes cidades. Ao mesmo tempo, a
igualdade na distribuição teria de ser esquecida. Na
ausência de limites para as necessidades não haveria qualquer modo
prático de satisfazer os desejos de todos os consumidores: as
possibilidades de produção necessariamente limitadas requereriam
desigualdade na distribuição [de bens], conjuntamente com a
intensificação de conflitos entre sectores privilegiados e
despojados.*
Tudo isto leva a concluir que a condição necessária para
se atingir uma sociedade verdadeiramente comunista, é o
total
abandono da cultura capitalista e consumista. Isto significaria uma abordagem
completamente nova ao planeamento das cidades e aldeias, do transporte, da
localização da indústria, da tecnologia, e de muito mais.
Acima de tudo, a nova cultura teria que de ser fundada numa visão das
necessidades de pessoas e num modo de vida que seria consistente com a
manutenção de uma sociedade cooperativa e igualitária.
Embora, como referido anteriormente, os marxistas tenham negligenciado
questionar as necessidades e as exigências de uma nova cultura, é
verdade que estas preocupações estão muito presentes num
famoso romance utópico de um marxista:
News from Nowhere
(1890) de William Morris. Num certo sentido este livro pode ser considerado
uma resposta a Edward Bellamy. Morris estava perturbado com as ideias de
Bellamy, como se pode perceber por uma análise por ele exposta em
Looking Backward:
[Bellamy]
diz-nos
que todo o homem é livre de escolher a sua própria
ocupação e que o trabalho não representa um fardo para as
pessoas. A
ideia
que ele transmite é a de um enorme exército preparado,
firmemente instruído, compelido por algum destino misterioso numa
ansiedade incessante dirigida para a produção de mercadorias de
modo a satisfazer todo o capricho, mesmo que seja imprevidente e absurdo, e que
deve ser considerado na sua totalidade.... Acredito que o ideal do futuro
não aponta para uma diminuição da energia despendida pelo
homem, reduzindo ao mínimo o
trabalho,
pois creio antes numa redução ao mínimo do
sofrimento no trabalho,
tão pequeno que deixará de ser sofrimento.... No entanto, no
respeitante a este aspecto, o sr. Bellamy preocupa-se desnecessariamente com a
procura (com óbvio fracasso) de algum incentivo para o trabalho por
forma a substituir o medo da fome, que é no presente o nosso
único receio, contudo, e procurando não ser demasiado repetitivo,
o verdadeiro incentivo para um trabalho feliz e útil deverá ser o
prazer no próprio trabalho. (
Commonweal
[January 22, 1889], tal como o citado em A. L. Morton,
The English Utopia
[Londres: Lawrence & Wishart, 1952], 155)
O romance utópico que Morris escreveu um ano depois é, como se
poderia esperar, notavelmente diferente do de Bellamy. Ele não dá
uma prescrição completa para todos os aspectos da nova sociedade,
nem pretendeu que a sua visão fosse a única e a necessária
forma de futuro. Em vez disso, trata-se da expressão de uma
preferência pessoal para o tipo de mundo em que ele gostaria de viver.
Por outro lado, em contraste com Bellamy, Morris exibe um senso da
história, a compreensão de que as transformações
sociais ocorrem como resultado de lutas travadas pelas classes sofridas, e a
consciência das potenciais mudanças na natureza humana e nas
relações sociais. O que é de especial interesse no
presente contexto, é a sua ênfase na satisfação do
que pode provir do trabalho. No entanto tal só poderá ser
entendido num ambiente com um tipo de vida mais simplificado e onde exista uma
libertação das pressões exercidas por desejos
artificialmente estimulados. No novo mundo de Morris, as grandes cidades
desaparecerão e serão substituídas por aldeias, bosques, e
prados. Nestas condições, a divisão rígida do
trabalho vai desaparecendo na medida em que as pessoas forem tendo tempo e
interesse para se dedicarem à aprendizagem de novos saberes. Acima de
tudo, ele realça a satisfação que poderá resultar
da aquisição de saberes que envolvam as actividades manuais, da
própria actividade manual, e do desenvolvimento da criatividade
daí resultante.
O que é especialmente interessante, no
News from Nowhere,
é que o autor não nos proporciona as respostas que precisamos
para o complexo mundo de hoje. Uma vez que as soluções que
propõe interessam a um futuro distante, estas só serão
utópicas na sua essência. As soluções reais
terão que ser fornecidas pela história. Por outro lado, as
opiniões que ele emite sobre a qualidade de vida, sobre o trabalho, e
sobre a cultura numa sociedade sem classes, merecem atenção.
Todos eles têm o mérito de sugerir ideias que podem influenciar a
direcção das lutas dos dias de hoje, e nos direccionar para uma
vida melhor.
[1] Trabalho e capital monopolista, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, 379
pgs.
O original encontra-se em
http://monthlyreview.org/1006hmagdoff.htm
Tradução de MJS.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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