O imperialismo nu e cru

por John Bellamy Foster [*]

. As acções globais dos Estados Unidos desde 11 de Setembro de 2001 são consideradas frequentemente como um "novo militarismo" e um "novo imperialismo". No entanto, o militarismo e o imperialismo não são novidade nos Estados Unidos, que têm sido uma potência expansionista – continental, hemisférica e global – desde a sua fundação. O que mudou é a nudez com que está a ser promovido, e a extensão ilimitada das ambições americanas a nível do planeta.

Max Boot, membro senior do Council on Foreign Relations, afirma que o "maior perigo" que os Estados Unidos enfrentam no Iraque e em todo o mundo "é não utilizarmos todo o nosso poder com medo da palavra 'imperialismo'... Dada a bagagem histórica que a palavra 'imperialismo' acarreta, o governo dos EUA não precisa de usar esse termo. Mas devia adoptar a sua prática decididamente". Os Estados Unidos, diz ele, deviam estar "preparados para adoptar a regra imperial sem pedir desculpas". Se Washington não está a planear manter "bases permanentes no Iraque... devia estar... Se isso levantar engulhos sobre o imperialismo americano, paciência". (" American Imperialism?: No Need to Run from the Label ," USA Today, May 6, 2003). De igual modo, Deepak Lal, professor de Estudos de Desenvolvimento Internacional na Universidade James S. Coleman da Califórnia, em Los Angeles, afirma: "A tarefa primordial da Pax Americana deve ser encontrar forma de criar uma nova ordem no Médio Oriente... Há muita gente que afirma de forma acusadora que um tal rearranjo do statuos quo seria um acto de imperialismo e seria fortemente motivado pelo desejo de controlar o petróleo do Médio Oriente. Mas, longe de ser condenável, o imperialismo é precisamente o que é necessário para repor a ordem no Médio Oriente". (" In Defense of Empires ," in Andrew Bacevich, ed., The Imperial Tense, 2003).

Estas opiniões, embora provenham de neoconservadores, estão inteiramente em consonância com a tendência predominante da política externa americana. Com efeito, há pouco desacordo nos círculos dirigentes americanos sobre as tentativas actuais para expandir o Império Americano. Para Ivo Daalder e James Lindsay, membros seniores na Brookings Institution, "a verdadeira discussão... não é sobre ter um império, mas qual deve ser a sua forma". ( New York Times, May 10, 2003). Michael Ignatieff, director do Centro Carr para a Política dos Direitos Humanos da Universidade de Harvard na Escola do Governo John F. Kennedy, afirma sem equívocos: "Este novo imperialismo... é humanitário em teoria mas imperial na prática; cria 'sub-soberania', na qual os estados são independentes em teoria mas não o são de facto. Afinal de contas, a razão por que os americanos estão no Afeganistão, ou nos Balcãs, é para manter a ordem imperial em zonas essenciais aos interesses dos Estados Unidos. Estão ali para manter a ordem contra uma ameaça de barbárie". Como "último estado militar ocidental" e o seu último "império", os Estados Unidos têm a responsabilidade de "estruturar e impor a ordem imperialmente" em "analogia com Roma... Acordámos agora perante os bárbaros... Retribuímos a visita aos bárbaros e outras mais se seguirão". (" The Challenges of American Imperial Power ," Naval War College Review, Spring 2003).

Tudo isto reflecte as realidades do poder imperial americano. No seu preâmbulo da Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, publicada no outono de 2002, o presidente George W. Bush declarou que, desde a queda da União Soviética passara a haver "um modelo único sustentável para o sucesso nacional: liberdade, democracia e livre iniciativa", tal como o que está incorporado de uma forma concreta no capitalismo dos EUA. Qualquer sociedade que rejeitasse o guia desse modelo estaria condenada ao fracasso – e, era ímplícito, seria considerada como uma ameaça à segurança dos Estados Unidos. O corpo principal do documento que se seguia era uma declaração aberta do objectivo de Washington quanto ao domínio estratégico de todo o planeta num futuro não especificado. Anunciava a intenção dos EUA de entrarem em guerra "antecipativa" (ou preventiva) com as nações que ameaçassem ou pudessem constituir no futuro uma ameaça directa ao domínio dos EUA – ou que pudessem ser consideradas uma ameaça indirecta pelos perigos que levantassem a amigos ou aliados dos EUA em qualquer parte do globo. Seriam desencadeadas acções preventivas, realçava a nova Estratégia de Segurança Nacional, para garantir que jamais alguma potência pudesse no futuro rivalizar com os Estados Unidos em capacidade militar. A 13 de Abril de 2004, o presidente Bush proclamou que os Estados Unidos precisavam de "partir para a ofensiva e manter-se na ofensiva", travando uma batalha impiedosa contra todos aqueles que fossem considerados seus inimigos.

Desde 11 de Setembro de 2001, os Estados Unidos travaram batalhas no Afeganistão e no Iraque, expandiram o alcance global do seu sistema de bases militares, e aumentaram o nível dos seus gastos militares até ao ponto que agora gastam quase tanto com as forças armadas como todas as outras nações do mundo no seu conjunto. O jornalista Greg Easterbrook, exaltando a guerra relâmpago dos EU no Iraque, proclamou no New Tork Times (27/Abril/2003) que as forças militares americanas são "as mais fortes que o mundo jamais viu... mais fortes do que a Wehrmacht em 1940, mais fortes que as legiões no auge do poder romano".

Inúmeros críticos da esquerda americana reagiram declarando, "Temos que expulsar estes sacanas". Argumentam que o governo dos EUA sob a administração Bush foi conquistado por uma pandilha de neoconservadores que impuseram uma nova política de militarismo e imperialismo. Por exemplo, o sociólogo Michael Mann da Universidade da Califórnia em Los Angeles, afirma no final do seu Incoherent Empire (2003) que "um golpe neoconservador de galinhas-falcões... apoderou-se da Casa Branca e do Departamento da Defesa" com a subida de George W. Bush à presidência. Para Mann, a solução final é muito simplesmente "pôr os militaristas na rua".

Os argumentos aqui apresentados apontam para uma outra conclusão. O militarismo e imperialismo americanos têm raizes profundas na história e na lógica político-económica capitalista dos EUa. Até mesmo os defensores do imperialismo estão hoje dispostos a reconhecer que os Estados Unidos têm sido um império desde o seu início. "Os Estados Unidos", escreve Boot em " American Imperialism? ", "têm sido um império desde pelo menos 1893, quando Thomas Jefferson comprou o Território da Lousiana. Durante o século XIX, o 'império da liberdade', como lhe chamou Thomas Jefferson, estendeu-se a todo o continente". Posteriormente os Estados Unidos conquistaram e colonizaram territórios além-mar na guerra hispano-americana de 1898 e na brutal guerra filipino-americana que se travou logo a seguir – justificada como uma tentativa de exercer o "fardo do homem branco" [1] . Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e outros grandes estados imperialistas abdicaram dos seus impérios políticos formais, mas mantiveram impérios económicos informais apoiados na ameaça e frequentemente na realidade de uma intervenção militar. A Guerra Fria obscureceu esta realidade neocolonial mas nunca a escondeu inteiramente.

O crescimento do império não é estranho nos Estados Unidos nem um mero florescimento da política de determinados estados. É o resultado sistemático de toda a história e lógica do capitalismo. Desde o seu nascimento nos séculos XV e XVI que o capitalismo é um sistema globalmente expansivo – um sistema que está dividido hierarquicamente entre metrópole e satélite, entre centro e periferia. O objectivo do sistema imperialista de hoje, tal como no passado, é arranjar economias periféricas para o investimento dos países capitalistas centrais, garantindo assim um fornecimento permanente de matérias-primas a baixos preços, e um fluxo líquido de lucros económicos da periferia para o centro do sistema mundial. Além disso, o terceiro mundo é encarado como uma fonte de mão-de-obra barata, constituindo um exército de reserva global de mão-de-obra. As economias da periferia estão estruturadas para satisfazer as necessidades externas dos Estados Unidos e dos outros países capitalistas centrais, em vez das suas próprias necessidades internas. Isto resultou (com algumas excepções dignas de nota) nas condições de dependência interminável e de escravidão de endividamento das regiões mais pobres do mundo.

Se o "novo militarismo" e o "novo imperialismo" afinal não são assim tão recentes, mas estão em consonância com toda a história dos EUA e do capitalismo mundial, levanta-se então uma questão crucial: Porque é que o imperialismo dos EUA se tornou mais evidente nos últimos anos até ao ponto de ser redescoberto subitamente tanto pelos seus proponentes como pelos seus opositores? Há alguns anos apenas alguns teóricos da globalização com raízes na esquerda, como Michael Hardt e Antonio Negri no seu livro Empire (2002), defenderam que a época do imperialismo tinha acabado, que a guerra do Vietname fora a última guerra imperialista. Contudo, hoje em dia, o imperialismo é mais abertamente defendido pela estrutura do poder dos EUA do que em qualquer época desde os fins do século XIX. Esta viragem só pode ser compreendida se examinarmos as mudanças históricas que ocorreram nas últimas três décadas desde o fim da guerra do Vietname.

Quando finalmente acabou a guerra do Vietname, em 1975, os Estados Unidos tinham sofrido uma enorme derrota no que, sem contar com a Guerra Fria ideológica, foi sem dúvida uma guerra imperialista. A derrota coincidiu com um súbito abrandamento na taxa de crescimento da economia capitalista americana e mundial no princípio dos anos 70, quando reapareceu a velha ameaça secular de estagnação do sistema. A grande exportação de dólares para o estrangeiro associada com a guerra e com o crescimento do império criou um gigantesco mercado eurodólar, que desempenhou um papel fundamental na decisão do presidente Richard Nixon de desligar o dólar do ouro em Agosto de 1971, acabando com o padrão dólar-ouro. Isto marcou o declínio da hegemonia económica dos EU. A crise energética que atingiu os Estados Unidos e outros importantes estados industriais quando os países do Golfo Pérsico cortaram as suas exportações de petróleo em resposta ao apoio ocidental a Israel na guerra de Yom Kippur de 1973, revelou a vulnerabilidade dos EUA dada a sua dependência do petróleo estrangeiro.

O que os conservadores rotularam de "Síndrome do Vietname" – ou seja, a relutância da população americana em apoiar intervenções militares dos EUA nos países do terceiro mundo – impediu que os Estados Unidos neste período reagissem à crise mundial pondo em marcha a sua colossal máquina militar. Em consequência, as intervenções dos EUA foram reduzidas e abriram-se rapidamente brechas no sistema imperialista: a Etiópia em 1974, as colónias africanas de Portugal (Angola, Moçambique e Guiné-Bissau) em 1974-75, Granada em 1979, a Nicarágua em 1979, o Irão em 1979 e o Zimbabué em 1980.

A derrota mais grave sofrida pelo imperialismo americano no fim dos anos 70 foi a Revolução Iraniana de 1979 que derrubou o Xá do Irão, um pilar do domínio militar americano no Golfo Pérsico e do seu petróleo. Ocorrendo na sequência da crise energética, o Médio Oriente tornou-se uma preocupação prioritária da estratégia global dos EUA. O presidente Jimmy Carter publicou em Janeiro de 1980 o que viria a ser conhecido pela Doutrina Carter: "Qualquer tentativa de uma força exterior para assumir o controlo da região do Golfo Pérsico será considerada como um ataque aos interesses vitais dos Estados Unidos da América, e tal ataque será repelido pelos meios que forem necessários, incluindo a força militar". Isto foi redigido em termos de estabelecer um paralelo com a Doutrina Monroe, que definira as exigências dos EUA sobre o domínio das Américas, e fora utilizado como um "princípio legal" assumido para justificar as invasões militares americanas noutros estados do hemisfério. A Doutrina Carter dizia, com efeito, que os Estados Unidos reivindicavam o domínio militar do Golfo Pérsico, o qual seria executado totalmente pelo império americano "pelos meios que forem necessários". Esta afirmação do poder dos EUA no Médio Oriente foi acompanhado pelo início da guerra patrocinada pela CIA contra as tropas soviéticas no Afeganistão (a maior guerra secreta da história), na qual os Estados Unidos alistaram forças islâmicas fundamentalistas incluindo Osama Bin Laden numa guerra santa ou jihad contra as forças soviéticas de ocupação. As repercussões desta guerra e a subsequente Guerra do Golfo deveriam conduzir directamente aos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001.

Durante a era de Reagan nos anos 80, os Estados Unidos aumentaram a sua ofensiva, renovando a corrida ao armamento da Guerra Fria ao mesmo tempo que procuravam subverter as revoluções dos anos 70. Para além de prosseguir a guerra secreta contra os soviéticos no Afeganistão, forneceram ajuda militar e económica ao Iraque de Saddam Hussein, apoiando-o na guerra Irão-Iraque de 1980-1988; aumentaram o seu envolvimento militar directo no Médio Oriente, intervindo sem sucesso no Líbano no princípio dos anos 80 (só retiraram depois do bombardeamento devastador de 1983 sobre os aquartelamentos dos marines ); e patrocinaram operações secretas destinadas a submeter estados hostis e movimentos revolucionários em todo o globo. As principais guerras secretas foram instigadas contra os sandinistas na Nicarágua e contra as forças revolucionárias na Guatemala e em El Salvador. Em 1983 os Estados Unidos invadiram a pequena ilha de Granada e, sob o presidente George H. W. Bush, sucessor de Reagan, invadiram o Panamá em Dezembro de 1989 numa campanha para reassumir o controlo da América Central.

Mas foi o colapso do bloco soviético em 1989 que proporcionou a verdadeira mudança para o imperialismo dos EUA. Como escreveu Andrew Bacevich em American Empire (2002), "tal como a vitória em 1898 [na guerra hispano-americana] transformou as Caraíbas num lago americano, também a vitória em 1989 [na Guerra Fria] pôs o globo inteiro ao alcance dos Estados Unidos; daí em diante os interesses americanos deixaram de ter limites" (177). Subitamente, com a retirada da cena mundial da União Soviética (ela própria em vias de se desmantelar no verão de 1991), abriu-se a possibilidade de uma intervenção militar americana em grande escala no Médio Oriente. Isto ocorreu quase de imediato a seguir à Guerra do Golfo, com início na primavera de 1991. Os Estados Unidos, embora cientes de antemão da iminente invasão do Kuwait pelo Iraque, não se opuseram com firmeza senão depois de ela se ter concretizado (ver a transcrição da declaração de Saddam Hussein e a resposta do embaixador americano April Glaspie, New York Times International, 23/Setembro/1990). A invasão pelo Iraque ofereceu aos Estados Unidos um pretexto para uma guerra de grande escala no Médio Oriente. Morreram entre 100 a 200 mil soldados iraquianos na Guerra do Golfo e pelo menos 15 mil civis iraquianos foram mortos directamente nos bombardeamentos americanos e britânicos do Iraque (Research Unit for Political Economy, Behind the Invasion of Iraq , 2003). Ao comentar o que considerava ter sido um dos principais ganhos da guerra, o presidente Bush declarou em Abril de 1991, "Graças a Deus, derrotámos a Síndrome do Vietname".

No entanto, na altura, os Estados Unidos preferiram não tirar partido da sua superioridade e invadir e ocupar o Iraque. Embora houvesse sem dúvida inúmeras razões para essa decisão, incluindo o facto de que isso provavelmente não seria apoiado pelos membros árabes da coligação da Guerra do Golfo, a principal razão foi a mudança geopolítica resultante do colapso do bloco soviético. Nessa altura, a União Soviética estava ainda titubeante. A incerteza quanto ao futuro da União Soviética e da esfera geopolítica que ela tinha tido sob controlo era tão grande que, na altura, Washington não podia permitir-se o compromisso de tropas que uma ocupação continuada do Iraque teria acarretado. O fim da União Soviética só chegou meses depois.

Durante o resto dos anos 90, os Estados Unidos (principalmente sob o presidente Democrata Bill Clinton) envolveram-se em importantes intervenções militares no Corno de África, no Médio Oriente, nas Caraíbas, e na Europa de Leste. Isto culminou em 1999 com a guerra na Jugoslávia (Kosovo) na qual os Estados Unidos, rebocando a NATO, efectuaram bombardeamentos durante onze semanas, seguidos da inserção de tropas terrestres da NATO. Alegadamente travada para fazer parar uma "limpeza étnica", a guerra nos Balcãs foi geopoliticamente uma guerra para o alargamento do poder imperial dos EUA numa área anteriormente sob influência soviética.

Já no fechar do século XX a elite do poder nos Estados Unidos se tinha virado portanto para uma política de imperialismo aberto num grau nunca antes visto desde os primeiros anos do século – com o império dos EUA agora concebido no âmbito do planeta. Mesmo quando começou a surgir um forte movimento antiglobalização, principalmente com os protestos em Seattle em Novembro de 1999, a elite governante dos EUA já estava a movimentar-se decididamente em direcção a um imperialismo para o século vinte e um, um imperialismo que haveria de promover a globalização neoliberal, embora sob o domínio mundial dos EUA. "A mão escondida do mercado", opinou Thomas Friedman, colunista de política estrangeira do New York Times, galardoado com o prémio Pulitzer, "nunca funcionará sem um punho escondido – o McDonald's não pode florescer sem um McDonnel Douglas, o construtor dos F-15. E o punho escondido que mantém a protecção das tecnologias de Silicon Valley chama-se Exército, Força Aérea, Marinha e Fuzileiros Navais dos Estados Unidos." ( New York Times Magazine, March 28, 1999). O "punho escondido", no entanto, só em parte estava escondido, e viria a mostrar-se ainda mais nos anos que se seguiram.

Evidentemente, a mudança para um imperialismo mais abertamente militarista ocorreu gradualmente, por fases. Durante a maior parte dos anos 90, a classe dirigente americana e a instituição de segurança nacional travaram um debate de bastidores sobre o que fazer, agora que o desaparecimento da União Soviética tinha deixado os Estados Unidos como a única superpotência. Naturalmente, nunca houve dúvidas sobre o que iria ser o principal empurrão económico para o império global dominado pelos Estados Unidos. Os anos 90 assistiram ao fortalecimento da globalização neoliberal: a remoção de barreiras ao capital em todo o mundo com medidas que reforçavam directamente o poder dos ricos países capitalistas do centro da economia mundial vis-à-vis os países pobres da periferia. Um passo fundamental foi a introdução da Organização Mundial do Comércio para acompanhar o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional enquanto organizações que reforçavam as regras do jogo do monopólio capitalista. Para a maior parte do mundo, um imperialismo económico mais explorador acabava de mostrar a sua horrível cabeça. Contudo, para os poderes que estavam no centro da economia mundial, a globalização neoliberal era olhada como um sucesso retumbante – não obstante os sinais de instabilidade financeira global como os revelados pela crise financeira asiática de 1997-98.

Contudo, os círculos dirigentes dos EUA continuavam a debater a forma e a extensão a que os Estados Unidos deviam levar a sua superioridade do momento – utilizando o seu grande poder militar como meio de promover a supremacia global dos EUA no novo mundo "unipolar". Se o neoliberalismo tinha surgido em resposta à estagnação económica, transferindo os custos da crise económica para os pobres de todo o mundo, o problema do declínio da hegemonia económica dos EUA parecia exigir uma resposta um tanto diferente: a reafirmação do poder dos EUA como um colosso militar do sistema mundial.

Imediatamente depois do colapso da União Soviética, o Departamento de Defesa, sob a administração de George H. W. Bush, iniciou a reapreciação da política de segurança nacional dos EUA à luz da mudança da situação global. O relatório, terminado em Março de 1992 e conhecido por Guia de Planeamento da Defesa, foi escrito sob a supervisão de Paul Wolfowitz, na altura subsecretário da política no Departamento da Defesa. Indicava que o principal objectivo de segurança nacional dos Estados Unidos tinha que ser o de "impedir o aparecimento de qualquer potencial competidor global" ( New York Times, March 8, 1992). O debate que se seguiu no seio da elite governante americana nos anos 90 centrou-se menos sobre se os Estados Unidos deviam procurar uma primazia global do que sobre se devia adoptar uma abordagem mais multilateral ("xerife e ajudantes", como baptizou Richard Haass) ou uma abordagem unilateral. Alguns dos actores principais que viriam a fazer parte da futura administração de George W. Bush, incluindo Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz, ficaram de organizar o Projecto para o Novo Século Americano. Estes, na expectativa de Bush ganhar a Casa Branca, e a pedido do então candidato à vice-presidência Dick Cheney, produziram um documento sobre política externa, intitulado Reconstrução das Defesas da América (Setembro de 2002), reafirmando a estratégia unilateral e abertamente agressiva do Guia de Planeamento de Defesa de 1992. Na sequência do 11 de Setembro de 2001, esta abordagem acabou por ser a política oficial dos EUA na Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos de 2002. O soar dos tambores de guerra para a invasão do Iraque coincidiu com a publicação desta nova declaração de segurança nacional – na realidade a declaração de uma nova guerra mundial.

É vulgar, conforme já afirmámos, que os críticos atribuam estas mudanças dramáticas apenas à conquista dos centros de comando políticos e militares do estado americano por uma pandilha neoconservadora (elevada ao poder pelas contestadas eleições de 2000) a qual, aproveitando a oportunidade fornecida pelos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, conduziu a uma ofensiva imperial global e a um novo militarismo. No entanto, a expansão do império americano, na sequência da morte da União Soviética, já estava, como demonstrado anteriormente, bem avançada no tempo e foi um projecto bipartidário logo de início. Sob a administração Clinton, os Estados Unidos travaram guerra nos Balcãs, anteriormente parte da esfera soviética na Europa de Leste, enquanto iniciavam também o processo de estabelecer bases militares na Ásia Central, anteriormente parte da própria União Soviética. Nos finais dos anos 90 o Iraque estava a ser bombardeado diariamente. Quando John Kerry, quando foi candidato presidencial Democrata nas eleições de 2004, repetia que iria continuar a guerra no Iraque e a guerra contra o terrorismo, na verdade ainda com maior determinação e mais recursos militares – e que só discordava quanto ao grau com que os Estados Unidos adoptavam uma postura de vigilante solitário em oposição à postura de xerife e ajudantes – estava apenas a dar continuidade ao que fora a postura dos Democratas quanto ao império durante e depois dos anos 90: um imperialismo total mas escondido.

Do ponto de vista mais profundo proporcionado por uma crítica histórico-materialista do capitalismo, nunca houve dúvidas quanto à direcção que o imperialismo americano iria tomar na sequência da queda da União Soviética. O capitalismo, pela sua própria lógica, é um sistema globalmente expansivo. O sistema não consegue ultrapassar a contradição entre as suas aspirações económicas transnacionais e o facto de politicamente se manter enraizado em determinados estados nações. No entanto, as tentativas fracassadas feitas por estados individuais para ultrapassar esta contradição também fazem parte da sua lógica fundamental. Nas actuais circunstâncias mundiais, quando um estado capitalista possui um monopólio virtual dos meios de destruição, esse estado não consegue resistir à tentação de tentar apropriar-se do domínio de espectro total e de se transformar no estado global de facto que governa a economia mundial. Como observou o conhecido filósofo marxista István Mészáros em Socialism or Barbarism? (2001) – escrito, significativamente, antes de George W. Bush se tornar presidente: "O que hoje está em jogo não é o controlo de uma determinada parte do planeta – por muito grande que seja – que coloca em desvantagem, sem deixar de as tolerar, as acções independentes de alguns rivais, mas sim o controlo da totalidade desse planeta por uma superpotência económica e militar hegemónica, com todos os meios à sua disposição – mesmo os do autoritarismo mais extremo e, se necessário, os militarmente violentos."

Os perigos sem precedentes desta nova desordem global revelam-se nos cataclismos igualmente sem precedentes a que o mundo está a ser levado com a actual proliferação nuclear e as consequentes hipóteses acrescidas da explosão de uma guerra nuclear e da destruição ecológica do planeta. Isto é simbolizado pela recusa da administração Bush em assinar o Acordo Abrangente de Interrupção de Experiências para limitar o desenvolvimento de armas nucleares e a recusa de assinar o Protocolo de Quioto como primeiro passo para o controlo do aquecimento global. Como declarou Robert McNamara, antigo secretário da Defesa americano (nas administrações de Kennedy e de Johnson), num artigo intitulado " Apocalypse Soon " na edição de Maio-Junho de 2005 de Foreign Policy : "Os Estados Unidos nunca sancionaram a política de 'não seremos os primeiros', nem durante os sete anos em que fui secretário nem desde então a esta data. Estivemos e continuamos a estar preparados para iniciar a utilização de armas nucleares – pela decisão de uma pessoa, o presidente – seja um inimigo nuclear ou não nuclear, sempre que considerarmos que isso é do nosso interesse". A nação com a maior força militar convencional e a disposição de usá-la unilateralmente para aumentar o seu poder global é a mesma nação com a maior força nuclear e a disponibilidade para a utilizar sempre que achar apropriado – deixando inquieto o mundo inteiro. A nação que mais que qualquer outra contribui para as emissões de dióxido de carbono que provocam o aquecimento global (representando aproximadamente um quarto do total mundial) tornou-se o maior obstáculo à resolução do aquecimento global e dos crescentes problemas ambientais mundiais – levantando a possibilidade do colapso da própria civilização se a tendência actual continuar.

Os Estados Unidos estão a tentar exercer uma autoridade soberana sobre o planeta numa época de aprofundamento da crise global: a estagnação económica, a crescente polarização entre os ricos globais e os pobres globais, que enfraquecem a hegemonia económica dos EUA, aumentam as ameaças nucleares, e aprofundam o declínio ecológico. O resultado é o aumento da instabilidade internacional. Estão a surgir no mundo outras forças potenciais, como a Comunidade Europeia e a China, que poderão vir a desafiar o poder dos EUA, a nível regional e mesmo a nível global. As revoluções no terceiro mundo, longe de acabarem, estão a ganhar um novo ímpeto, simbolizadas pela Revolução Bolivariana da Venezuela com Hugo Chavez. As tentativas dos EUA de apertar as suas garras imperiais sobre o Médio Oriente e sobre o seu petróleo defrontaram-se com uma resistência iraquiana feroz, aparentemente impossível de deter, gerando condições para um esgotamento imperial. Com os Estados Unidos a brandir o seu arsenal nuclear, a proliferação nuclear continua. Novas nações, como a Coreia do Norte, estão a aderir ou podem vir a aderir brevemente ao "clube nuclear". A repercussão terrorista das guerras imperialistas no terceiro mundo é hoje uma realidade bem reconhecida, gerando um medo crescente de mais ataques terroristas em Nova Iorque, Londres e noutros lugares quaisquer. Estas grandes e sobrepostas contradições históricas, com raízes no desenvolvimento combinado e irregular da economia capitalista global aliadas à gula americana pelo domínio do planeta, prenunciam o que é potencialmente o período mais perigoso da história do imperialismo.

O percurso em que os EUA e o capitalismo mundial estão neste momento empenhados aponta para um barbarismo global – ou pior. Contudo é importante relembrar que nada no desenvolvimento da história humana é inevitável. Ainda existe um caminho alternativo – a luta global por uma sociedade humana, igualitária, democrática e sustentável. O nome clássico para tal sociedade é "socialismo". Tem que se iniciar uma luta renovada por um mundo de verdadeira igualdade humana, agarrando o elo mais fraco do sistema e simultaneamente as necessidades mundiais mais prementes – organizando um movimento de resistência global contra o novo imperialismo nu e cru.

[*] Editor da Monthly Review. Autor de Marx's Ecology: Materialism and Nature e de The Vulnerable Planet. Este texto é a introdução da obra Naked Imperialism: America's Pursuit of Global Dominance, de John Bellamy Foster, a ser publicado em Fevereiro de 2006 pela Monthly Review Press. Uma versão diferente deste ensaio foi publicada anteriormente como introdução a uma edição em turco dos seus escritos sobre imperialismo, intitulada Rediscovering Imperialism.

[1] Título de um poema de Rudyard Kipling que encorajou os EUA a manterem as Filipinas, considerando os nativos meio crianças, meio demónios.


O original encontra-se em: http://www.monthlyreview.org/0905jbf.htm .
Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

15/Set/05