A bolha do endividamento familiar
por John Bellamy Foster
Este artigo retoma uma questão levantada aqui há seis anos
em
Working-Class Households and the Burden of Debt,
Monthly Review,
Maio 2000. Constitui uma tentativa de actualizar e alargar essa
análise anterior. Embora os quadros inseridos abaixo sejam semelhantes
aos do artigo anterior, foram feitas algumas mudanças na
apresentação dos dados devido a alterações nas
fontes estatísticas governamentais.
É uma verdade incontornável da economia capitalista que a
distribuição desigual dos rendimentos, com base nas classes,
é um factor determinante do consumo e do investimento. A quantidade dos
gastos em bens de consumo depende dos rendimentos da classe trabalhadora. Os
trabalhadores gastam necessariamente todo ou quase todo o seu rendimentos em
bens consumo. Assim, para as famílias que estão nos 60 por cento
mais baixos da distribuição de rendimentos nos Estados Unidos, as
despesas médias com consumo pessoal equivaleram ou ultrapassaram o
rendimento médio antes de impostos em 2003; enquanto que o quinto da
população imediatamente acima delas gastou em consumo cinco
sextos dos seus rendimentos antes de impostos (a maior parte do excedente foi
sem dúvida levada pelos impostos).
[1]
Em contrapartida, os que se situam no topo da pirâmide dos rendimentos
a classe capitalista e os seus parceiros relativamente ricos
gastam uma percentagem muito menor dos seus rendimentos em consumo pessoal. A
maior parte dos rendimentos dos capitalistas (que a este nível tem que
ser estendida a fim de incluir ganhos de capital não realizados)
é dedicada ao investimento.
Daí que se possa esperar que uma desigualdade cada vez maior nos
rendimentos e na riqueza venha a criar o velho quebra-cabeças do
capitalismo: um processo de acumulação
(poupança-e-investimento) que depende da manutenção de
salários baixos enquanto se confia no consumo baseado nesses mesmos
salários para sustentar o crescimento económico e o investimento.
É impossível fazer o que foi sugerido no princípio do
século XX pelo economista americano J.B. Clark "construir
mais fábricas que produzam mais fábricas eternamente"
quando não existe procura suficiente dos consumidores para os produtos
criados nessas fábricas.
[2]
Nestas circunstâncias, em que o consumo e portanto o investimento
estão fortemente dependentes dos gastos daqueles que estão no
ponto mais baixo do fluxo do consumo, seria natural supor que uma
estagnação ou decréscimo dos salários reais gerasse
uma tendência de crise para a economia, restringindo os gastos gerais com
o consumo. Não há dúvidas quanto à crescente
compressão das rendimentos baseados nos salários. Excepto no que
se refere a uma pequena subida nos anos 90, há décadas que os
salários reais estão a marcar passo. Uma família
típica (de rendimento mediano) tenta compensar isso aumentando o
número de empregos e trabalhando horas extras. Apesar disso, o
rendimento real (com ajustamento da inflação) duma família
típica baixou durante cinco anos seguidos até 2004. Em
2003-2004, os 95 por cento de famílias que se encontram no grupo
inferior de rendimentos, sofreram uma redução dos rendimentos
médios reais por agregado familiar (tendo os 5 por cento do topo, claro,
feito lucros maiores). Em 2005 os salários reais cairam em 0,8 por cento.
[3]
Apesar disso, em vez de sofrer um decréscimo, o consumo global continuou
a aumentar. Com efeito, o crescimento económico dos EUA está cada
vez mais dependente do que à primeira vista parece ser uma subida
imparável do consumo. Entre 1994 e 2004, o consumo cresceu mais depressa
do que a rendimento nacional, com a fatia dos gastos em consumo pessoal no PIB
subindo de 67 para 70 por cento.
[4]
Como é que se explica este paradoxo decréscimo dos
salários reais e disparo do consumo?
Quando, neste mesmo local, em Maio de 2000 (perto do final da anterior
expansão do ciclo de negócios), comentámos o mesmo
problema, perguntávamos:
Mas se é esse o caso [estagnação de salários],
donde vem todo este consumo? Será que o capital conseguiu por qualquer
forma a quadratura do círculo aumentar o consumo rapidamente
enquanto simultaneamente mantém os salários baixos? A resposta
óbvia ou pelo menos grande parte dela é que num
período de estagnação de salários, os trabalhadores
vivem cada vez mais acima das suas posses, contraindo empréstimos para
conseguir juntar as pontas (ou, nalguns casos, para tentar desesperadamente
melhorar um pouco o seu nível de vida). Em grande medida, a actual
expansão económica foi comprada à custa da dívida
do consumo.
Se era esse o caso há seis anos, pouco antes da última
recessão económica, ainda o é mais hoje e as
possíveis consequências são piores. Como os gastos com o
consumo têm vindo a aumentar nos Estados Unidos muito mais depressa do
que os rendimentos, o resultado tem sido um aumento no rácio da
dívida global do consumo em relação à rendimento
disponível. Como se mostra na
Tabela 1,
o rácio entre a considerável dívida do consumidor e o
rendimento disponível do consumidor mais que duplicou nas últimas
três décadas, de 62 por cento em 1975 para 127 por cento em 2005.
Isto foi possível, em parte, devido às taxas de juro
historicamente baixas, que tornaram mais fácil contrair dívidas
nos últimos anos (embora as taxas de juro estejam agora a subir).
Assim,
um melhor indicador do real impacto financeiro do endividamento familiar
é fornecido pelo rácio do serviço da dívida
pagamentos do consumidor de juros e prestações, contra rendimento
disponível do consumidor. O
Gráfico 1
mostra o rápido aumento na relação do serviço da
dívida durante o último quarto de século, desde 1980
até aos dias de hoje, com uma subida acentuada a começar nos
meados dos anos 90 e que continua até hoje apenas com ligeiras
interrupções.
Porém, os dados agregados desta forma não nos dizem muito sobre o
impacto de tal endividamento nos diversos grupos (classes) de rendimentos. Para
esse tipo de informações é necessário recorrer
à Análise das Finanças do Consumidor do Conselho da
Reserva Federal, que é realizado de três em três anos.
A
Tabela 2
apresenta dados sobre o que se chama a "carga do endividamento
familiar" (percentagem dos pagamentos do serviço da dívida
em relação à rendimento disponível) por
percentagens de rendimentos. Embora a carga do endividamento familiar tenha
descido em quase todos os níveis de rendimentos durante a
recessão mais recente (assinalada no relatório de 2001), aumentou
subitamente durante a última vagarosa expansão. Para as
famílias nas percentagens de rendimentos medianos (40.0-59.9), a carga
do endividamento atingiu agora o seu nível mais alto de todo o
período de 1995-2004. Estas famílias viram os pagamentos do
serviço de dívida aumentarem, em percentagem do rendimento
disponível, cerca de 4 pontos percentuais desde 1995, atingindo quase os
20 por cento valor mais alto do que em qualquer outro grupo de
rendimentos. A carga de endividamento mais baixo encontra-se naturalmente nas
famílias das percentagens de rendimentos mais altos (90-100), onde baixa
para menos de 10 por cento do rendimento disponível.
Tudo isto aponta para a natureza de classe da distribuição do
endividamento familiar. Isto é ainda mais óbvio quando se olha
para as famílias endividadas que suportam cargas de endividamento
extremamente altas e para as que estão com mais de sessenta dias de
atraso nos pagamentos dos seus compromissos de dívida. A
Tabela 3
mostra a percentagem de famílias endividadas, por percentis de
rendimentos, que têm cargas de endividamento familiar acima dos 40 por
cento. Este aperto financeiro é inversamente proporcional aos
rendimentos. Mais de um quarto das famílias endividadas mais pobres
que constituem um quinto, o mais baixo, de todas as famílias
estão a suportar estas pesadas cargas de endividamento familiar.
As famílias nos dois quintos acima, i.e. nos percentis de rendimento
20.0-59.9, sofreram aumentos na mesma percentagem das famílias
endividadas que suportam esta excessiva carga de endividamento desde 1995
sendo que o número de família endividadas apanhadas nesta
ratoeira subiu para cerca de 19 por cento no segundo quinto mais baixo, e para
cerca de 14 por cento no quinto do meio. Em contrapartida, para as
famílias que se situam nos 40 por cento dos rendimentos mais altos, a
percentagem dos lares que suportam tal aperto financeiro tem diminuído
desde 1995. Assim, nesta rápida subida do endividamento em
relação ao rendimento disponível, o aperto financeiro
assenta ainda mais solidamente nas famílias da classe trabalhadora, de
rendimentos mais baixos.
O aumento da carga de endividamento familiar, claro, abre o caminho para
incumprimentos e falências. Durante a primeira
administração de G.W. Bush, houve quase cinco milhões de
falências individuais, um recorde em qualquer mandato único na
Casa Branca. Ultimamente diminuiu o número de falências
pelo menos a curto prazo por causa da pesada legislação de
falências aprovada pelo Congresso em 2005. Mas, ao tornar mais
difícil para as famílias libertarem-se da pesada carga de
endividamento, o efeito será certamente aumentar o número de
trabalhadores que são essencialmente "escravos contratados dos
tempos modernos".
[5]
A
Tabela 4
mostra a percentagem de famílias endividadas em cada categoria de
rendimentos que estão atrasadas em sessenta dias ou mais no pagamento
dos seus compromissos. No que se refere às famílias abaixo do
80º percentil de rendimentos, a percentagem de famílias endividadas
que cai nesta categoria aumentou fortemente desde 1995. Em contrapartida, as
famílias no 80º percentil e acima dele, sofreram uma
redução na percentagem de famílias endividadas que
estão atrasadas nos pagamentos dos seus compromissos. De novo,
verifica-se que o crescimento do aperto financeiro nos Estados Unidos
está hoje concentrado nos agregados familiares da classe trabalhadora.
A maior parte do endividamento é provocada pela residência
primária, o património principal da grande maioria das
famílias. A dívida das casas hipotecadas continuou a subir
fortemente. Entre 1998 e 2001 o valor mediano da dívida
hipotecário aumentou 3,8 por cento, enquanto que, de 2001 a 2004,
atingiu uns fenomenais 27,3 por cento! Cerca de 45 por cento de
proprietários de casas com uma primeira hipoteca refinanciaram as suas
casas em 2001-04 (comparando com 21 por cento nos três anos anteriores),
sendo que mais de um terço destes contraíram empréstimos
para além do valor refinanciado. O valor mediano do capital adicional
conseguido por estes devedores foi de 20 mil dólares.
[6]
Apesar do aumento em espiral dos preços das casas nos últimos
anos, o rácio entre capital/valor dos bens imobiliários
familiares dos proprietários de casas continuou a diminuir de 68 por
cento em 1980-89, para 59 por cento em 1990-99, para 57 por cento em 2000-05.
[7]
Como os preços das casas subiram em espiral, apareceram outras formas de
hipoteca mais perigosas. O editor do
Left Business Observer,
Doug Henwood, assinalou em
The Nation
(27/Março/2006),
Tempos houve em que era preciso entrar com um pesado pagamento inicial para
comprar uma casa. Agora não: em 2005 um primeiro comprador mediano
entrava apenas com 2 por cento do preço de compra, e 43 por cento
não fazia qualquer pagamento. E cerca de um terço das novas
hipotecas em 2004 e 2005 foram feitas a taxas flutuantes (porque os pagamentos
iniciais são mais baixos do que os empréstimos a taxa fixa). Em
picos anteriores as taxas de juro atingiram alturas cíclicas, mas nos
últimos anos tem-se assistido às taxas de juro mais baixas em
toda uma geração. Assim as hipotecas com taxas flutuantes
provavelmente só flutuam num sentido: para cima.
[8]
A família típica também está atolada no
endividamento por cartão de crédito. Actualmente cerca de dois
terços de todos os possuidores de cartões têm saldos e
pagam encargos financeiros todos os meses sendo que o saldo negativo
médio por possuidor de cartão subiu para 4 956 dólares no
final de 2005. Nos últimos anos, houve uma mudança de
cartões de taxa fixa para taxa variável, quando as taxas de juro
começaram a subir, havendo neste momento cerca de dois terços de
todos os cartões com taxas variáveis um pouco mais do que
há meio ano. As taxas de juro sobre cartões estão a subir
rapidamente o que o
Wall Street Journal
chamou "A Catapulta do Cartão de Crédito"
(25/Março/2006). A taxa média de juros dos cartões de taxa
variável saltou de 12,8 por cento em 2005 para 15,8 por cento em
Fevereiro de 2006. Entretanto, a parte dos lucros dos emissores de
cartões de crédito correspondentes às taxas subiu de 28
por cento em 2000 para uns 39 por cento em 2004. No seu conjunto, os saldos
não pagos de cartões de crédito no final de 2005
totalizaram 838 mil milhões de dólares.
[9]
Os efeitos disto recaem mais pesadamente nas classes trabalhadoras e nas
famílias de rendimentos médios. Segundo o Survey of Consumer
Finances, a percentagem de agregados familiares que têm saldos de
cartões de crédito aumenta nas de rendimentos até ao
90º percentil, e depois cai na vertical.
Outra esfera crescente de empréstimos é o crédito a
prestações, juntamente com empréstimos que têm
pagamentos fixos e prazo fixo, como o crédito para automóveis e o
crédito para estudos que constituem as duas maiores áreas
de créditos a prestações. Em 2001-04 o valor médio
destes empréstimos aumentou em 18,2 por cento.
[10]
As famílias de baixos rendimentos estão cada vez mais sujeitas ao
crédito predatório: prestações diárias,
prestações de automóveis, segundas hipotecas, etc.
todas elas crescendo rapidamente no actual clima de aperto financeiro. Segundo
o Center for Responsible Lending (Centro para o Crédito
Responsável),
Um empréstimo típico para automóvel tem uma taxa de juro
anual de três dígitos, exige reembolso no prazo de um mês, e
é feito por muito menos do que o valor do carro... Como os
empréstimos estão estruturados para serem reembolsados num
único pagamento e a um prazo muito curto, muitas vezes os devedores
não conseguem pagar o valor total devido na data de vencimento e ficam
na situação de estender ou "adiar" a dívida
repetidamente. Desta forma, muitos devedores pagam encargos muito para
além da quantia que inicialmente pediram emprestado. Se o credor falha
no cumprimento destes pagamentos recorrentes, o credor pode retomar a posse do
carro sumariamente.
[11]
O aperto financeiro crescente dos agregados familiares levou ao aparecimento de
um exército de cobradores de dívidas, tendo o número de
empresas especializadas em comprar e cobrar dívidas não pagas
subido de cerca de 12 em 1996 para mais de 500 em 2005. Segundo o
Washington Post,
isto levou a: "Chamadas embaraçosas para o local de trabalho.
Ameaças de cadeia e mesmo violência. Levantamentos indevidos de
contas bancárias. Um número cada vez maior de consumidores
queixa-se das técnicas abusivas destas empresas que constituem uma nova
geração de cobradores de dívidas".
[12]
Neste contexto geral de endividamento familiar crescente, é
evidentemente o rápido crescimento do empréstimo garantido pela
casa que tem maior significado macroeconómico, e que permitiu que este
sistema de expansão do endividamento inflacionasse tão
rapidamente. Os proprietários de imóveis estão cada vez
mais a desvalorizar o capital das suas casas a fim de satisfazer as suas
necessidades de consumo e pagar os saldos do seu cartão de
crédito. Em consequência, "no período de Outubro a
Dezembro [2005], o volume de empréstimos por novas hipotecas
líquidas de residências subiu US$1,11 milhões de
milhões, elevando o nível da hipoteca global para US$8,66
milhões de milhões uma quantia que equivale a 69,4 por
cento do PIB dos EUA".
[13]
O facto de isto estar a acontecer numa altura de crescente desigualdade de
rendimentos e riqueza ou de salários reais estagnados e rendimentos
reais em declínio para a maioria das pessoas deixa poucas dúvidas
de que isto se deve, em grande medida, à necessidade de as
famílias tentarem manter os seus padrões de vida.
A bolha da habitação, associada à alta dos preços
das casas e aos associados aumentos no refinanciamento e gastos com a casa, que
se desenvolvem há décadas, foi um factor importante para permitir
a recuperação da economia desde o afundamento do mercado de
acções e da recessão no ano seguinte. Dois anos apenas
após o declínio do mercado de acções, a irreverente
analista económica e financeira Stephanie Pomboy, da MacroMavens,
já estava a escrever sobre "A grande transferência da
bolha", em que a expansão prolongada da bolha da
habitação compensava milagrosamente o declínio da bolha do
mercado de acções, estimulando o crescimento em sua
substituição . No entanto, "tal como a bolha nos bens
financeiros", escreveu Pomboy,
A nova bolha dos bens imobiliários tem características claramente
perturbadoras. Por exemplo, pode argumentar-se, e de forma convincente, que a
casa passou a ser a nova "conta aberta" pois os consumidores
através de programas populares como "cash-out Refi"
(refinanciamento) recorrem ao seu maior activo único devido a
ganhos não realizados. Talvez a marca mais perturbadora desta mania
Refi seja o correspondente afundamento da liquidez dos proprietários das
casas ... Os números do "cash-out Refi" revelam uma
"febre especulativa" que faz empalidecer a loucura Nasdaq
[NT]
Segundo estimativas de Fannie Mae, a saída de caixa média da
Refi é de 34 mil dólares. Isto parece-me imenso, principalmente
se considerarmos que o preço mediano duma casa é de apenas 150
mil dólares... ou seja, a média é que o Zé
está a extrair 20% o valor da sua casa!
[14]
A surpreendente intensidade dos gastos com o consumo, crescendo mais
rapidamente do que o rendimento disponível, tem sido frequentemente
atribuída ao efeito de enriquecimento no mercado de acções
(a noção de que o valor de alguns pontos na subida de riqueza no
mercado de acções são empregues pelos ricos em maiores
gastos de consumo visto que são eles que possuem a maior parte
das acções do país)
[15]
Pomboy argumenta, no entanto, que "há indícios que sugerem
que o efeito do enriquecimento no imobiliário pode ser
significativamente maior do que o efeito do enriquecimento no mercado de
acções... Segundo um recente estudo de Robert Schiller (o
conhecido "Exuberância Irracional"), a habitação
foi
sempre
para os consumidores um motor mais importante do que o mercado de
acções. Na sua rigorosa análise, estado a estado, e em 14
análises de países, Schiller concluiu que a
correlação da habitação com o consumo era o
dobro
da do mercado de acções". Para Pomboy, isto sugeria que
estava escrito nas paredes: "Como o capital dos proprietários de
casas está sempre a baixar, qualquer pequeno abaixamento dos
preços das casas poderá provocar o risco de uma cascata em
direcção a uma situação líquida negativa.
Mas, de forma ainda mais imediata, o aumento do serviço da dívida
de hipotecas (mais uma vez, apesar de novas baixas nas taxas de hipoteca)
não prenuncia nada de bom para o consumo quando o Fed se prepara para
inverter caminho" e aumentar as taxas de juro.
A diminuição do capital próprio da casa e o aumento no
serviço da dívida da hipoteca (e o rácio do serviço
da dívida como um todo) indica quão grande é hoje na
verdade a "febre especulativa" que está na base do crescimento
do consumo. A bolha da habitação e o peso do consumo na economia
estão ligados ao que se poderá designar por "bolha do
endividamento familiar", que poderá rebentar facilmente em
resultado da subida das taxas de juro e da estagnação ou
declínio dos preços das casas. Com efeito, o preço
mediano de uma nova casa tem descido de há quatro meses para cá,
com vendas de casas novas unifamiliares caindo em 10,5 por cento em Fevereiro,
a maior descida em quase uma década, assinalando possivelmente o
rebentamento da bolha da habitação.
Numa recente entrevista, "Handling the Truth" ("Falando
Verdade") na revista
Barron's,
Stephanie Pomboy argumentou que a economia dos EUA se encaminhava para "um
ambiente de estagflação [crescimento fraco aliado a um alto
desemprego e preços em alta]". Entre as razões para tal,
afirmou, estavam as deficientes rendimentos salariais e a incapacidade de os
consumidores continuarem a suportar a bolha da dívida da
habitação. "O poder de compra do consumidor já
está limitado pelo... crescimento esbatido dos rendimentos, em especial
dos salários". Para Pomboy, as empresas têm vindo a
concentrar-se cada vez mais no segmento alto do mercado de consumo nos
últimos anos, enquanto que o segmento baixo (a parte suportada pelos
consumidores com base apenas nos seus salários) está em perigo de
se desmoronar. Até a Wal-Mart, bastião dos preços baixos,
que fornece principalmente a classe trabalhadora, está a começar
a oferecer produtos adequados a famílias de rendimentos mais altos.
[16]
A fragilidade dos rendimentos mais baixos, e a compressão no consumo da
classe trabalhadora o chamado "consumo do segmento baixo"
é uma grave preocupação para a economia que se
tornou cada vez mais dependente do consumo para alimentar o crescimento, dada a
estagnação do investimento. Com poucas expectativas de lucros em
novos investimentos, as empresas têm estado sentadas sobre enormes lucros
corporativos não distribuídos, que chegaram, diz Pomboy, a 500
mil milhões de dólares e se situam agora à volta de 440
mil milhões. O dinheiro total disponível das empresas, que
estavam "dentro da gaveta" no final de 2005 era, segundo a
Barron's,
um recorde de 2 milhões de milhões de dólares. "O
chocante, obviamente", afirma Pomboy, "é que eles têm
estado sentados sobre este dinheiro e não estão a fazer nada com
ele apesar dos incríveis incentivos para o gastar, não só
fiscalmente mas do ponto de vista das taxas de juros. Não parece que
guardar e sentar sobre o dinheiro na gaveta seja agora uma ideia de
investimento particularmente convincente. Ela revela muito acerca do ambiente
que os administradores de empresas vêm lá fora, com a
potencialmente contínua oferta excessiva [de capital] a que
chegámos no período pós-bolha".
[17]
A verdade é que, sem uma intensificação do investimento
nos negócios a economia dos EUA estagnará uma realidade
que as bolhas especulativas podem adiar e disfarçar de diversas
maneiras, mas não conseguem ultrapassar totalmente. Mas o investimento
está bloqueado pela super-acumulação e pela
super-capacidade. Portanto, o resultado provável será o
crescimento lento continuado, mais endividamento, e potencial para desastres
financeiros. Não há milagre de crescimento pelo qual uma
economia capitalista madura orientada para a alta exploração e
com oportunidades de investimento evanescentes (e incapaz de expandir as
exportações líquidas para o resto do mundo) possa
continuar a crescer rapidamente a não ser por meio da
acção de bolhas que ameaçam finalmente acabar por
rebentar.
A tragédia da economia dos EUA não é o consumo excessivo
mas o facto de uns poucos procurarem desenfreadamente a riqueza à custa
de toda a população. Como única resposta resta a
reconstrução verdadeiramente revolucionária de toda a
sociedade. Essa reconstrução radical obviamente não se
encontra de momento em cima da mesa. No entanto, chegou a altura de uma
renovada luta de classes a partir de baixo não só para
indicar o caminho para um eventual novo sistema, mas também, mais no
imediato, para proteger os trabalhadores dos piores fracassos do velho sistema.
Não está em causa onde tais lutas devam começar: o
trabalho deve renascer das suas cinzas.
Notas
1- Ver U.S. Department of Labor, Bureau of Labor Statistics,
Consumer Expenditures in 2003,
June 2005, table 1,
http://www.bls.gov/cex/
.
2- Clark citado em Paul M. Sweezy,
The Theory of Capitalist Development
(New York: Monthly Review Press, 1970), 16869.
3- "Economy Up, People Down," August 31, 2005, e "Real
Compensation Down as Wage Squeeze Continues," January 31, 2006, Economic
Policy Institute,
http://www.epi.org
.
4- As quotas de investimento, governo e exportação mantiveram-se
as mesmas em 1994 e 2004 em 16, 19, e 10 por cento, respectivamente, enquanto
que a quota de importações (deduzida do PIB) passou de 12
para 15 por cento. U.S. Department of Labor, Bureau of Labor Statistics,
Occupational Outlook Quarterly
49, no. 4 (Winter 200506): 42,
http://www.bls.gov/opub/ooq/2005/winter/contents.htm/
.
5- Kevin Phillips,
American Theocracy
(New York: Viking, 2006), 32425.
6- "Recent Changes in U.S. Family Finances" (ver nota na Tabela 2
deste artigo), A28A29.
7- "Household Financial Indicators," Board of Governors, Federal
Reserve System,
Flow of Funds,
2006.
8- Doug Henwood, "Leaking Bubble,"
The Nation,
March 27, 2006.
9- "The Credit-Cart Catapult,"
Wall Street Journal,
March 25, 2006; Phillips,
American Theocracy,
327.
10- "Recent Changes in U.S. Family Finances" (ver nota da Tabela 2
neste artigo), A28.
11- The Center for Responsible Lending and the Consumer Federation of America,
Car Title Lending
(April 14, 2005),
http://www.responsiblelending.org
.
12- "As Debt Collectors Multiply, So Do Consumer Complaints,"
Washington Post, July 28, 2005.
13- "Household Financial Conditions: Q4 2005," Financial Markets
Center, March 19, 2006,
http://www.fmcenter.org
.
14- Stephanie Pomboy, "The Great Bubble Transfer," MacroMavens, April
3, 2002,
http://www.macromavens.com/reports/the_great_bubble_transfer.pdf
.
15- Ver por exemplo o tratamento sobre isto em Council of Economic Advisors,
The Economic Report of the President,
2006, 2930,
http://www.gpoaccess.gov/eop/
.
16- Stephanie Pomboy, "Handling the Truth," Barron's, February 7,
2005, www.macromavens.com/reports/barron's_interview.pdf; "Wal-Mart Fishes
Upstream," Business Week Online, March 24, 2006.
17- Pomboy, "Handling the Truth"; "Too Much Cash,"
Barron's,
November 7, 2005. Ver também "Long on Cash, Short on Ideas,"
New York Times,
December 5, 2004.
N.T.-
NASDAQ -
National Association of Securities Dealers Automated Quotation System
(Sistema Electrónico de Cotação da
Associação Nacional de Intermediários de Valores).
O original encontra-se em
http://www.monthlyreview.org/0506jbf.htm
.
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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