Martinica
Este artigo, escrito logo após a grande erupção
vulcânica de Maio de 1902 no porto de St. Pierre, na ilha da Martinica,
reflecte o interesse de Rosa Luxemburgo pelos acontecimentos fora da Europa e a
sua fervente oposição ao colonialismo europeu. Agora,
após a
catástrofe provocada na Ásia pelo tsunami asiático de 26
de Dezembro de 2004, ele ganha uma nova actualidade.
Montanhas de ruínas fumarentas, pilhas de cadáveres mutilados, um
fumegante mar de fogo para onde quer que nos voltemos, lama e cinzas
isto é tudo o que resta da cidade florescente que se encarapitava no
terreno rochoso do vulcão tal como um pássaro deglutido. Por
algum tempo o gigante colérico foi ouvido a rugir e a enraivecer-se
contra esta presunção humana, a arrogância cega dos
anões de duas pernas. Com bondade mesmo na sua ira, um verdadeiro
gigante, ele advertiu as imprudentes criaturas que rastejavam aos seus
pés. Ele expeliu fumo, vomitou nuvens ardentes, no seu peito havia
tempestuosas e ferventes explosões como descargas de rifle e trovejar de
canhões. Mas os deuses da terra, aqueles que ordenam o destino humano,
ali permaneceram com fé inabalável na sua própria
sapiência.
Em 7 de Maio, a comissão despachada pelo governo anunciou ao ansioso
povo de St. Pierre que estava tudo em ordem no céu e sobre a terra.
Está tudo em ordem, não há motivo para alarme! como
disseram na véspera do Juramento do Palácio nos salões
intoxicados pela dança de Luís XVI, enquanto na cratera do
vulcão revolucionário a lava ardente estava a acumular-se para a
temível erupção. Tudo está em ordem, em paz e em
tranquilidade por toda a parte! como disseram em Viena e Berlim na
véspera da erupção de Março cinquenta anos
atrás.
[1]
O velho e sofrido titã da Martinica não prestou
atenção aos relatórios da honrada comissão: depois
de o povo ter sido acalmado pelo governador no dia 7, ele entrou em
erupção nas primeiras horas do dia 8 e nuns poucos minutos
enterrou o governador, a comissão, o povo, casas, ruas e navios sob as
ardentes exalações do seu coração indignado.
O trabalho foi radicalmente completo. Quarenta mil vidas humanas ceifadas, um
punhado de refugiados tementes resgatados o velho gigante pode rugir e
borbulhar em paz, ele mostrou o seu poder, ele vingou-se terrivelmente do
desprezo para com o seu poder primitivo.
E agora, chega às ruínas da cidade aniquilada na Martinica um
novo hóspede, desconhecido, nunca antes visto o ser humano. Nem
deuses e servos, nem negros e brancos, nem ricos e pobres, nem donos de
plantações e escravos assalariados seres humanos surgiram
sobre a pequena ilha destruída, seres humanos que apenas sentem o
sofrimento e vêem apenas o desastre, que querem apenas ajudar e socorrer.
O velho Monte Pelee operou um milagre! Estão esquecidos os dias de
Fashoda,
[2]
esquecido o conflito sobre Cuba, esquecida "la Revanche" os
franceses e os ingleses, o czar e o Senado de Washington, a Alemanha e a
Holanda doam dinheiro, enviam telegramas, estendem a mão da ajuda. Uma
fraternidade de povos contra o ódio incendiário da natureza, uma
ressurreição do humanismo sobre as ruínas da cultura
humana. O preço do redespertar da sua humanidade foi alto, mas o
trovejante Monte Pelee teve voz para alcançar os seus ouvidos.
A França chora sobre os quarenta mil corpos da pequena ilha, e o mundo
inteiro precipita-se para secar as lágrimas da República
Mãe. Mas como se passava isto séculos atrás, quando a
França derramava sangue em torrentes pelas Antilhas Menores e Maiores?
No mar da costa leste da África jaz uma ilha vulcânica
Madagascar: cinquenta anos atrás vimos ali a desconsolada
República, que hoje chora pelos seus filhos perdidos, como ela subjugou
o obstinado povo nativo sob sua canga através das cadeias e da espada.
Nenhum vulcão abriu ali a sua cratera: as bocas dos canhões
franceses vomitaram morte e aniquilação. A artilharia francesa
varreu com o fogo milhares de vidas humanas florescentes da face da terra
até que um povo livre ficasse prostrado no chão, até que a
rainha escura dos "selvagens" fosse arrastada como um trofeu pela
"Cidade Luz".
Na costa asiática, lavada pelas ondas do oceano, ficam as sorridentes
Filipinas. Seis anos atrás vimos os bondosos ianques e o Senado de
Washington a trabalharem ali.
[3]
Não há montanhas a vomitarem fogo naquele lugar
lá, rifles americanos ceifaram vidas humanas aos montes; o cartel do
açúcar do Senado hoje envia dólares dourados para a
Martinica, milhares de milhares, para trazer a vida de volta a partir das
ruínas, envia canhões e mais canhões, vasos de guerra e
mais vasos de guerra, milhões e mais milhões de dólares
dourados a Cuba, para semear morte e devastação.
Ontem, hoje, lá longe no distante sul da África, onde há
apenas uns poucos anos um pequeno povo tranquilo vivia do seu trabalho e em
paz, vimos como o inglês provoca o caos, estes mesmos ingleses que na
Martinica salvam as mães, os seus filhos: ali nós os vimos
marcar corpos humanos, sobre corpos de crianças com botas brutais de
soldados, chapinhando em lagos de sangue, morte e miséria.
Ah, e os russos, a resgatarem, a ajudarem, o lacrimoso czar de todos os russos
um velho conhecido! Nós o vimos nas baterias de Praga, nos
polacos calorosos, o sangue fluiu em jorros e tornou o céu vermelho com
o seu vapor.
[4]
Mas isto foi antigamente. Não! Agora, a apenas umas poucas semanas,
vimos bondosos russos nas suas estradas empoeiradas, em aldeias russas
arruinadas, em pleno acordo com multidões ásperas,
desenfreadamente agitadas e resmungonas, mujiques caídos por terra a
arfarem, sangue vermelho camponês misturados com o pó da estrada.
Eles devem morrer, eles devem cair porque os seus corpos redobram-se com fome,
porque eles clamaram por pão, por pão!
E também a vimos, Oh Mãe República, lavada em
lágrimas. Foi em 23 de Maio de 1871: o glorioso sol da primavera
brilhava sobre Paris, milhares de pálidos seres humanos em roupas de
trabalho apertados de pé, todos juntos, nas ruas, no pátio da
prisão, corpo com corpo e cabeça com cabeça;
atrave´s de buracos nas paredes, metralhadoras a avançarem os seus
focinhos sedentos de sangue. Nenhum vulcão entrou em
erupção, nenhuma corrente de lava derramou-se. Os seus
canhões, Mãe República, foram virados contra a
multidão duramente apertada, jorros de sofrimento rasgaram os ares
mais de vinte mil cadáveres cobriram os calçamentos de
Paris!
[5]
E todos vocês sejam franceses e ingleses, russos e alemães,
italianos e americanos foram vistos todos juntos uma vez antes do acordo
fraternal, unidos na grande liga das nações, a ajudarem e a
guiarem uns aos outros: foi na China. Ali vocês também
esqueceram todas as querelas internos, ali também fizeram uma paz do
povos para o assassínio em comum e o atear do fogo. Ah, como
aquelas tranças de rabicho caem aos molhos diante das suas balas, como
um campo de trigo maduro açoitado pelo granizo! Ah, como as mulheres
chorosas afundadas na água, com os seus mortos nos braços frios,
a fugirem das torturas dos vossos abraços ardentes!
E agora todos eles voltaram-se para a Martinica, todos com um só
coração e um só pensamento, mais uma vez; eles ajudam,
resgatam, secam as lágrimas e amaldiçoam o vulcão que
descarrega destruição. Monte Pelee, grande gigante bondoso,
você pode rir; você pode olhar com desprezo para a
abominação destes assassinos benévolos, para estes
carnívoros lacrimejantes, para estas bestas vestidas com roupas de
samaritano. Mas chegará o dia em que um outro vulcão
levantará a sua voz de trovão: um trovão que está
a ferver e a borbulhar, quer você precise disto ou não, e
varrerá toda a cultura hipócrita e respigante de sangue da face
da terra. E só sobre as suas ruínas as nações
ficarão reunidas em verdadeira humanidade, a qual não
conhecerá senão um inimigo mortal a natureza cega e mortal.
_______
Notas
1- Referência ao estalar das revoluções de 1848 na Europa.
2- Em 1898 a França e a Inglaterra quase foram à guerra devido a
um conflito em Fashoda, no Sudão.
3- Referência à Guerra Hispano-Americana de 1898, na qual os
Estados Unidos tomaram posse das Filipinas e de Cuba. Isto verificou-se quatro
anos antes e não seis.
4- Os baluartes de Praga" referem-se a um massacre do
exército russo contra um levantamento polaco em Praga, um
subúrbio de Varsóvia, em 1831.
5- Referência à brutal supressão da Comuna de Paris de
1871, na qual milhares de revolucionários foram massacrados pelas
forças do governo francês.
[*]
Este ensaio foi extraído de
The Rosa Luxemburg Reader
, traduzido e editado por Peter Hudis e Kevin B. Anderson (Monthly Review
Press, 2004). O artigo original foi publicado no
Leipziger Volkszeitung
de 15 de Maio de 1902.
O original encontra-se em
http://www.monthlyreview.org/0105luxemburg.htm.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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