A provocação turca
O abate de um F-4 Phantom turco pelas defesas antiaéreas sírias
forneceu o pretexto para mais uma escalada. Num primeiro momento, o Governo de
Ancara admitiu que a aeronave houvesse invadido o espaço aéreo e
o Governo de Damasco lamentou a ocorrência. O atrito poderia e deveria
situar-se e sanar-se a nível diplomático se as
reacções se pautassem pelo princípio da boa-fé e da
boa vizinhança. Mas rapidamente foi accionada outra resposta. Os
Gabinetes de Guerra da Tríplice Aliança (NATO/Israel/Monarquias
do Golfo) rapidamente transferiram o problema para a Agenda Militar e para o
Jornalismo de Campanha. Evidente se torna que os actores externos do conflito
montaram esta ratoeira, no sentido de explorar a hipótese de uma
intervenção da NATO, sustentada na inventona de um ataque a um
membro da organização. Dado que a Rússia e a China
têm inviabilizado, até agora, o recurso à força com
cobertura do Conselho de Segurança das Nações Unidas, os
ingerencionistas, além do agravamento das sanções
económicas por livre arbítrio e da facilitação de
campos de treino e corredores de infiltração, armas,
direcção operacional, mercenários, serviços de
inteligência, dinheiro e dispositivos mediáticos, resolveram
iniciar o teste do plano B. Se a experiência de campo se mostrar
repetível e rentável, esperam-se novas fricções e
ficções de fronteira, não sendo de excluir atentados em
território turco, imputáveis às autoridades sírias.
As encenações e as dramatizações são
molduras clássicas das artes da beligerância. Os Estados Unidos
são verdadeiros artistas a forjar e a empolar factos e a agir e a reagir
em conformidade e consequência. Cuba, Vietname, Jugoslávia, Iraque
para citar algumas evidências-padrão fazem parte do
histórico maquinador e manipulador do Pentágono, da CIA e dos
"compagnons" de roteiro. A aposta na violência, ora selectiva,
ora total, ora declarada, ora dissimulada, as manhas e as patranhas, tudo faz
parte do jogo de cartas contra a Síria, com ou sem ONU. No teatro
sírio, como se comprovou no teatro líbio, para lá da
dimensão interna, é indisfarçável a dimensão
internacional: a Turquia, ciosa de um papel extraterritorial, disponibilizou-se
como plataforma de agressão e candidata à partilha de despojos,
cooperando com os Estados Unidos, donos e senhores da NATO, estes com um
guião de controlo geo-estratégico e de matérias-primas e
de remoção da Rússia e da China do mapa
mediterrânico, e com Israel, que projecta varrer da zona os regimes
hostis e pró-palestinianos, procurando também via verde na
estrada de Damasco para alcançar Teerão, liquidando, pelo
caminho, o obstáculo do Líbano, onde Telavive sofreu a
humilhação da retirada militar de 2006. Neste quadro e nesta
trama, as monarquias do Golfo comportam-se como marionetas, cientes de que o
seu destino está ligado ao complexo petrocastrense ocidental.
Entretanto, a NATO, a da exemplar ilegalidade da intervenção e da
inclemente devastação na Líbia e na Jugoslávia,
socorre-se de um Livro de Estilo para idiotas úteis, inspirado na
literatura columbófila e sentimental:
"Exemplo de desinteresse do Governo sírio pelas normas
internacionais da paz, segurança e vida humana".
[1]
PORTUGUESES DE PÁRA-QUEDAS?
Já o primeiro-ministro da Turquia, Erdogan, ameaça com uma
"resposta militar, avisando a Síria para se manter longe das
fronteiras"
[2]
, enquanto a Turquia instala armas e bagagens na raia, procede a actos
intrusivos de espionagem e faculta livre-trânsito a terroristas e
instrutores de diversas procedências. Consta que, entre os corpos
mercenários, há rasto de portugueses. Pára-quedistas
"libertadores" ou profissionais globais dirão os
Comentadores da "Psico" e os doutorandos em
Comunicação. PS/Passos Coelho estaria a pensar nestas
oportunidades de emprego quando aconselhou os jovens a emigrar? Um amigo, cujo
nome não revelo, devido às funções que desempenha
no espaço público, colocou-me a interrogação num
diálogo sobre os contornos e meandros do conflito. Cumpre ao
primeiro-ministro português ou que simula exercer tais
funções (a troika "é quem mais ordena") mandar
os Serviços Especializados da República inteirar-se das alegadas
actividades de mercenários lusos, certamente ao arrepio da "lei
internacional" e descaradamente contra um Estado da ONU. Confirmadas as
denúncias, cabe ao super-ministro Gaspar inquirir dos vencimentos dos
mercenários, a fim de que concorram para os
"sacrifícios" em sede de IRS ou IRC, pois todas as receitas
são bem-vindas para salvar os bancos e os mensalões do BCI/Bloco
Central de Interesses. A Imprensa espanhola já confirmou a
detenção de "hermanos" mercenários. As
Forças Armadas da Síria capturaram centenas de estrangeiros a
soldo. A dupla PP/Passos/Portas estará a conjecturar planos de resgate
de eventuais encarcerados pelos fiéis de Assad? O Supremo Comandante
sugerirá o destacamento de submarinos para se lavarem nas águas
de Tartus, defronte da esquadra russa?
O VALENTE SOLDADO ERDOGAN
Em 2010, após o sangrento e letal assalto israelense à
"Flotilha da Liberdade", que transportava 750 passageiros de 60
nacionalidades e 10.000 toneladas de ajuda humanitária, o Governo de
Erdogan chorou a morte de nove turcos e avisou atiladamente o Estado de Israel:
"vai sofrer as consequências". E foi mais longe. Atente-se na
viril advertência: "o ataque, ocorrido em águas
internacionais, não respeitou nenhuma lei internacional. De facto, era
um motivo para guerra. No entanto, como é próprio da grandeza da
Turquia, decidimos agir com paciência". No entanto, o Estado de
Israel, com apólice de seguro contra todos os riscos, emitida pelos USA
e pela UE, recusou-se a emitir uma desculpa, leve que fosse. Jeová
quando troveja não se desculpa com um ataque de tosse. É a
doutrina do Estado teocrático israelita. No entanto, Erdogan engrossou a
voz de Alá para consumo turco, árabe e islâmico, anunciando
o envio de forças navais para escoltar futuras missões:
"Não permitiremos que tais navios sejam mais uma vez alvo de
ataques de Israel". No entanto, um funcionário israelita
desvalorizou o verbo de Erdogan, fantasiado de patrulhador e pacificador do
"mare nostrum": "É muito difícil imaginar que um
membro da NATO como a Turquia vá tão longe".
[3]
No entanto, Erdogan proclamava ir. Num assomo de bombista-suicida, manifestou
a intenção de se deslocar, em carne e osso, à Faixa de
Gaza, integrado numa flotilha inatacável. Saldo da retórica:
não disparou uma canhonada de simulacro e desafronta, não mandou
uma Armada Invencível proteger os amigos dos palestinianos e os
palestinianos, muito menos pôs o pé na bloqueada e martirizada
Gaza. Claro que, com a Síria, o cenário é objectivamente
preocupante: Erdogan tem o apoio da NATO e de Israel. Por
instigação dos aliados e bazófia otomana, pode passar da
provocação primária e da peitaça
propagandística à guerra aberta e generalizada, puxando dos
galões de pequeno Átila para júbilo do Grande
Átila.
HITLER KISSINGER ÁTILA: GUERRA DO ESQUECIMENTO
Quem não embarcar em televisões e jornais do Império
concluirá que o crescente turco nunca foi um modelo de virtudes civis e
militares. É patético e revelador que os accionistas da
Aliança Atlântica, com a Turquia incluída, seleccionem um
curdo para a presidência do Conselho Nacional Sírio, sabendo-se
das implacáveis perseguições, dos assassinatos massivos,
das prisões e torturas, das deportações e dos
acantonamentos, das discriminações sociais e culturais que o
regime turco tem imposto e impõe como política aos curdos (20% da
população residente na Turquia oficial). Política
possível, graças à complacência e à
cumplicidade da NATO/da UE/dos USA, nomeadamente na tipificação
do Partido dos Trabalhadores do Curdistão como
"organização terrorista". Igualmente se tornaram
rotineiras as incursões terrestres e normalizados os bombardeamentos
aéreos do regime de Ancara contra os curdos no Iraque. Não
importa que a Turquia pratique terrorismo de Estado e acolha terroristas sem
pátria. A "dupla moral" não incomoda a dita
"comunidade internacional", cognome dos USA e da NATO. A chamada de
curdos à boca de cena apenas pretende consensualizar artificialmente a
simbólica anti-Assad, a fim de mover todas as peças do tabuleiro.
Os inimigos de uma Síria laica e independente trabalham com uma Agenda
Particular na Agenda Multilateral. O regime turco raramente prestou provas
democráticas e humanistas, não tendo grande património de
direitos universais para exportação. Lembraremos alguns lances do
calendário turco-otomano e de seus líderes, cujo ADN ainda pulsa
nas veias de Erdogan: em 1974, com o fechar de olhos da NATO e dos USA e o
beneplácito de Kissinger, o eterno criminoso sem mandado de captura do
TPI (consultar cadastros da guerra do Vietname, dos golpes da Indonésia
e do Chile e do morticínio de Timor-Leste), o regime turco lançou
a "Operação Átila", ocupando o Norte do Chipre,
forçando a partida de 180.000 cidadãos gregos (80% do efectivo
residente), situação de facto, ainda não reconhecida pela
ONU; em 1925-1930, milhares de curdos foram liquidados, porque mais uma vez, se
ergueram em luta pelos seus direitos étnicos e nacionais; em 1915-1917,
é ditado e concretizado o genocídio arménio (1,5
milhão de massacrados a tiro e a sabre, mortos à fome e à
sede, queimados vivos, afogados, deportados para campos de
concentração nos desertos da Síria e do Iraque,
escravizados, violados), após a eliminação de 20.000
arménios em 1909, programa de aniquilação total
interrompido pela derrota alemã de 1918 e pela adesão da
Arménia à URSS; em 1914, o regime otomano aliou-se à
Alemanha prussiana, participando ao lado dos Estados mais fora-de-lei e
sanguinários na Primeira Guerra Mundial. Estes traços do poder
turco-otomano são de vincar numa altura em que Ancara franqueia bases e
linhas de penetração a rebeldes e mercenários e dá
sinais de elevar a parada provocatória. Na realidade, a memória
não é deliberadamente cultivada. O genocídio
arménio, apesar de perpetrado há mais de 90 anos, só foi
reconhecido por 21 países. Atribui-se a Hitler, uma
observação, tão confiante na impunidade como gélida
e cínica, feita aos comandantes da Wehrmacht, antes da invasão da
Polónia e do holocausto dos guetos de Varsóvia: "Afinal,
quem fala hoje do extermínio dos arménios?" 4
ENTRE A NATO E O COLONATO
Curtíssima resenha esta das violências e reincidências
durante o séc. XX de uma grande potência euro-afro-asiática
que decaiu para potência regional de rédea curta, mas ainda com
tiques de Átila e Osman. Muito haveria a reportar e a ilustrar sobre o
Imperialismo Otomano (1299-1922), que, no séc. XVII, cobria 5.000.000
km2, de Gibraltar ao Iémene do Sul, passando pela Europa Central. Como
os demais impérios, expandiu-se, consolidou-se e desintegrou-se. A
oposição dos submetidos foi o factor determinante da derrocada e
da redefinição de identidades. A árvore tentacular do
califa Osman, "uma árvore com raízes em três
continentes e ramos até aos céus", deu lugar a um viveiro de
40 nações. Átila (406-453), o rei huno, legendado como
"flagelo de Deus", que aterrorizou a Europa romana, sitiando Roma e
Constantinopla, já não reina em Ancara. Os novos chefes
bárbaros têm sede em Washington, Bruxelas e Telavive. Erdogan
é um súbdito da Tríplice Aliança. Potencialmente
perigoso. Ambiciona disputar ao Irão e ao Egipto a regência
islâmica, mas as suas ambições regionais,
partidárias e pessoais estão condicionadas. Alimentará
alguma impulsividade e nostalgia
pós-Átila/pós-Osman/pós-1922 no modo como cuida de
curdos e sírios. É dos traumas pós-imperiais e do
oportunismo predatório. Mas contém-se a lidar com Israel.
Não irá "tão longe". Quem imaginará
Erdogan na pele de "flagelo" do séc. XXI? O primeiro-ministro
da Mesquita Azul consolar-se-á, porventura, a ler e a reler a "Vida
de São Hipátio":
"Mais de 100 cidades foram capturadas e Constantinopla chegou a estar em
perigo e a maioria dos homens pôs-se em fuga. Houve tantos assassinatos
que se deixou de contar os mortos. Assaltavam igrejas e conventos. Degolavam
monges e donzelas".
[5]
Erdogan tem um projecto: minar e dominar a Síria. Enfrenta,
porém, uma questão prévia: está minado e dominado
pela Tríplice Aliança. Todas as suas exibições de
músculo têm controlo próximo e remoto. É um
guerreiro islâmico enfiado numa couraça cristã, empunhando
uma lança judaica. Nada melhor para um cristão da NATO e um judeu
do Colonato do que uma cruzada entre muçulmanos. Na Turquia, Alá
é grande enquanto Jeová consentir. São as "malhas que
o Império tece".
[6]
Erdogan nunca terá ouvido falar de Fernando Pessoa. O maior poeta
português do séc. XX. "Todas as manhãs ao
amanhecer/Meu coração é fuzilado na Grécia".
[7]
Também nunca terá lido Nazim Hikmet. O maior poeta turco do
séc. XX.
[1] Expresso, 27/06/2012.
[2] Al Jazeera/Agência de Notícias Anatólia, 09/09/2011.
[3] Agência France Press/Deutsche Welle, 09/09/2011.
[4] Folha de São Paulo, 24/04/2009.
[5] Calínico,
Vida de São Hipátio.
[6] Pessoa, Fernando,
O menino de sua mãe,
Contemporânea, n.º 1, III série, 1926.
[7] Hikmet, Nazim,
Angina pectoris
(1948), Casa Editora Abril, 2007, Havana.
[*]
Escritor, jornalista.
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