Problemas da construção do socialismo

por Alberto Anaya Gutiérrez, Alfonso Ríos Vázquez,
Arturo López Cándido, José Roa Rosas [*]

I. Sobre o conceito de socialismo
II. Elementos teóricos e práticos da transição do capitalismo ao socialismo
III. Balanço do chamado socialismo real
IV. O socialismo do século XXI
V. Proposta de eixos essenciais da reformulação actual do projecto socialista

X Seminário do PT. Desde o seu aparecimento como teoria e prática política, o socialismo esteve sempre em debate. As revoluções socialistas em diferentes países ao longo do século XX forneceram os temas essenciais da formulação concreta dos projectos e da avaliação das experiências realizadas, algumas das quais seguem o seu curso com perspectivas promissoras.

A mais de três lustros do dramático derrube do chamado "socialismo real" na Europa Oriental e na URSS e, em contraste, perante o surpreendente avanço do "socialismo ao estilo chinês" e da recuperação económica e social dos projectos socialistas no Vietname, em Cuba e na Coreia do Norte, a discussão sobre as perspectivas do socialismo voltam a colocar-se no primeiro plano da política mundial.

O capitalismo deu já provas contundentes da sua incapacidade para enfrentar e resolver os principais problemas da humanidade, e além disso é este mesmo sistema a fonte primordial de muitos desses problemas. No último quarto de século, a sua variante neoliberal cavou um abismo entre as potências capitalistas e os países pobres e em vias de desenvolvimento. Também reconcentrou a riqueza em algumas poucas centenas de gigantescas corporações transnacionais, enquanto dois terços da população do planeta sobrevive apenas com rendimentos de dois dólares norte-americanos, ou menos, por dia.

Por outro lado, o domínio do capital financeiro acumulou uma força capaz de sacudir e mesmo fazer entrar em colapso economias nacionais inteiras, como evidenciaram as crises financeiras do México em 1994-1995, do leste asiático em 1997, do Brasil em 1998 e da Argentina em 2000, e gerou condições que poderiam propiciar uma crise económica mundial, com efeitos semelhantes ou ainda mais graves que a grande crise de 1929-1933. Como se fosse ainda pouco, o capitalismo neoliberal acrescentou a tudo isto o consumo irracional dos recursos naturais do planeta, colocando a humanidade à beira de uma catástrofe ecológica.

Tudo isto torna insustentável a continuidade do sistema capitalista, e mais ainda da sua modalidade neoliberal, como horizonte de vida para a maioria dos povos do mundo. Existe hoje uma maior e mais clara consciência desta situação - que se vê agudizada pelos novos desenvolvimentos de hostilidade, ameaças e agressões directas por parte do imperialismo estadunidense, com o pretexto da "guerra contra o terrorismo" —, pelo que nos anos recentes vimos ressurgir movimentos sociais de massas e forças políticas de esquerda e centro-esquerda, que em simultâneo com as reivindicações sociais contemporâneas — emprego, salários, saúde, educação, habitação, direitos humanos, igualdade de género, direitos das minorias, protecção do ambiente, entre outros - delinearam directamente processos de convergência social e política para lutar pelo poder de Estado, e num número crescente de casos alcançaram a vitória.

Prosseguindo nessa via, a América Latina e o Caribe têm vindo a virar à esquerda ao longo dos últimos dez anos. O capitalismo neoliberal fracassou e está esgotado como modelo económico, social e político, e neste quadro vigorosas frentes sociais e políticas de esquerda e centro-esquerda chegaram em vários casos aos governos nacionais, com o compromisso de colocar no centro das suas políticas a agenda social, recuperar o crescimento e redistribuir mais equitativamente a riqueza, assim como de criar e alargar os serviços sociais básicos para a população mais necessitada e para o conjunto da sociedade. Neste sentido, propuseram-se de igual modo construir um grande bloco latino-americano e caribenho para congregar esforços e defender os seus interesses face ao poder e à voracidade do imperialismo estadunidense.

O dilema destes processos e de muitos outros em diversas regiões do planeta, que em um momento ou outro vai ser preciso resolver, é o de saber se prosseguem na pesadíssima via do capitalismo ou se enveredam pela alternativa do socialismo adaptado às condições de cada país.

Por tudo o que fica dito, a presente comunicação tem o propósito de partilhar as nossas reflexões em torno dos problemas da construção do socialismo.

I. SOBRE O CONCEITO DE SOCIALISMO

Desde as suas origens nas primeiras décadas do século XIX, o pensamento e os movimentos sócio-políticos socialistas não se colocaram apenas objectivos puramente económicos, mas se propuseram a criação de um novo tipo de sociedade. Em palavras de Gramsci, um século depois, "uma nova civilização"; e para Che Guevara, depois do triunfo da Revolução Cubana, a criação do "homem novo".


O socialismo utópico

No decurso dos últimos dois séculos, foram formulados diversos conceitos de socialismo. Nas condições históricas de um ainda incipiente desenvolvimento do capitalismo e da luta de classes entre a burguesia e o proletariado, os "socialistas utópicos" (Saint-Simon, Fourier, Owen, entre os mais destacados) atacaram todas as bases da sociedade existente e, apelando ao conjunto da sociedade e sobretudo às classes privilegiadas, postularam para a substituir, sociedades ideais futuras, cujas principais características seriam: a supressão das diferenças entre a cidade e o campo, a abolição da família, do lucro privado e do trabalho assalariado, a proclamação da harmonia social e a transformação do Estado em simples administrador da produção. Na opinião de Marx, estas "fantásticas” descrições da "sociedade futura" tiveram o grande mérito de servir como primeiros materiais para instruir os operários, além de antecipar a eliminação do antagonismo de classes numa época em que esse antagonismo começava apenas a esboçar-se.

Ideias centrais de Marx sobre o socialismo

Karl Marx e Friedrich Engels reconheceram o enorme mérito destes socialistas ao terem animado as primeiras lutas dos trabalhadores e ao empenharem-se na busca da utopia, de uma sociedade onde prevaleceriam a igualdade, a liberdade e a fraternidade. Mas também mostraram que o carácter utópico dos seus projectos derivava do facto de não serem fundamentados na compreensão objectiva do modo de produção capitalista. A esta tarefa dedicou Marx mais de metade da sua vida. Engels acompanhou-o intelectual e politicamente. Em O Capital, Marx expôs as leis de funcionamento do capitalismo que, por sua vez, sustentaram a sua concepção das tendências futuras da humanidade. Os dois pensadores não formularam um "modelo" acabado da futura sociedade comunista, mas legaram-nos um esquema básico da nova sociedade cujo advento previam, principalmente em A Ideologia Alemã, no Manifesto do Partido Comunista, na Crítica do Programa de Gotha e no Anti-Dühring.

Para Marx e Engels, o desenvolvimento do capitalismo conduziria à luta irreconciliável entre a burguesia e o proletariado. O mais provável era que a revolução proletária viesse a ter lugar nos países capitalistas mais avançados. A revolução dependia, portanto, do amadurecimento de condições objectivas e da vontade consciente e da acção política do proletariado. A revolução não Ievaria directamente à sociedade propriamente comunista. A sua construção seria um processo de duas fases sucessivas.

Na fase socialista teriam lugar a extinção das classes e do Estado, a conversão da exploração burguesa na associação livre e igualitária dos trabalhadores, o desaparecimento da oposição trabalho manual - trabalho intelectual e campo - cidade. O culminar deste processo representaria a passagem à segunda e superior etapa do comunismo. Na fase superior comunista, o trabalho não seria já um meio de vida, mas sim a primeira necessidade vital; o desenvolvimento sem entraves das forças produtivas criaria abundante riqueza social, garantindo o livre e pleno desenvolvimento de todos e de cada um dos seres humanos. O triunfo da revolução proletária, assim como a passagem pela fase socialista e o advento final do comunismo era concebido por Marx e Engels como resultado da mais firme e consequente cooperação e solidariedade do proletariado internacional.

Marx considerava a possibilidade de que a revolução tivesse êxito na atrasada Rússia, mas na condição de que a comuna rural fosse a base de uma organização superior da sociedade e de que essa revolução fosse o sinal para a revolução na Europa. Lénine e os bolcheviques tomaram o poder, esperando que tal previsão se cumprisse. Não foi assim. A revolução russa abriu então uma via que se afastava das previsões de Marx e Engels sobre a revolução proletária.

A obra teórica e a actividade política de Marx e de Engels e dos primeiros marxistas, inspiraram a formação e o desenvolvimento dos partidos políticos da classe trabalhadora durante a segunda metade do século XIX, os quais concentraram a sua atenção no desenvolvimento económico do capitalismo e na organização da classe operária como uma força política própria. Havia diferenças entre eles mas não grandes desentendimentos, até que no quadro do desenvolvimento capitalista de finais daquele século e nos anos que antecedem a Primeira Guerra Mundial, se deu a divisão sem retorno da social-democracia europeia. Dela derivaram duas concepções do socialismo e da estratégia para o alcançar, que projectaram a sua influência até aos nossos dias: por um lado, a que Lenine e os bolcheviques representavam; e por outro, a defendida pela maioria dos partidos da Segunda Internacional influenciados pelos social-democratas austro-alemães como Bernstein, Kautsky, Hilferding, Bauer e outros.

O socialismo para a social-democracia europeia

Durante as últimas duas décadas do século XIX, a social-democracia austríaca e sobretudo a alemã, converteram-se em poderosos partidos de massas. Com a sua acção política organizativa e parlamentar, promoveram uma forma característica de vida para milhões de trabalhadores, que foi descrita como "um Estado dentro do Estado", e cujo traço distintivo consistiu em conseguir uma melhoria relativa do nível de vida, mediante reformas legislativas paulatinas e lentas. Era o resultado do que os seus líderes denominavam a "velha táctica provada", ou seja, a participação eleitoral para ganhar mais lugares (no parlamento burguês - N.T.) e assim introduzir reformas na legislação burguesa. O efeito deste processo traduziu-se na prática da revisão da teoria marxista, na qual se concebeu o socialismo mais como o resultado de um processo gradual de reconstrução económica e social, que como uma transformação revolucionária. Posto em outros termos, mediante tais reformas graduais, o capitalismo se transformaria em socialismo em algum ponto indeterminado do futuro.

Em termos gerais, esta concepção foi mantida peIa social-democracia europeia até que se deu a viragem definitiva entre o seu Congresso de refundação de 1951, realizado em Frankfurt, o Congresso do Partido Social-democrata Alemão de 1959 em Bad Godesber, e o seu Congresso Internacional de Oslo, em 1962. Do primeiro derivará a consideração central de que "já não se tratava de acabar com o capitalismo" porque este já tinha sido "domesticado", já era "outra coisa", segundo Willy Brandt. Do que se tratava era de inserir na economia, a partir do Estado, do governo, doses de planificação, de investimento estatal, de estímulos ao consumo e da distribuição menos injusta da riqueza, principalmente. No segundo abandonava-se "oficialmente" o marxismo, o que se reflectiu em três mudanças essenciais: proclamou-se a ética cristã, o humanismo e a filosofia clássica como fundamentos ideológicos do "socialismo democrático"; em lugar de ser um partido da classe operária, a social-democracia passava a ser um partido do povo; aceitava-se o sistema de livre empresa, mas deviam fazer-se reformas para o racionalizar e melhorar os seus efeitos sociais. Finalmente, no terceiro Congresso mencionado, postulava-se que o futuro não pertencia "nem ao comunismo nem ao capitalismo", mas sim ao que desde fins dos anos oitenta se enuncia abertamente como "terceira via" e que é actualmente a linha seguida peIa social-democracia internacional.

O socialismo em Lenine

Lenine formulou o problema assim: "A guerra imperialista trouxe os povos dependentes para a história universal. E uma das nossas principais tarefas consiste agora em reflectir como podemos colocar a primeira pedra para a organização do movimento dos sovietes nos países não capitalistas. Os sovietes são ali possíveis. Não serão sovietes de trabalhadores, mas sovietes de camponeses ou de artesãos". "A questão é: l. podemos considerar acertada a afirmação de que os povos atrasados, que agora se libertam (...), terão de percorrer necessariamente a etapa de desenvolvimento capitalista da economia? A esta pergunta respondemos com um não." ("Segundo Congresso da lII Internacional, 1920"). Qual poderia ser então o tipo de sociedade que neste caso ocuparia o lugar da "etapa de desenvolvimento capitalista da economia? A resposta de Lenine era: a sociedade socialista. Seguindo os escritos de Marx, Lenine concebia o socialismo como a sociedade que acaba de sair das entranhas do capitalismo e que Marx chamou "fase inferior da sociedade comunista".

Para Lenine, o primeiro elo da cadeia era a revolução proletária vitoriosa. O primeiro requisito para ser uma verdadeira revolução socialista, consistia em romper a "máquina estatal existente" e não limitar-se simplesmente a apoderar-se dela. Devia igualmente abarcar tanto o proletariado como os camponeses, já que ambas as classes estão unidas pelo facto de que a máquina burocrático-militar do Estado burguês as oprime. Considerava que a transição de uma sociedade capitalista que se desenvolve no sentido do comunismo é impossível sem um período político de transição, e neste período o Estado não podia ser outro senão a Ditadura do Proletariado. Entre as transformações económicos que deviam ter lugar no início do período de transição, destacava: a transformação da propriedade privada capitalista sobre os meios de produção em propriedade social, a nacionalização dos bancos e monopólios capitalistas (açúcar, petróleo, carvão, aço, etc.), assim como a abolição do segredo comercial e o cancelamento de todas as dívidas do Estado; de seguida, reorganizar a grande produção partindo do que havia já sido criado pelo capitalismo, mas aproveitando a própria experiência operária e estabelecendo uma disciplina rigorosa, apoiada no poder estatal dos operários armados. Este começo, baseado na grande produção, conduziria por si mesmo à extinção gradual da burocracia e à criação de uma ordem que não se pareceria em nada com a escravatura assalariada; uma ordem em que as funções de inspecção e contabilidade, cada vez mais simplificadas, seriam executadas por todos e no futuro desapareceriam como funções especiais.

No plano político, a máquina estatal destruída deve ser substituída pela mais completa democracia, que representa uma transformação gigantesca de umas instituições por outras de tipo completamente diverso. Isto implica a supressão e substituição do exército permanente e da polícia, assim como das instituições especiais manipuladas por minorias privilegiadas, no pressuposto de que as suas funções podem ser directamente desempenhadas pela maioria da sociedade e pela milícia popular armada. Quanto mais todo o povo intervier na execução das funções próprias do Poder de Estado, tanto menor será a necessidade desse poder, pelo que tenderá a desaparecer. Dever-se-ia instaurar a completa elegibilidade e amovibilidade de todos os funcionários, assim como a redução dos seus salários ao nível do "salário do operário". Para Lenine, a cultura capitalista tinha já conseguido que a grande maioria das funções do Estado estivessem sumamente simplificadas, pelo que podiam reduzir-se a simples operações de registo, contabilidade e controlo, funções totalmente acessíveis a todos os que soubessem ler e escrever. Quanto às instituições representativas e de elegibilidade, tinham que se transformar de lugares de charlatanice em verdadeiras instâncias de trabalho, simultaneamente legislativo e executivo. Estas simples medidas democráticas, ao mesmo tempo que unificam os interesses de operários e camponeses, são a ponte que conduz do capitalismo ao socialismo, mas só adquirem pleno sentido e importância com a transformação da propriedade capitalista dos meios de produção em propriedade social. Segundo Lenine, esse era o Estado que se requeria e a base económica sobre que devia assentar, na transição do capitalismo ao socialismo.

Lenine retomava literalmente Marx para descrever a fase que se seguiria à consolidação da ditadura do proletariado, a fase propriamente socialista. Nela, os meios de produção deixam de ser propriedade privada de uns quantos e passam a pertencer a toda a sociedade; do trabalho realizado por todos os membros da sociedade aptos a trabalhar, desconta-se um fundo de reserva, outro fundo para repor os meios de produção gastos e para ampliar a escala da produção, e um fundo social para os gastos de administração, escolas, hospitalar, asilos, etc.; uma vez deduzidos estes fundos, cada operário recebe em serviços o que entrega à sociedade, além de um certificado que confirma ter o operário realizado tal ou qual quantidade de trabalho pelo qual recebe dos armazéns sociais os artigos de consumo correspondentes.

A crise do regime czarista, o débil desenvolvimento do capitalismo russo e a guerra imperialista criaram as condições para que os bolcheviques tomassem o poder. Rosa Luxemburgo, que sempre manteve uma particular confiança na criatividade e disposição de luta das massas, celebrou o acontecimento e reconheceu as difíceis condições em que teria de desenvolver-se a primeira revolução proletária vitoriosa. Mas, desde os primeiros anos do século XX, em que travou um combate sem tréguas contra a ala direita da social-democracia alemã e austríaca, e a crítica à organização leninista, foi amadurecendo as ideias que a levaram a assinalar que na Rússia não se estava construindo a ditadura do proletariado, mas sim a ditadura do partido. Em 1918, Rosa Luxemburgo teve o mérito de ser a primeira revolucionária marxista a fazer ver que as coisas não caminhavam bem nos começos da experiência socialista. Uma década depois, Leon Trotsky — que em 1917 havia aderido às proposições programáticas e estratégicas de Lenine — elaborou no seu livro A revolução traída, a crítica à degenerescência burocrática do Estado soviético, o "Estado operário degenerado". Para Trostsky, o estalinismo era a encarnação dos interesses da nova casta burocrática nas condições de isolamento da revolução e do cansaço e debilidade do proletariado russo.

O socialismo para Mao Tsetung e Deng Xiaoping

Retomando criativamente as teses de Lenine do início da "crise geral do capitalismo" com a guerra mundial imperialista e a Revolução Russa, vinte anos mais tarde, Mao Tsetung formula a teoria da Revolução da Nova Democracia que seria a primeira fase da revolução proletária — revolução democrático-burguesa conduzida pelo proletariado —, a que se seguiria outra fase propriamente socialista nos países coloniais e semi-coloniais, e que seria acompanhada por revoluções socialistas nos países capitalistas desenvolvidos, num processo de "desmembramento" progressivo do sistema capitalista mundial.

Para Mao, as características da primeira etapa da transição socialista, a etapa onde se estabelece a "sociedade de nova democracia", seriam:

1- Uma sociedade com traços diferentes das repúblicas capitalistas europeias e estadunidense que se apoiam na ditadura da burguesia, mas também diferente da república socialista de estilo soviético de ditadura do proletariado.

2- Uma sociedade sob a ditadura conjunta de todas as classes revolucionárias do país dirigidas pelo proletariado, em que o proletariado, o campesinato, os intelectuais e a pequena burguesia constituem uma força política independente sob a direcção do Partido Comunista.

3- Uma forma de Estado de transição que deve ser adoptada em países coloniais e semi-coloniais.

4- Apresenta traços característicos do centralismo democrático, com um sistema de assembleias populares a nível nacional, provincial, distrital e cantonal, baseado no sufrágio universal para eleger os respectivos governos, expressar a vontade do povo e facilitar a direcção da luta revolucionária.
5- Como sistema económico, os grandes bancos, as grandes empresas industriais e comerciais, e as grandes extensões dos latifundiários devem ser propriedade do Estado, tendo como objectivo que o capital privado não possa dominar a vida material do povo.

6- O sector estatal da economia será de carácter socialista e constituirá a força dirigente em toda a economia nacional.

7- O Estado não confiscará o resto da propriedade privada capitalista nem proibirá o desenvolvimento daquela produção capitalista que não possa dominar a vida material do povo, já que o atraso da China necessita desta produção.

No início da década de 1960, Mao planeou dar por concluída a etapa de Nova Democracia e dar início à etapa propriamente socialista. A China entrou num período de estagnação e só depois da morte de Mao adoptou as reformas que a estão Ievando a converter-se numa potência económica mundial. Consideramos que este último processo se identifica mais na teoria com o que Mao expôs como sendo a etapa de Nova Democracia.

A República Popular da China foi muito mais além das ideias e previsões de Mao. Neste sentido, o contributo fundamental foi dado por Deng Xiaoping. Desde finais dos anos setenta e até à sua morte, Deng foi o grande estratega da modernização do "socialismo ao estilo chinês". Os seus principais pressupostos são os seguintes:

1- Utilizar o genuíno pensamento de Mao Tsetung, tomado na sua integridade, para dirigir o Partido, o Exército e o Povo, e fazer avançar a causa do socialismo na China e a causa do movimento comunista internacional.
2- Adoptar e Ievar a cabo as Quatro Modernizações, sobre a base do enorme entusiasmo da nossa gente, nos sólidos fundamentos materiais e nos nossos enormes recursos, além da introdução da tecnologia avançada hoje existente no mundo.
3- Superar a situação de pobreza na China, para que uma vez realizadas as Quatro Modernizações, as suas obrigações proletárias internacionais e as suas contribuições para a Humanidade, e especialmente para o terceiro mundo, possam ser maiores.
4- Os princípios e objectivos das Quatro Modernizações foram formulados pelos camaradas Mao Tsetung e Zhou Enlai. A tarefa política mais significativa para a China é o sucesso das Quatro Modernizações. A modernização representa uma nova grande revolução. O objectivo desta revolução é libertar e ampliar as forças produtivas. Sem ampliar as forças produtivas, tornando o nosso país mais próspero e desenvolvido, melhorando os níveis de vida do povo, a nossa revolução é apenas conversa fiada.
5- No entanto, não desejamos o capitalismo, mas também não desejamos ser pobres sob o socialismo. Cremos que o socialismo é superior ao capitalismo. Esta superioridade deve ser demonstrada pelo facto de que o socialismo proporciona condições mais favoráveis ao desenvolvimento das forças produtivas do que o capitalismo.
6- Gozamos de quatro condições favoráveis para atingir a meta da modernização: primeiro, o entusiasmo, a iniciativa, a inteligência e a sabedoria do povo chinês; segundo, recursos naturais abundantes; terceiro, nos passados 30 anos lançamos os fundamentos materiais preliminares para o desenvolvimento da indústria, da agricultura, da ciência e da tecnologia; e quarto, devemos prosseguir a política correcta de abertura ao mundo exterior.
7- Seria impossível alcançar os nossos objectivos sem a cooperação internacional. Devemos fazer um amplo uso da ciência avançada e dos progressos tecnológicos universais, assim como do potencial financeiro exterior, de modo que possamos acelerar as Quatro Modernizações. Esta oportunidade não existiu para nós no passado. Temos vivido um período culminante recente, em que aprendemos a utilizar esta oportunidade.
8- Não existe contradição fundamental entre o socialismo e uma economia de mercado. O problema consiste no modo de desenvolver as forças produtivas com mais eficácia. Tínhamos uma economia planificada, mas com o passar dos anos, a nossa experiência provou que ter uma economia totalmente planificada é, até certo ponto, um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas. Se combinamos uma economia planificada com uma economia de mercado, estaremos numa posição melhor para libertar as forças produtivas e para acelerar o desenvolvimento económico.
9- Para finalizar a análise, a superioridade do socialismo deve demonstrar-se por um maior desenvolvimento das forças produtivas. Está agora claro que o caminho correcto é a abertura ao mundo exterior, combinar uma economia planificada com uma economia de mercado e introduzir reformas estruturais. lsto opõe-se aos princípios do socialismo? Não, porque no decurso da reforma asseguraremos duas condições: primeira, que o sector público da economia seja sempre predominante; e segunda, que ao desenvolver a economia procuramos a prosperidade comum, tentando evitar sempre a polarização.
10- As políticas de utilização de fundos estrangeiros, permitindo que o sector privado se amplie não debilitarão a posição predominante do sector público, que é uma característica básica da economia na sua totalidade.
11- Por que insistem sempre alguns que o mercado é capitalista e somente a planificação é socialista? Na realidade ambos são meios para desenvolver as forças produtivas, sempre e quando respondam a esse propósito. Se servem ao socialismo são socialistas; se servem ao capitalismo são capitalistas.
12- Para alcançar a independência política genuína, um país deve levantar-se da pobreza. E para o fazer deve assentar as suas políticas económica e externa nas suas próprias condições. Não deve levantar barreiras para se isolar do resto do mundo. A experiência da China demonstra que um país isolado em si mesmo é já em si uma desvantagem. Se deseja transformar-se deve abrir-se ao mundo exterior e proceder a reformas no país. Estas devem incluir a reforma da estrutura política, que se situa no reino da super-estrutura. A política aberta que a China vem prosseguindo actualmente é correcta e beneficiou grandemente o país. E vamos prosseguir nessa direcção. Porque temos uma grande capacidade para a assimilação e porque temos políticas correctas, incluso se aparecerem alguns fenómenos negativos, estes não poderão afectar os fundamentos do nosso sistema socialista.
13- Educar o povo nos quatro princípios cardinais proporcionará uma garantia fundamental para o progresso são da nossa causa. Estes quatro princípios cardinais são: manter o rumo socialista, manter a ditadura democrática do povo, manter a direcção do Partido Comunista e manter o marxismo-Ieninismo e o pensamento de Mao Tsetung.

O socialismo e o homem novo no pensamento de Che Guevara

Che Guevara assinala que na Crítica do Programa de Gotha, Marx coloca o tema do socialismo em termos de um processo puro. Para o Che, obrigado a reflectir no quadro da Revolução Cubana, o socialismo deve entender-se como uma nova fase que denomina o primeiro período de transição da construção do comunismo. a qual transcorre no meio de violentas lutas de classe e contendo elementos de capitalismo no seu seio, e para cuja superação, devem Ievar-se a cabo dois processos fundamentais da construção socialista: a formação do homem novo e o desenvolvimento da técnica.

Para o Che, o homem novo é um ideal não acabado que vai nascendo com a construção do socialismo e que, portanto, nunca estará completo, já que representa um processo paralelo ao desenvolvimento das forças produtivas e à construção das novas formas económicas. Por isso, é essencial escolher correctamente o instrumento de mobilização das massas. Para o Che, esse instrumento deve ser de índole fundamentalmente moral, sem esquecer a correcta utilização do estímulo material, sobretudo de natureza social. O importante é que, neste processo, o homem vá adquirindo cada dia maior consciência da necessidade da sua participação no desenvolvimento da sociedade, e de seguir a sua vanguarda constituída pelo partido, que por sua vez deve caminhar em estreita comunhão com as massas. Quanto à técnica, o Che considerava que muito estava por fazer, mas que já não se tratava de avançar às cegas, mas sim de seguir em boa parte o caminho andado pelos países mais adiantados e depois gerar a técnica própria, o desenvolvimento das próprias forças produtivas.

O Che explicava que quando a revolução tomou o poder em Cuba, tanto no sector industrial como no sector agro-pecuário, a política seguida foi orientada para a solução dos dois problemas económicos principais: o desemprego e a falta de divisas. Como complemento se desenvolveram medidas revolucionárias redistribuidoras da riqueza produzida, assim como uma política proteccionista contra a importação de bens que pudessem ser elaborados em Cuba. O desemprego foi eliminado, incrementou-se notavelmente o mercado nacional e então os esforços principais se orientaram para a diversificação, para auto-abastecimento de produtos agrícolas e pecuários, o que colocou a economia agrícola em sérias dificuldades pela quebra na produção de açúcar, o principal produto de exportação e houve que redefinir a estratégia produtiva agrícola.

De acordo com a concepção e experiência concreta do Che, no socialismo aparece um sujeito multifacetado com caracteres nítidos – as massas – que participa activamente na vida social, económica e política do país, sempre que exista uma conexão estruturada entre o Estado e estas, apoiada pela sensibilidade e pela intuição dos dirigentes. As massas seguem a sua vanguarda, avançam em estreita conexão e têm a vista posta no futuro e na recompensa de uma nova sociedade, onde o importante não é o homem individual, mas sim o colectivo. A direcção do processo tem que caminhar mais depressa, abrindo caminhos, mas sem se afastar das massas, apoiando-se nelas e animando-as a seguir o seu exemplo.

Na mesma orientação teórica de Marx e Lenine, o Che concebe o poder político na construção do socialismo como a ditadura do proletariado. Para levar a cabo correctamente esta construção, considera que também se requerem instituições revolucionárias que funcionem como um conjunto harmónico de canais, degraus e aparelhos bem oleados, que permitam a tomada de consciência peIas massas, que atribua o prémio ou o castigo no cumprimento ou incumprimento das tarefas, e que facilite a selecção dos indivíduos destinados a constituir a vanguarda.

No ideal socialista do Che, o trabalho deve adquirir uma nova condição, a mercadoria-homem deixa de existir e instala-se um sistema que atribui uma quota pelo cumprimento do dever social, os meios de produção pertencem à sociedade e a máquina é apenas a trincheira onde se cumpre o dever. Isto já não contribuiria para o trabalhador dar uma parte do seu ser em forma de força de trabalho vendida, que já não lhe pertence, antes significa uma emanação de si mesmo, um contributo conscientemente voluntário para a vida em comum que se reflecte no cumprimento do seu dever. O Che considerava que na construção do socialismo devia fazer-se todo o possível por dar ao trabalho esta nova categoria de dever social e uni-lo ao desenvolvimento da técnica, o que teria como consequência o aparecimento de condições para uma maior liberdade. Neste sentido, o Che reiterava a tese marxista de que o homem alcança realmente a sua plena condição humana quando produz sem a compulsão da necessidade física de se vender como mercadoria.

***As teorias de Lenine e de Mao, com as contribuições de Estaline e de muitos outros teóricos e dirigentes revolucionários, estiveram na origem dos processos revolucionários e das experiências socialistas desde a década de 1930 até ao derrube do bloco euro-soviético.

Apesar da variedade dos conceitos de socialismo, tem sido comum a todos eles a fundamental importância dada à economia na configuração da vida social em geral, tal e como expôs Marx ao sustentar que o "modo de produção não deveria considerar-se simplesmente como a reprodução da existência física dos indivíduos. É mais uma forma concreta de actividade destes indivíduos, uma maneira concreta de expressar as suas vivências, um modo de vida concreto". Deste modo, a essência do projecto socialista nas suas diversas versões foi sempre a transformação da propriedade privada em propriedade social, que Marx enuncia como a "sociedade de produtores associados" ou "modo de produção associado".

II. ELEMENTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS DA TRANSIÇÃO DO CAPITALISMO AO SOCIALISMO

Com a Revolução Russa de 1917 abriu-se uma época de transição que parecia ter terminado com o derrube do "socialismo real" na Europa oriental e na URSS. Pelo menos assim o pretenderam os agoireiros do "triunfo definitivo do capitalismo sobre o socialismo e o comunismo". Nos anos recentes, quando a modalidade neoliberal do capitalismo se esgotou e o imperialismo estadunidense desencadeou uma estratégia expansionista que colocou o sistema perante a possibilidade de uma nova crise económica de proporções semelhantes ou ainda maiores que a grande crise de 1929 - 1933, os processos de transição estão recobrando um novo impulso. Por isso é necessário examinar os elementos teóricos e práticos da transição do capitalismo ao socialismo, legados pelo pensamento marxista e peIas experiências socialistas.

1. As experiências do chamado "socialismo real" durante o século XX, assim como no pensamento socialista em geral, concentraram-se fundamentalmente no problema do crescimento económico, e ainda mais acentuadamente a partir das novas condiciones criadas peIa terceira revolução científico-tecnológica iniciada na década de 1980. Vários factores incidiram nesta orientação, entre outros: 1) a proeminência da acumulação de riqueza material própria do capitalismo, que subordina as outras esferas da vida social; 2) o facto de que as experiências de construção do socialismo tiveram lugar, na maioria dos casos, em países atrasados e predominantemente agrários, o que tornava necessária uma industrialização rápida e extensiva; 3) o incremento da pobreza nos países capitalistas como consequência da Grande Crise de 1929-1933 e a persistente depressão ao longo de toda a década; 4) a expansão acelerada do auto-denominado "capitalismo organizado" ou "Estado do bem-estar", nos principais países capitalistas, a seguir à Segunda Guerra Mundial, caracterizado pela intervenção estatal a grande escala, a planificação parcial e elevados índices de crescimento ininterrupto, e a necessidade imposta aos países do "socialismo real" de competir com aqueles no que respeita ao nível de vida; e 5) o conflito e a competição entre as duas super-potências, que consumiram imensos recursos na corrida armamentista e aero-espacial.

Mas, além destes cinco factores, outros três de grande peso determinaram a preponderância da economia entre as preocupações do pensamento e da prática socialistas: 1º) o lugar central da produção material no próprio legado teórico de Marx e Engels; 2º) a consideração essencial de que a propriedade social dos principais meios de produção é o principal mecanismo que permite eliminar a dominação de uma classe sobre o conjunto da sociedade; e 3º) a convicção de que uma economia eficiente é requisito indispensável para conseguir os objectivos mais amplos do socialismo como a eliminação da pobreza, os serviços sociais extensivos e um elevado nível de educação e cultural e o incremento do tempo livre para a realização individual e social.

2. Empiricamente, as transições do século XX apresentaram-se sob duas formas: 1) a radical, expressa na passagem do modo de produção capitalista ao modo de produção socialista (independentemente da sua variedade e de que o seu desenvolvimento posterior se tenha interrompido em casos importantes), através da mudança violenta nas relações de produção e nas relações entre as classes, e a substituição de uma maquinaria estatal por outra, tendo esta última outro carácter de classe; 2) a de conteúdo mais limitado, sob a forma da passagem de economias coloniais a uma situação pós-colonial.

3. Marx estabeleceu a possibilidade de pensar o problema da transição do capitalismo ao socialismo. Com ideias disseminadas em vários dos seus textos fundamentais (o Manifesto do Partido Comunista, O Capital, A guerra civil em França e a Crítica do Programa de Gotha, entre outros), proporcionou um esquema para a teoria da transição e geral e também para a teoria da transição para o socialismo, mas não a própria teoria, nem muito menos as suas condicionantes históricas.

4. Marx não estabelece nem analisa uma "média empírica", mas sim os modos de produção e suas relações no que constitui a sua essência, por assim dizer, em "estado puro". O que se pode designar por "impurezas" existe sempre na realidade concreta, mas — de acordo com Marx — não se pode considerar como característico de uma etapa de transição pois, em caso contrário, teríamos que aceitar que o mundo real é sempre constituído por economias de transição e portanto, o conceito de "economias de transição" perderia todo o carácter específico, todo o significado.

5. As "impurezas" não são "sobrevivências" do passado, antes representam produtos do conjunto de relações que têm lugar entre as estruturas reais da formação económica da sociedade ou formação económico-social, fundamentalmente das desigualdades no desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção vinculadas a tais desigualdades.

6. O problema teórico da transição tem que ser essencialmente o da passagem de um modo de produção a outro, ao processo inicial de constituição do novo modo de produção, à análise das condições básicas necessárias ao novo modo de produção para iniciar a sua constituição no seio do modo de produção dominante anterior; mas não só das estruturas económicas, mas também das sociais e políticas. O seu objecto de análise é a transformação e dissolução das relações sociais de produção existentes, e por necessidade de toda a estrutura social. Não se trata da passagem histórico-concreta, mas sim dos aspectos gerais do processo. Por esta razão, apresentam-se diferenças importantes a respeito dos processos reais de transição.

7. A transição nunca é a sucessão de um modo de produção puro a outro, mas sim a sucessão de um modo de produção complexo com dominação, a outro igualmente complexo com dominação. Esta sucessão não está submetida a nenhuma linearidade, pois a própria complexidade das estruturas a exclui. Dito de outra maneira, não se pode estabelecer nenhuma lei de sucessão linear historicamente necessária entre os modos de produção dominantes dos sistemas complexos.

8. Esta complexidade estende-se à escala mundial, já que cada formação económico-social nacional é em si mesma um complexo de estruturas e constitui um elo dominante ou dominado da economia mundial, e as contradições que se desenvolvem num país concreto não são apenas internas, como também resultam da sua forma de inserção no complexo económico e político mundial. Desta forma de abordar a análise da transição deduziu Lenine o conceito de "elo mais fraco".

9. A dissolução de um modo de produção mais não faz que criar as condições de aparecimento de outro modo de produção determinado. Tal dissolução não cria a necessidade deste (novo modo de produção), já que essa necessidade se inscreve mais precisamente nas transformações de uma estrutura muito mais complexa - a formação económico-social - que a simples estrutura económica; ou seja, também obedece às transformações do conjunto da estrutura social e das estruturas políticas, jurídicas e ideológicas. Deve entender-se, portanto, que a dissolução do modo de produção capitalista não cria a totalidade das condições para que lhe suceda o modo de produção socialista; é também necessário que se reunam as condições políticas e ideológicas para tal sucessão.

10. Uma formação económico-social real é uma estrutura complexa de dominação, é uma combinação específica de vários modos de produção dos quais um é o dominante. Este modo de produção dominante condiciona o funcionamento e desenvolvimento dos modos de produção subordinados, mas por sua vez, estes influem reciprocamente sobre aquele, modificando o seu funcionamento. Estas estruturas complexas não são simples justaposições de diversos modos de produção, mas sim estruturas complexas únicas ou unitárias dotadas de causalidade estrutural própria, submetidas em geral ao predomínio de uma estrutura específica que corresponde à do modo de produção dominante. Por exemplo, a França do século XIX ou o México do século XX, o que não impede de as caracterizar como formações económico-sociais capitalistas.

11. Se a presença simultânea e a interacção de vários modos de produção caracteriza qualquer formação económico-social real, também caracteriza as formações económico-sociais de transição; mas nestes casos, intervêm dois elementos suplementares fundamentais, que são o modo de dominação e as modalidades de eliminação dos modos de produção não dominantes. Por exemplo, a URSS no período de 1918-1921. Lenine assinalava a existência de cinco sistemas ou estruturas económicas diferentes: economia patriarcal, pequena economia mercantil, economia capitalista, capitalismo de Estado e economia socialista. Isto expressava uma estrutura económica complexa, mas ao mesmo tempo, uma formação económico-social de transição para o socialismo; porque na opinião de Lenine, a classe operária detinha o poder estatal e o controlo dos principais sectores da economia. Nestas condições, incluindo um certo desenvolvimento do capitalismo - na forma de concessões limitadas e controladas ao capital estrangeiro ou na forma de certo progresso do capitalismo interior - não poderia modificar a orientação predominantemente socialista, em virtude precisamente do controlo operário do Estado e das "alturas dominantes da economia".

12. A própria economia mundial – que é a realidade económica última – constitui uma estrutura complexa (mundial) de estruturas complexas (nacionais). Isto implica que as transformações estruturais e as etapas que uma formação económico-social de transição pode percorrer, só podem apreciar-se correctamente dentro da dinâmica da totalidade estrutural mundial. Esta explica por que razão os estádios de transição de cada formação económico-social que levou a cabo a sua revolução socialista podem ser qualitativamente diferentes dos estádios "aparentemente análogos" percorridos pelos países que o precederam no mesmo caminho. Em concreto, o que estava ocorrendo na URSS as décadas de vinte ou trinta não tinha que ser necessariamente semelhante ao que se passava na China, em Cuba ou no Vietname nas décadas de sessenta e setenta do século passado, porque a economia mundial era muito diferente em ambos os períodos.

13. As transformações económicas, sociais e de maneira significativa, políticas e ideológicas no interior de cada formação económico-social de transição para o socialismo, modificam o carácter dominante anterior do modo de produção capitalista. No entanto, este horizonte directamente interno ou nacional fez perder de vista frequentemente o inevitável carácter internacional do processo de transição do capitalismo ao socialismo.

14. O ritmo de desenvolvimento da transição depende da estrutura das conjunturas VERIFICAR internas peIas quais passa cada formação económico-social concreta, e da estrutura das conjunturas da economia e política mundiais. Uma conjuntura que se apresenta como a fusão de um conjunto de contradições internas e externas, gera condições históricas de carácter revolucionário, tornando possível a substituição de uma formação económico-social por outra; é então que se abre um período de transição. Isto permite entender por que razão alguns países em que o capitalismo não se desenvolveu ou o fez de maneira incipiente ou débil, como consequência das contradições internas e internacionais, tiveram conjunturas favoráveis, que lhes permitiram "poupar" essa fase de desenvolvimento capitalista e passar à constituição inicial do socialismo. Por isso é indispensável a análise e a caracterização da estrutura das conjunturas.

15. As transformações económicas, sociais e políticas do período de transição são as do momento imediatamente posterior a um corte histórico, à ruptura da antiga totalidade estruturada; por isso, teórica e praticamente deve entender-se como sendo o problema "dos começos de um novo modo de produção".

16. Como mencionamos no ponto 2, depois da Revolução Russa de 1917, o século XX mostrará dois tipos principais de transição: a de formações económico-sociais dominadas pelo capitalismo ao socialismo, e a de países coloniais ou semi-coloniais a uma situação pós-colonial. Aplicado às formações económico-sociais pós-coloniais, o termo "transição" apresentava dois significados: a) que a forma anterior de dominação era modificada sem que se modificasse a sua natureza, pelo que esta situação frequentemente desembocava em formas variadas de capitalismo de Estado; e b) que em lugar do anterior, se apresentava uma situação de equilíbrio momentâneo de forças das classes, o qual podia desembocar ou não num regime de coligação de classes, mas o carácter altamente instável de tal regime não podia ser a base sociopolítica duma nova formação social. Neste segundo caso, não se trata de uma formação económico-social de transição, mas sim de uma situação de transição caracterizada pela ausência de transformações estruturais nos planos económico, social e político. A problemática exposta neste ponto sempre foi relevante dada a persistência na estrutura capitalista mundial das relações imperialistas e do neo-colonialismo, mas nos anos recentes vem tomando uma maior importância em virtude dos processos de candidatura de coligações de centro-esquerda ao poder político em países sujeitos a um virtual domínio neocolonial, e cujo futuro próximo e a médio prazo é incerto.

17. Nas formações económico-sociais de transição para o socialismo, o período de transição seria constituído por dois momentos: a) o estádio inicial ou período de instabilidade inicial; e b) o que Marx enunciou como o período de "consolidação social do modo de produção". O estádio inicial ou primeiro estádio do período de transição, caracteriza-se pelo desmantelamento e a ruptura final com a totalidade dominante anterior, a dominação do modo de produção capitalista, e portanto o futuro da nova formação económico-social não está assegurado ou é ainda incerto. Por outro lado, a consolidação da nova formação económico-social ou fase de transição para o socialismo propriamente dita, seria caracterizada peIa ausência de adequação relativamente extensa das novas relações sociais e das forças produtivas, o que coloca certo tipo de contradições entre a forma de propriedade e o modo real de apropriação; por outras palavras, não se verificaram ainda as condições para a reprodução ampliada das novas relações sociais. Sintetizando, o período de transição seria composto por três processos com as suas temporalidades respectivas: a) o estádio inicial; b) a fase de transição em sentido estrito ou fase de inadequação entre as novas relações sociais e as forças produtivas; e c) a fase da reprodução ampliada da nova formação económico-social socialista. Cada uma destas fases se caracteriza por uma articulação específica dos níveis da formação económico-social e das suas contradições, e portanto, de um certo tipo de desenvolvimento desigual destas contradições.

18. Na situação de inadequação entre as novas relações sociais e as forças produtivas, a dominação das novas relações sociais só pode ser assegurada por soluções de compromisso; no caso da transição para o socialismo, recorrendo aos dois tipos extremos que são o mecanismo do mercado (por exemplo, a NEP na URSS) ou o mecanismo da planificação central (por exemplo, os primeiros planos quinquenais). Estas soluções testemunham a profundidade ainda muito grande das contradições internas. A sua solução encontra-se no desenvolvimento das forças produtivas, que assegurará a adequação entre as novas relações sociais e as correspondentes forças produtivas. Nesta direcção, o processo Ieva a que tanto o mecanismo do mercado como a planificação central possam ser substituídos por uma direcção coordenada da economia através de mecanismos originais, em cujo centro se encontrará uma planificação de novo tipo.

19. A forma de inadequação ou não concordância entre as novas relações sociais e as forças produtivas na transição do capitalismo para o socialismo, é em termos gerais a seguinte: a forma de propriedade dos principais meios de produção é formalmente a de toda a sociedade, enquanto que o modo de apropriação real é ainda o dos colectivos limitados dos trabalhadores, já que só a nível destes colectivos (empresas) se efectua a apropriação real da natureza. A base material desta não-correspondência radica no insuficiente desenvolvimento das forças produtivas. Apesar disso, o maior desenvolvimento das forças produtivas nos sectores estratégicos da economia (energia, química, metalomecânica, transportes e comunicações, entre outras) evidencia o aparecimento de um novo modo de apropriação real, susceptível de ser ampliado ao conjunto da sociedade.

20. O que caracteriza o período de transição no seu conjunto não é principalmente a instabilidade da nova ordem social nem a ausência de dominação das novas relações de produção, mas antes a não concordância relativamente ampla entre as novas relações sociais já dominantes e o insuficiente desenvolvimento das forças produtivas. E quanto mais débil for o nível de desenvolvimento das forças produtivas no país considerado, maior será a não concordância citada.

21. Esta não concordância ou desfasamento tem importantes efeitos na articulação dos diferentes níveis da formação económico-social, em particular do nível político. Em tal situação de não concordância, o sistema económico apenas pode ser assegurado através de soluções de compromisso específicas. Por exemplo, durante as primeiras décadas da URSS, as soluções de compromisso de capitalismo de Estado, o mercado sob a NEP e a planificação central com os primeiros planos quinquenais. Isto tem grande importância para a análise das super-estruturas políticas do período de transição, especialmente das formas da democracia e do papel da burocracia administrativa.

22. De acordo com o grau inicial de não correspondência e das formas específicas desta não correspondência em cada formação económico-social de transição para o socialismo, o período de transição será mais ou menos longo, e será caracterizado por um papel diferente da maquinaria burocrática e das formas diferentes da democracia socialista.

23. Portanto, é fundamental ter em conta o grau e as formas específicas de não correspondência para colocar correctamente um conjunto de problemas cruciais que, para concluir, aqui só serão enunciados: o desenvolvimento desigual das forças produtivas, o papel do mercado e da moeda, as relações entre as empresas socialistas, o papel da pequena produção mercantil e da produção propriamente capitalista nos primeiros estádios da transição, a passagem da produção mercantil a formas cooperativas, a organização da agricultura e da indústria não estratégica, a aplicação e desenvolvimento dos mecanismos de planificação, os níveis de gestão burocrática e de gestão social da economia, as relações entre as classes e entre as camadas ou estratos de uma mesma classe, as relações entre a cúpula e a base do sistema, o carácter antagónico ou secundário das contradições internas.

***Não obstante a enorme ênfase posta na economia, o pensamento e a prática socialistas sempre conceberam o crescimento económico no contexto de uma reorganização mais integral da vida social. Isto explica que desde os seus inícios, as diversas experiências de construção do socialismo assumiram o compromisso ininterrupto de ampliar, dentro dos limites impostos pelos recursos de cada país, os serviços públicos como educação, saúde, habitação, transportes públicos, diversos serviços de bem-estar e facilidades para realização de actividades recreativas, com notável êxito. A URSS, a República Democrática Alemã e a Checoslováquia foram exemplares neste aspecto; mas igualmente a superação do analfabetismo e acesso da população aos serviços de saúde se contam entre os êxitos mais notáveis das revoluções cubana e no seu momento, a nicaraguana, apesar do seu atraso económico e da hostilização e das intervenções directas por parte dos Estados Unidos.

Uma economia socialista deve estar ao serviço da sociedade e ter como objectivo prioritário o seu desenvolvimento. Da mesma forma, a racionalização do processo de produção com o fim de lograr o maior incremento no fluxo de bens materiais não deveria ser o elemento de maior importância sem ter em conta outras considerações igualmente significativas para o desenvolvimento da sociedade socialista, como as condições laborais ou as horas de trabalho, o meio ambiente e o eventual esgotamento dos recursos naturais, ou avaliar se o incremento da produção eleva a qualidade de vida da população.

Na situação actual em que o debate sobre a construção do socialismo volta a ocupar o importante lugar que lhe corresponde, somos obrigados a reflectir e avaliar a fundo o rico legado da teoria e das experiências concretas ai propósito. E sobretudo não devemos esquecer que o socialismo é um processo histórico, pelo que ninguém pode prever de forma detalhada como se edificará, ou como as gerações futuras resolverão os problemas que o seu desenvolvimento futuro coloque.


III. BALANÇO DO CHAMADO SOCIALISMO REAL

A URSS e a Europa oriental

A conformação do socialismo de Estado e do chamado "campo socialista" foi a cristalização final de processo iniciado peIa Revolução Russa de 1917. O traço burocrático-militar, presente na política externa da URSS, conferiu um acentuado carácter imperialista ao seu próprio Estado e às relações que estabeleceu com os países que formaram o bloco soviético. O modelo teve as suas origens numa concepção do poder, da sociedade, da democracia, da cultura e da ideologia, a saber: consolidar as bases dos privilégios da "nova classe", da burocracia. Produziu-se um íntimo conúbio entre economia, política e cultura, entre matéria, ideologia e poder.

As características centrais do socialismo soviético foram a estatização total da economia e a vida social, a completa eliminação da democracia política e as liberdades civis, e a ideologização extrema da cultura e da ciência. A sociedade estruturou-se em torno de uma pirâmide administrativa de poder ("nomenclatura"), cujo vértice burocrático e militar detinha enormes privilégios pelas funções que desempenhava, converteram-na num grupo explorador. Neste quadro, o povo foi excluído das decisões do poder, da gestão económica e do direito à organização independente. Mas apesar disso, obteve importantes conquistas em matéria de segurança e serviços sociais. Também a mulher se viu favorecida, mas a persistência da cultura patriarcal e o grande atraso na produção de bens para o lar generalizaram a dupla jornada feminina a ponto de eliminar praticamente o seu tempo livre e exclui-la da actividade cívica e cultural a um nível maior que no capitalismo. Este tipo de desenvolvimento estatal-burocrático afastou-se em questões filosóficas, sociais e políticas fundamentais do ideal socialista original e da teoria marxista clássica. Apesar disso, para sectores muito amplos da intelectualidade e do movimento popular dos países coloniais e atrasados foi muito atractiva, pois representava a materialização "real" dos ideais e princípios socialistas, e era vista como o único meio para alcançar um desenvolvimento socialmente mais justo que qualquer outro face ao capitalismo. Chegou-se a pensar, então, que este sucumbiria perante a superioridade do sistema soviético.

Tendo como antecedentes a constituição e o desenvolvimento da URSS, o bloco euro-soviético constituiu-se sem ter resultado de revoluções socialistas. Ao terminar a segunda guerra mundial, Estaline instalou governos pró-soviéticos e empenhou-se em converte-los em cópias fiéis da URSS. A "Doutrina Truman" (1947), que desencadeou a "guerra-fria", reforçou a política externa do Kremlin. Apesar da "desestalinização" do XX Congresso do PCUS (1956), a situação prevaleceu até ao derrube do sistema socialista em 1989-1991. O sistema era dominado peIa "nomenclatura" ou "nova classe" (Djilas), a qual excluía o povo da tomada de decisões, da gestão económica e do direito a organizar-se de forma independente. Nos anos setenta, o sistema entra em estagnação e sobrevém uma grave decomposição social. No económico, o derrube obedeceu principalmente à baixa produtividade do trabalho (excesso de pessoal, tecnologia obsoleta e falta de incentivos) e ao parasitismo burocrático. No político, social e cultural, a fusão do Estado e do partido anularia toda a possibilidade de uma vida democrática. Nestas circunstâncias, a reforma do sistema ficou limitada às iniciativas da cúpula dirigente.

A crise do estalinismo nos anos cinquenta, a ruptura sino-soviética e as invasões da Hungria e da Checoslováquia foram apenas avisos de uma crise maior, mas num contexto aparentemente mais favorável expresso - entre outros factos - na revolução cubana, na guerra do Vietname e na revolução cultural chinesa. Na década de setenta, vários países do sudeste asiático, de África e da América Latina foram sacudidos por movimentos revolucionários conotados ou aliados ao campo socialista. Simultaneamente, os acontecimentos internacionais dessa década foram bastante desfavoráveis ao capitalismo e ao imperialismo: a derrota no Vietname, o problema do petróleo e a crise mundial de 1974 -1975. No entanto, em vez de isto ter constituído o prólogo do triunfo mundial do socialismo de Estado, foi o início da sua queda.

Nos anos setenta, o socialismo de Estado não se comporta melhor que as economias industrializadas do Ocidente. A economia da URSS e do campo socialista entra numa etapa de declínio e estagnação. Baixou acentuadamente o nível de vida da população e apareceram sintomas muito graves de decomposição social, como a generalização do alcoolismo, do absentismo laboral, da corrupção administrativa e do mercado negro, fenómenos que se tornaram visíveis na década seguinte. No plano externo, a crise se expressou principalmente nas guerras entre países socialistas e nos subsídios a governos envolvidos nelas, o que gerou o repúdio do povo soviético e agravou ainda mais a frágil economia soviética. No plano interno, estava-se perante o esgotamento do padrão de desenvolvimento económico herdado da etapa estalinista (sustentado na extrema centralização das decisões e controlo, no desbaratar dos recursos materiais e da força de trabalho, que privilegia a indústria pesada e militar em detrimento da agricultura e da indústria de bens de consumo), sustentado a qualquer preço, apesar de as condições terem mudado. Este padrão pode funcionar nas difíceis condições de atraso, mas deixou de funcionar ao aparecerem condições económicas, sociais e culturais que requeriam um desenvolvimento sustentado na mudança tecnológica, no incremento da produtividade do trabalho, a descentralização das decisões e o uso cuidadoso dos recursos naturais e do ambiente. Dito de outro modo, o campo socialista não levou a cabo a necessária transição para o socialismo desenvolvido.

No campo estritamente económico, este processo foi bloqueado principalmente peIa baixa produtividade média do trabalho e sua tendência descendente. Isto foi resultado tanto do excesso relativo de pessoal e da utilização de tecnologia obsoleta em quase todos os ramos industriais (à excepção do militar), como da falta de verdadeiros incentivos ao trabalho e à eficiência (cumpriam-se formalmente os planos, e premiava-se a lealdade política e o conformismo social em sobreposição ao compromisso com o trabalho). A acrescentar a isto, o parasitismo burocrático absorvia a maior parte do excedente económico, a enorme despesa militar consumia grande parte do produto nacional (entre 15 e 20%) e concentrava os melhores recursos produtivos, em vez de financiar a reestruturação económica e libertar recursos para melhorar as condições de vida da população.

A rigidez da organização económica teve a sua correspondente na vida política, social e cultural. Em todas as partes a fusão do Estado e do partido coincidiu com a total supressão da democracia. Este facto afectou particularmente os sectores mais dinâmicos da população, generalizou o conformismo e impediu a necessária transformação do sistema. Nestas condições, as possibilidades de o reformar estavam confinadas às iniciativas da própria cúpula dirigente. A esta evolução interior juntaram-se as consequências das transformações mundiais. Desde finais dos anos setenta a revolução informática teve grande impacto sobre o desenvolvimento das forças produtivas, as comunicações e os modos de vida e de consumo. Surgia a nível mundial um novo tipo de economia baseado na automatização, na flexibilidade, na qualidade e na descentralização. Estes factos tinham lugar num mundo cada vez mais internacionalizado e competitivo, que impunha a todos os países a necessidade de se adaptarem ou de correr o risco de isolamento e de decomposição económica e social.

As reformas tiveram lugar em meados dos anos oitenta, mas no quadro da crise económica, do crescente protesto social e político e da pressão das novas condições mundiais. Fracassou a tentativa de reactivar a economia e ampliar o consenso social. Pelo contrário, agudizaram-se as contradições entre as forças apostadas na restauração capitalista, a resistência da burocracia em perder os seus privilégios e a débil oposição dos sectores que aspiravam a uma mudança em direcção de um socialismo democrático. Nestas circunstâncias, o derrube do socialismo foi inevitável.

China

A experiência da China seguiu um caminho distinto do soviético. Convertido de facto em "colónia internacional", de natureza semi-feudal e sem as condições para um desenvolvimento capitalista próprio, o país teve que defrontar uma longa e penosa guerra popular revolucionária (1927-1949) e encontrar o seu próprio caminho: o PCCh compreendeu que não podia Ievar a cabo uma revolução socialista "clássica". No texto "Acerca da nova democracia", Mao Tse-tung caracteriza a revolução chinesa como um processo em duas etapas sem ruptura: "a ditadura da aliança de todas as classes revolucionárias chinesas dirigidas pelo proletariado", e "a reorganização da sociedade socialista na China". Depois da guerra revolucionária, o país estava devastado. Procedeu-se à colectivização do campo peIa via oposta a empregada na URSS. A industrialização também seguiu um caminho diferente: a indústria foi levada ao campo. No período do " Grande Salto em Frente" (1958-1965) conseguiu-se impulsionar o desenvolvimento económico e a democracia socialista mediante a formação das comunas agrícolas (Ta chai) e industriais (Ta ching). Não obstante, com o objectivo de corrigir o desenvolvimento de tendências burguesas no partido e no Estado, Mao teve que impulsionar a Revolução Cultural (1966-1967), a qual postulava duas questões centrais: 1) corrigir as tendências para a burocratização, e 2) rectificar o caminho da construção socialista. A concepção integral do socialismo chinês prevaleceu até à morte de Mao (1976). Nos anos seguintes redefiniu-se o rumo. No final dos anos setenta, a China empreendeu a mudança com fortes traços de restauração capitalista.

O Presidente Deng Xiaoping (1979) delineou quatro princípios cardinais que definiam o futuro desenvolvimento sob as normativas de: 1) planificação socialista, 2) ditadura do proletariado, 3) liderança do Partido Comunista da China, e 4) continuidade ideológica baseada no marxismo-Ieninismo-pensamento Mao Tse-Tung. A República Popular da China abria-se ao mundo estabelecendo relações com 115 países e aderindo a 12 organizações internacionais. A nova estratégia da China ficou definida no Plano das Quatro Modernizações, cujos objectivos eram: revigorar os quadros políticos e profissionais; uma maior produtividade rural; uma administração industrial diferente e eficaz; a ampliação do comércio externo; o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e a criação de uma grande corrente de investimento para o país. Os esforços do Estado centravam-se numa economia socialista de mercado, que se associava a uma política favorável ao investimento estrangeiro, à expansão do mercado internacional e ao desenvolvimento das áreas urbanas.

Introduziu-se na planificação uma maior participação do mercado na economia. A China começou a participar no mercado mundial, incrementou as suas exportações, atraiu vultuosos investimentos estrangeiros, estabeleceu zonas especiais de desenvolvimento económico, impulsionou os investimentos internos e pôs a sua infra-estrutura ao serviço do desenvolvimento. Os resultados foram impressionantes. Durante as décadas de oitenta e noventa, o PIB cresceu a uma taxa média de 10% e o PIB per capita cresceu a uma taxa de 80%: duzentos milhões de pessoas superaram o nível de pobreza e a China se converteu na segunda economia mundial, ultrapassando o Japão, pelo menos em paridade de poder de compra. O poderio económico da China permitiu-lhe superar da melhor maneira a crise asiática de 1997-1998, que fustigou os mercados financeiros e cujo epicentro se deu na Tailândia, com a desvalorização bath. No 15º Congresso do Partido Comunista, em 1997, se reconheceu a iniciativa privada como um sector importante na economia. Em Março de 1999 a Constituição Chinesa reconheceu a propriedade privada o princípio de legalidade. Em Outubro de 2003, a China se converteu no terceiro país a colocar em órbita um ser humano. Este lançamento, segundo palavras do presidente Hu Jintao, constitui um passo histórico do povo chinês no seu empenho em alcançar o cume da ciência e da tecnologia mundiais. A economia chinesa tem crescido nos últimos anos (2003-2005) a uma taxa média de 9 por cento.

Vietname

A experiência socialista do Vietname teve um paralelismo com a China. Um processo revolucionário vitorioso marca a etapa posterior, no difícil contexto da "guerra-fria". A revolução vietnamita estende-se dos primeiros anos do pós-guerra até 1975. De facto, o processo revolucionário no Sul entrelaçou-se em 1960 com os primeiros passos na construção do socialismo no Norte. Em 1954 foi imposto à França um acordo de paz que deu origem ao regime comunista no Vietname do Norte, que desde esse ano foi dominado por três problemas centrais: a) a consolidação do poder, b) a reconstrução e desenvolvimento económico, y c) a reunificação do Sul para formar um Estado socialista unitária. As acções fundamentais com vista à construção do socialismo foram: reforma agrária em grande escala, colectivização do campo e nacionalização progressiva da indústria. A guerra revolucionária no Sul seguiu a mesma senda do Norte. Em 1975 o povo vietnamita tinha logrado derrotar o país mais poderoso do mundo. Apesar da devastação, o triunfo e a unificação permitiriam avançar nos objectivos iniciais da construção socialista: a reforma agrária e a colectivização do campo, a reconstrução económica e o impulso do desenvolvimento industrial. Os sucessos foram importantes, embora limitados.

O colapso soviético induziu uma severa crise económica e financeira na primeira metade dos anos noventa, que provocou uma crise política. O governo e o Partido vietnamitas avançaram com um conjunto de reformas. No plano económico: reordenar as empresas estatais não rentáveis; dissolver entidades ineficientes; impulsionar e fortalecer a economia mista; consolidar as cooperativas no campo; permitir ao sector privado desenvolver-se, embora sob controlo do governo; e explorar ao máximo as próprias forças para evitar assistência estrangeira. Até agora estas reformas não ultrapassaram os limites impostos pelo governo e favoreceram o desenvolvimento agrícola (para abastecimento interno e exportação). O Vietname ainda regista acentuados sinais de pobreza e atraso: pobreza rural elevada, diferenças relevantes entre a cidade e o campo, a empresa estatal é deficiente, a ciência e a tecnologia registam atrasos, etc. Finalmente, no quadro da situação descrita, está-se levando a cabo no Vietname um processo de renovação de gerações muito acelerado. Um numeroso sector de jovens preparados está tomando um papel preponderante nos comandos do poder político e do Partido. O antídoto que se está aplicando para que esse grupo não se converta numa tecnocracia, consiste no requisito de que estejam solidamente forjados no campo ideológico e político na linha da construção do socialismo.

Coreia do Norte

A experiência socialista da Coreia tem os seus antecedentes em dois aspectos significativos: a prolongada ocupação japonesa da Península e a sua situação geopolítica no contexto da "guerra fria". De 1900 a 1930 organizam-se os primeiros grupos políticos para a libertação do território nacional. A partir de 1930, inicia-se a luta político-militar encabeçada por Kim Il Sung contra a invasão japonesa. Em 1945, por acordo dos Aliados (URSS, EUA e Grã-Bretanha), a Península foi dividida em duas partes. Nesse mesmo ano foi fundada a República Popular Democrática da Coreia e o Partido do Trabalho da Coreia, e instaurado um regime democrático e popular. Entre 1945 e 1950 foi impulsionada a formação generalizada de organizações de massas de carácter nacional e sectorial, a transformação socialista da economia e do Estado, e o fortalecimento das forças armadas.

A guerra de libertação (1950-1953) procurava expulsar os EUA e consumar a unificação do país. O imperialismo norte-americano reagiu com todo o seu poderio militar e económico. Pretendia conquistar a Coreia do Norte para destruir o regime socialista e implantar aí o capitalismo. A República Popular Democrática da Coreia conseguiu estabelecer um acordo de paz. A Coreia ficou devastada. De 1953 até à data se empreendeu a reconstrução da sua infra-estrutura económica e das suas cidades, e conseguiu-se criar emprego e habitação suficiente para toda a população, assim como educação e cuidados de saúde gratuitos. Os benefícios conseguidos incluem também o fornecimento de água e electricidade. Desde 1945 a industrialização privilegiou a indústria pesada, considerando que essa orientação garantiria a longo prazo a consolidação do regime socialista. No mesmo sentido incorporaram-se ao cultivo a totalidade das terras aráveis disponíveis. O nível de cultura geral elevou-se, conseguindo que toda a população tenha acesso a praticar as artes, a literatura, etc. A função central do partido consistiu em construir e manter a unidade ideológica socialista. Essa foi a razão fundamental para manter a via coreana do socialismo, apesar da constante agressão do imperialismo, do derrube do campo soviético ou inclusive da sua própria crise económica que entre 1996 e 2002 fez cair de forma acentuada os níveis de bem-estar social já então alcançados.

Depois de superar os problemas económicos desses difíceis anos, a economia voltou a crescer e permitiu retomar programas estratégicos para o desenvolvimento das forças produtivas, reforçar a defesa do país e solucionar as carências nos níveis de consumo e de vida do povo coreano. Isto significou a abertura de uma nova e vigorosa etapa na construção do socialismo na República Popular Democrática da Coreia.

Cuba

A revolução também marca profundamente a experiência socialista cubana. A dependência económica da ilha relativamente aos EUA durante a primeira metade do século XX, tornou-se praticamente absoluta. A riqueza estava concentrada em poucas mãos, o desemprego era muito grande, assim como era muito acentuada a falta de instituições educativas e instalações de saúde, assim como da rede de comunicações. A corrupção envolvia toda a maquinaria governante. As tensões e conflitos sociais eram intensos e frequentes. A ditadura de Fulgêncio Batista (1952-1958), corrupta e brutal, precipitou a crise revolucionária. A primeira tentativa (1953) fracassou, mas entre 1957 e 1959 a revolução triunfaria. Originalmente os seus objectivos fundamentais não eram socialistas. A viragem radical da revolução obedeceu pelo menos a dois aspectos centrais: a mobilização das massas rurais e urbanas, que as sensibilizou em defesa da revolução; e as pressões dos ataques perpetrados pelo imperialismo norte-americano. Face ao bloqueio comercial dos EUA, Cuba teve que estreitar relações económicas e de outro tipo com a URSS. Nas quase três décadas que se seguiram, a construção do socialismo foi marcada por avanços diferenciados. Colectivizou-se o campo e modernizou-se a produção de açúcar. Desenvolveram-se esforços para criar novas indústrias e reduzir assim a dependência do açúcar.

As reformas sociais incluíram a melhoria da educação pública, da habitação, da saúde, dos serviços médicos e das comunicações. Da mesma forma, promoveu-se firmemente a igualdade racial e os direitos das mulheres. Impulsionou-se em grande escala a produção cultural e o acesso à cultura. Combateu-se e reduziu-se a corrupção. O derrube da URSS fez recrudescer os problemas da Ilha. A economia caiu entre 1989 e 1996 até um terço do seu nível. o governo empreendeu medidas para reordenar a economia e explorar novas possibilidades de crescimento. Facilitou-se a abertura comercial e financeira externa. Fixou-se como limite os 49% de investimento estrangeiro no capital das empresas. A liberalização sob o esquema de economia mista abrangeu praticamente todos os sectores e ramos económicos. A crise tinha sido de tal magnitude que estas medidas tinham como objectivo primordial atender com urgência os problemas alimentares da população. A abertura externa foi acompanhada de um amplo e vigoroso processo de liberalização parcial da economia interna. O governo e o povo de Cuba empenharam-se nestes últimos anos em preservar as conquistas sociais da revolução e da construção do socialismo: a educação gratuita, a saúde e as possibilidades de emprego para toda a população.

A reactivação e reformulação do poder popular foi uma medida da mais alta prioridade. O seu aspecto mais destacado foi talvez a reanimação dos Comités de Defesa da Revolução (CDR's), conferindo-lhes funções de carácter social como a atenção à saúde nas comunidades, acções sanitárias, etc, além das tradicionais funções de controlo e vigilância do processo revolucionário. As mudanças a nível mundial em curso estão impondo novos desafios a todas as regiões e países, e muito especialmente àqueles que se empenham em preservar o projecto socialista. A experiência da construção do socialismo em Cuba não escapou a estas circunstâncias, mas o seu desempenho depois de superar o "Período Especial" em 1996 foi coroado de êxito.

Com efeito, depois da profunda queda da economia cubana a uma taxa média anual de 7.8% no período de 1991-1995, as reformas introduzidas pelo governo revolucionário permitiram retomar com novo ímpeto a senda do crescimento, que entre os anos de 1996 e 2000 registou uma taxa média anual de 4.6% e entre 2001 e 2005 foi de 4.2%. Isto tornou possível avançar com amplos programas de infra-estrutura, de desenvolvimento da ciência e da tecnologia, de extensão dos serviços básicos para toda a população, assim como de abastecimento massivo de bens de equipamento domésticos para as famílias cubanas, o que representou um significativo aumento do seu nível de vida. Também permitiu estabelecer acordos estratégicos de cooperação com diversos países para apoiar o desenvolvimento da saúde e da educação nesses países, e para impulsionar o desenvolvimento das forças produtivas em Cuba.

Com a chegada de Bush ao governo dos Estados Unidos e o atentado de 11 de Setembro de 2001 contra as torres gémeas em Nova York, agravaram-se as políticas do Império contra a Ilha com a intenção de derrotar a Revolução Socialista. Foram empreendidas acções grotescas para endurecer o bloqueio e asfixiar a economia cubana, tais como: a centenas de milhar de cubanos residentes nos Estados Unidos foi proibido visitar os seus familiares em Cuba, autorizando essas visitas apenas uma vez em cada três anos e não a todos; Ia ajuda familiar foi reduzida quase a zero; não se cumpriram acordos sobre a emigração ilegal; foram recusadas propostas de cooperação em temas vitais como a luta contra o tráfico de drogas e de pessoas e para dificultar e impedir acções terroristas; multiplicaram-se as calúnias, classificando Cuba de país terrorista, inventaram-se mentiras sobre o fabrico de armas biológicas e planos de guerra electrónica com o propósito de interferir nas comunicações do governo. Os Estados Unidos destinaram somas milionárias para interferir nas transmissões de rádio e televisão com o uso de aviões, emitindo transmissões contra-revolucionárias. O objectivo é tentar arranjar pretextos para uma agressão genocida contra o povo de Cuba.

Em meados de 2003 eliminou-se o dólar nas transacções entre empresas e se implantou um controlo de câmbios no Banco Central para as operações externas. No passado, a participação do dólar excedia os 90%, enquanto na actualidade se mantém à volta de 30%, o que diminui substancialmente o risco derivado das ameaças do governo dos Estados Unidos. Durante o primeiro semestre de 2005 a Ilha enfrentou uma profunda seca, Ia escassez de energia eléctrica e as consequências do furacão Denis. No entanto, a capacidade de resistência e o retorno da economia cubana a um novo ciclo de crescimento demonstrou as suas capacidades. Em 2005 a economia cresceu a uma taxa de 11.8 % relativamente a 2004. Tal desempenho baseia-se no incremento dos ramos produtivos da economia, entre os quais destacam a construção, as comunicações, o comércio, os serviços, a produção de crude nacional e gás, electricidade, a ferrosa, a metalúrgica não ferrosa, a de confecções, a alimentar e a de bebidas e tabaco. Os rendimentos do turismo cresceram cerca de 11.5 % relativamente a 2004. Mesmo assim, desenvolvem-se esforços para perfurar e por em operação novos poços de petróleo e de gás que possibilitem ao país um avanço para o auto-abastecimento. Se desenvolveu um programa de melhoria das redes eléctricas do país, que inclui a incorporação de uma instalação geradora de electricidade de ciclo combinado e a adaptação de uma instalação termoeléctrica, com o fim de que para o segundo semestre de 2006 as famílias disponham do dobro de capacidade de energia eléctrica, comparada com a que contam actualmente.

Em matéria de habitação conta-se actualmente com 7 mil 300 habitações terminadas se acabaram de se reparar Ias casas afectadas pelo furacão Denis. Está programado construir mais de 10 mil novas das totalmente destruídas e se continuará a construção de novas habitações, até alcançar pelo menos 30 mil adicionais. Se ampliaram os utensílios domésticos para as famílias cubanas. Se trabalha na ampliação e remodelação da produção de iogurte de soja, ovos, carne de porco, cacau, de chocolate de leite, de café e de massas alimentícias. Se está investindo no transporte de carga por caminho-de-ferro. Estão em processo de aquisição equipamentos portuários, camiões de transporte urbano, metais para vias-férreas, e equipamentos e peças para camiões. De igual forma, para os sectores de saúde e educação. Foram aumentados os salários em alguns sectores da economia cubana. Nas exportações, destacam-se pela sua importância o níquel, os medicamentos genéricos e biotecnológicos, o tabaco e o açúcar, enquanto nos serviços desempenham importante papel os serviços médicos e o turismo.

Por último, como parte dos acordos derivados da ALBA (Alternativa Bolivariana para a América, mecanismo para criar vantagens cooperativas entre as nações participantes), criou-se uma filial bancária de um banco cubano na Venezuela e foi autorizada a abertura da filial de um banco venezuelano em Cuba. O acordo entre a República Bolivariana da Venezuela e a República de Cuba, subscrito sob os princípios da ALBA, constituiu um passo considerável no caminho da unidade e da integração entre os povos da América Latina e do Caribe. O projecto em marcha da Petrocaribe constitui outro passo de fraternidade e solidariedade entre estes dois povos e governos.

***A reforma da URSS começou em meados dos anos oitenta, quando o declínio agudo da economia, o crescente protesto social e político e a pressão internacional a tornaram inevitável. Se tinha o propósito de transitar ao socialismo desenvolvido, chegou tarde. A reforma fracassou rotundamente nos seus propósitos de reactivar a economia e ampliar o consenso social. O que sem dúvida provocou, foi o gerar de tensões entre um processo de restauração capitalista em condições mais adversas, a renúncia das forças que aspiravam a uma viragem na direcção do socialismo desenvolvido, assim como o recrudescimento dos movimentos independentistas e dos autonomismos regionais, e uma situação caótica de decomposição social e estatal. Com excepção da China, da Albânia, de Cuba, da Coreia do Norte e do Vietname, estes processos estenderam-se a tudo o que fora o campo socialista.

O mais significativo para os que mantemos o objectivo da luta pelo socialismo, é que estes processos foram socialmente muito dolorosos e que de forma alguma resolveram, nem é previsível que possam resolver, os principais problemas do que foi o socialismo de Estado. Neste sentido, as experiências concretas do "socialismo real" confirmam que todo o projecto socialista com possibilidades de êxito está necessariamente associado a quatro premissas fundamentais: 1) o estabelecimento de uma organização económica eficiente baseada no continuo desenvolvimento das forças produtivas; 2) a democratização das decisões económicas, mas também e necessariamente daquelas que incidem sobre a vida política, social e cultural em geral; 3) a disciplina laboral fundamentada em inquestionáveis motivações materiais (incentivos económicos) e psicológicas (a confiança do povo num projecto que sente seu porque participa na tomada das decisões fundamentais); 4) a conversão da ideologização extrema num sistema de valores éticos e sociais decididos e compartilhados por toda a população. O socialismo democrático como genuína expressão do poder das massas populares, só será possível com base na cultura socialista de massas, a qual é absolutamente oposta à burocratização das vanguardas e aos privilégios de qualquer tipo.

IV. O SOCIALISMO DO SÉCULO XXI

O capitalismo, que no passado representou uma força progressista face aos sistemas económico-sociais que o precederam, ao entrar na sua fase imperialista, mostra a sua incapacidade para enfrentar os problemas fundamentais da humanidade como a pobreza, a fome, a exploração, a opressão de tipo económico, racista e sexista, a destruição da natureza e a ausência de democracia; e de facto, se converteu na principal fonte desses problemas e do seu agravamento, mais ainda na época actual de globalização neo-liberal. Chegou-se a este ponto devido a cinco limitantes sistémicas: 1) a sua instabilidade estrutural, resultante da contradição entre o carácter social da produção e da sua apropriação privada, o que torna inevitáveis as crises recorrentes do sistema; 2) trata-se de um sistema assimétrico que produz a concentração e centralização do capital e da riqueza social em poucas mãos; 3) a economia global tem como elementos dinâmicos as empresas transnacionais que são propriedade das elites económicas do seu país de origem; 4) as empresas transnacionais são excludentes relativamente a outras empresas, mas sobretudo em relação às maiorias sociais, e o seu carácter antidemocrático dá origem a que os resultados da economia mundial não estejam em concordância com as necessidades das populações; e 5) a mundialização do capitalismo neo-liberal e do consumismo no chamado "primeiro mundo" são ecologicamente insustentáveis para o desenvolvimento da humanidade.

As guerras, a recessão mundial, a miséria, a dominação neo-colonial, não são obra do acaso, são resultados inevitáveis do capitalismo porque este sistema não conduz a que o ser humano actue de maneira ética e crítica, antes fomenta sistematicamente os contra-valores (egoísmo, individualismo, ambição pelo poder e exploração entre os seres humanos); o resultado da dupla deficiência estrutural da sociedade burguesa: ser anti-ética e disfuncional para as necessidades das maiorias.

Com a recessão global do capitalismo em curso, os sonhos e mentiras dos neoliberais sobre uma nova economia de mercado sem crises recorrentes nem convulsões sociais, evaporaram-se. Os parâmetros que expressam a saúde de uma economia já vinham indicando desde o ano 2000 a tendência para a recessão global. As suas consequências para os países neocoloniais são devastadoras: as suas economias tornam-se estruturalmente inviáveis, perdem a sua capacidade para a reprodução ampliada do capital e nenhuma medida, nem o maior endividamento ou os recorrentes cortes orçamentais, as privatizações a qualquer preço e a ortodoxia monetária fiscal fundo-monetarista, podem romper o ciclo de empobrecimento e de destruição neocolonial.

A mudança dos ciclos de acumulação-desacumulação do capital mundial não pode ser conseguida a partir dos espaços regionais débeis da economia mundial como por exemplo, a América Latina e o Caribe. De facto, nem mesmo as grandes potências têm a força necessária para mudar por si sós as dinâmicas da economia global; e não há nem haverá condições para uma iniciativa concertada do Grupo dos 7, porque requereria uma viragem na correlação de forças dentro da "alta burguesia.

O capitalismo deve ser substituído por um sistema económico democraticamente planificado, equitativo e sustentável. Na época actual, a transição para o socialismo pode ser favorecida pelas novas tecnologias (informática, telecomunicações e biotecnologia, entre outras) e a sua aplicação à economia, à administração pública e à vida privada. Sobre este novo nível de desenvolvimento das forças produtivas, um novo tipo de relações sociais de produção e de exercício democrático real do poder político elevaria significativamente o nível de vida da população mundial. Isto traria consigo a necessária igualdade de direitos económicos entre os povos, e seria posto fim, tanto ao consumismo nos países industrializados, como à fome nos países subdesenvolvidos; esta equiparação nos níveis de vida entre todos os países, com uma participação igualitária nos frutos da técnica moderna, estaria directamente relacionada com a construção a nível mundial dos princípios de equidade, solidariedade, sustentabilidade, respeito e paz. Para avançar nesta direcção, se requerem transformações políticas e sociais impulsionadas pelos movimentos de massas e peIas forças democráticas e socialistas, é em particular necessária a substituição da democracia formal peIa democracia participativa.

Desde sempre que no capitalismo nas suas diversas fases e modalidades, mas também no chamado "socialismo real", não houve lugar à participação democrática real da sociedade na determinação das decisões económicas, sociais e políticas fundamentais. As relações de exploração capitalista, a lógica burocrática do "socialismo real" tornaram impossível que a democracia formal desse um passo em direcção à democracia participativa. Estamos vivendo o esgotamento dos projectos históricos do capitalismo e do chamado "socialismo real"; estamos na última fase da sociedade de classes e, portanto, ante a responsabilidade de acelerar a entrada numa nova etapa de transição para o socialismo sustentado na democracia participativa de massas, que poderíamos enunciar como o socialismo dei século XXI.

A democracia participativa refere-se à real capacidade da sociedade poder decidir sobre os principais assuntos públicos em cada nação; trata-se de uma ampliação qualitativa da democracia formal. Essa capacidade não será exclusiva da esfera política, mas será extensiva a todas as esferas da vida social (governo, economia, legislação, saúde, educação, relações externas, cultura, desporto e ocupação de tempos livres). Trata-se da democracia representativa. No processo de transição para o socialismo, e sobretudo na construção do socialismo propriamente dito, a democracia participativa deve ser acompanhada indissoluvelmente da democracia social, entendida como a melhoria geral do nível de vida para toda a sociedade. Isto é fundamental para o desenvolvimento da nova sociedade socialista do século XXI.

Na América Latina e no Caribe está ressurgindo a praxis consciente da humanidade em busca de um sistema social superior ao capitalismo, e esta manifestou-se com a emergência de múltiplas rebeliões e movimentos populares de massas, da Argentina ao México. Nesta região é preciso defender a soberania nacional e a integração autónoma, para conter o ALCA e frustrar o Plano Colômbia, impulsionar o desenvolvimento da democracia participativa e da justiçai social, e apoiar e fortalecer o processo bolivariano da Venezuela e da Bolívia. Descrevemos de seguida, muito esquematicamente, o conteúdo e a orientação do processo bolivariano da Venezuela.

A Revolução Bolivariana da Venezuela

Desde que acedeu eleitoralmente ao governo da Venezuela, Hugo Chávez tem vindo a impulsionar o processo de Ia Revolução Bolivariana, o qual representa uma experiência inovadora do que pode vir a ser o socialismo do século XXI. Quais os traços definidores deste processo histórico concreto?

No plano interno, a utilização da poderosa alavanca do petróleo para impulsionar o crescimento económico e sustentá-lo a longo prazo, para ampliar a capacidade produtiva do país e redistribuir mais equitativamente a riqueza mediante amplos programas de infra-estrutura e de criação de empregos, a extensão dos serviços básicos às classes populares e a superação da pobreza.

Na Venezuela, a maioria dos serviços básicos eram privados, pelo que se tornavam necessárias estruturas paralelas para que a maioria da população tivesse acesso aos serviços indispensáveis. O governo de Hugo Chávez realiza Missões de ajuda ao desenvolvimento das comunidades mais pobres, nas áreas da saúde, da educação (em 28 de Outubro de 2005, após de cinco anos de incansáveis esforços, a República Bolivariana da Venezuela foi declarada peIa UNESCO "Território Livre de Analfabetismo") e alimentação, além de um amplo programa nacional de habitação. Mediante sólidos processos de capacitação, estes serviços são postos de pé peIa própria população que deles necessita, o que possibilita que os tornem seus, os defendam e constituam assim a base da construção do poder popular. Cuba apoiou decididamente a construção do poder popular na República Bolivariana da Venezuela, enviando milhares de jovens cubanos a participar nas Missões de educação e saúde.

Outra linha fundamental de acção do projecto popular de Hugo Chávez consiste na criação de micro-empresas e cooperativas como instrumento para reduzir a pobreza e o desemprego, através de um vasto programa de formação.

No plano externo, Hugo Chávez retomou com entusiasmo o sentido de fraternidade e solidariedade que deve prevalecer entre os povos da América Latina e do Caribe, pondo à disposição o enorme potencial petrolífero da Venezuela para impulsionar a integração económica da região e modificar a correlação de forças frente ao imperialismo estadunidense. Outros exemplos nesta mesma direcção são a reprodução da experiência das Missões educativas (com a participação directa de jovens venezuelanos) na Bolívia e na República Dominicana, o projecto Telesur, Petrosur, Petroamerica, o Banco do Sul, a Universidade do Sul, e desde logo a ALBA em contraposição à estratégia imperialista de integração representada pelo ALCA.

Ao que atrás se expõe, há que acrescentar a estratégia de alianças e mecanismos de cooperação com Cuba e a China, e com países que têm governos de centro-esquerda como Espanha, Brasil, Uruguai e Chile, e de esquerda como a Bolívia, ou anti-neoliberais, como a Argentina.

Com isto, a Revolução Bolivariana mostra que entende o carácter internacional do processo de transição para o socialismo, e a sua importância decisiva na construção dei socialismo na Venezuela, assim como o seu efeito recíproco com os outros países.

Perante o fracasso e os desastrosos efeitos do capitalismo neoliberal, Hugo Chávez defendeu repetidamente que só o socialismo pode trazer justiça social e aliviar a pobreza, mas apenas se despojado dos lastros burocráticos e do dogmatismo ideológico, e superando os erros do passado. Há que orientar a democracia participativa e revolucionária para o socialismo, e discutir sobre a construção do socialismo desde as assembleias de bairro até aos parlamentos.

Nas experiências socialistas anteriores apresentaram-se elementos significativos que limitaram o seu funcionamento, como a ausência de participação real do povo nas decisões, a falta de pluralismo, o estatismo de a economia, o não reconhecimento de direitos humanos e das liberdades de expressão e manifestação. Em função destas experiências, o processo da Revolução Bolivariana defende que o socialismo do século XXI deve conceder uma grande relevância à ética socialista, deve recuperar o sentido ético da vida, da solidariedade e da generosidade; deve ultrapassar o individualismo, o egoísmo, o ódio e os privilégios, que se contam entre os principais obstáculos para a construção de uma nova sociedade, de uma sociedade socialista. De maneira destacada e como uma das mais altas prioridades do processo revolucionário, se deve eliminar o fenómeno da corrupção, que ainda que seja um problema que imperou no "socialismo real", tem as suas raízes no capitalismo pela ânsia desmedida de lucro. Portanto, entre as directrizes políticas fundamentais para o socialismo do século XXI, a democracia participativa deve ocupar o lugar central na construção do poder popular. Há que centrar tudo no povo, o partido governante deve estar subordinado ao povo e não o contrário.

Nas sociedades capitalistas contemporâneas coexistem a extrema pobreza e a extrema riqueza. O processo de construção do socialismo deve conjugar a igualdade com a liberdade Por isso, em matéria económica o projecto socialista do século XXI deve impulsionar as ideias da propriedade colectiva, a banca popular, a empresa de produção social e as unidades de produção comunitária, junto à planificação central e ao controlo das áreas estratégicas, e ao uso regulado do mecanismo de mercado, com o fim de desenvolver as forças produtivas sem descurar o melhoramento do nível de vida do conjunto da sociedade.

As pressões, ameaças e ingerências dos Estados Unidos para derrotar Hugo Chávez e deter o avanço da Revolução Bolivariana não cessaram, mas foram aliás, totalmente infrutíferas e além disso injectaram no processo doses adicionais de radicalidade e de apoio popular. Com o apoio do povo venezuelano, o Presidente Hugo Chávez ganhou o referendo revogatório de 15 de Agosto de 2004, promovido peIas forças políticas de direita. Foi uma demonstração contundente de que a maioria da população assumiu como sua e defende consequentemente a Revolução Bolivariana. Já assim o tinha feito em Abril de 2002, quando se deu a intentona golpista apoiada pelo governo estadunidense. Mais tarde, em 2003, a direita tentou novo golpe, com a greve patronal e a sabotagem de dois meses à empresa petrolífera estatal, que causou perdas de 14 mil milhões de dólares à economia venezuelana. Isto demonstra que o projecto económico, social e político chavista conta com o apoio popular, ainda que diversas forças políticas e algumas estruturas do Estado tenham pretendido impedir que se fosse a fundo nas transformações que a sociedade venezuelana necessita. Essas forças e estruturas não desejam mudar as estruturas capitalistas.

Hugo Chávez defendeu abertamente que o socialismo é a única alternativa ao neoliberalismo e ao capitalismo, e que a sua construção não deve depender de um líder "porque toda a revolução é um processo molecular, que se desenvolve numa atmosfera de luta de classes, um processo cuja duração não é previsível, que exige uma organização revolucionária preparada para a luta prolongada". Por isso, entre as debilidades do processo revolucionário na Venezuela, conta-se o facto de o próprio Chávez suportar nos seus ombros as massas populares e a burocracia chavista, pelo que faltando o presidente, poderia vir abaixo o projecto bolivariano de transição para o socialismo e apenas restaria um projecto de contornos social-democratas.

V. PROPOSTA DE EIXOS ESSENCIAIS DA REFORMULAÇÃO ACTUAL DO PROJECTO SOCIALISTA

No decurso de pouco mais de século e meio desde as ideias fundadoras de Marx e Engels, os socialismos e os socialistas abordaram de formas diversas as questões essenciais do socialismo, tais como: o sujeito revolucionário, os movimentos populares, os partidos, os Estados e o sistema mundial, mas sempre desde a perspectiva do modo de produção. A redefinição do projecto socialista tem que pensar estas questões e muitas outras desde essa perspectiva, mas também desde a perspectiva do modo de vida. E é assim porque não haverá socialismo depois se não se construir desde já, em todos os planos da sociedade. O novo modelo social será resultado apenas da construção consciente desde o presente pelos socialistas e peIas lutas dos povos do mundo.

Se, desde o nosso tempo, os socialistas se empenharem em desenvolver práticas democráticas, éticas e solidárias de carácter socialista, fundadas no conhecimento científico e em consonância com o movimento da realidade, construiremos o socialismo. Mas se não o fazemos desde já, não o construiremos. Neste sentido, é imprescindível resgatar a dialéctica indivíduo-sociedade, porque: a) sem a relação dialéctica entre teoria e prática, sem a prática de massas e a sua sistematização, sem consciência de massas, sem movimento revolucionário de massas, em síntese, sem a aplicação da linha (de acção) de massas não pode haver socialismo; b) não se trata de um processo linear e sempre ascendente, e portanto, automático, mas há nele avanços e retrocessos, fluxos e refluxos, êxitos e fracassos.

O socialismo sempre esteve e continuará estando em debate. Queremos finalizar esta comunicação propondo que a reformulação actual do projecto socialista deva estabelece no seu núcleo os seguintes dez eixos essenciais:

1. O socialismo a que aspiramos deve ser superior ao capitalismo em termos de justiça social, eficiência e racionalidade económica, maior democracia e participação social, e desenvolvimento da cultura. Também deve atacar os fundamentos ideológicos do chamado "socialismo real", de que se destacam: burocratismo, autoritarismo, voluntarismo e paternalismo demagógico e ideológico.

2. Proceder ao balanço crítico e auto-crítico, e abordar a partir de novas perspectivas questões centrais das experiências socialistas que foram derrotadas e das que afortunadamente continuam em curso, tais como: a vinculação precisa entre planificação, mercado e auto-gestão; entre propriedade pública e gestão social; entre os diferentes níveis de desenvolvimento económico; entre qualidade e quantidade e eficiência do trabalho; e entre trabalho especializado de administração e controlo popular sobre os funcionários e as relações de poder.

3- Abandonar as velhas ideias e encarar o estudo do novo contexto, e prepararmo-nos para construir as formas concretas do socialismo do século XXI ao longo de um prolongado processo histórico, moldado pelos novos traços e contradições do sistema dominante.

4- Estudar seriamente as mudanças na divisão e organização social do trabalho, as formas de comunicação social, as relações entre géneros, etnias e gerações, as novas necessidades e exigências sociais, porque na época actual devem fazer parte dos ingredientes essenciais da reformulação do projecto socialista.

5- A redefinição do projecto socialista terá que cristalizar-se num movimento social que abarque as diversas forças e figuras sociais do trabalho, respeitando as suas próprias tendências e modalidades de acção, luta e organização.

6- Assumir a grande relevância que têm as condições específicas em cada país na formulação programática e estratégica da luta pelo socialismo e no processo da sua construção.

7- Vincular as necessidades históricas do desenvolvimento social com as exigências concretas dos sectores oprimidos.

8- Desenvolver a transformação democrática do Estado, dos serviços públicos e das instituições civis.

9- Impulsionar um novo tipo de desenvolvimento das forças produtivas que conjugue o progresso tecnológico, o crescimento económico, a protecção do ambiente e a melhoria da qualidade de vida.

10- A reformulação do projecto socialista deve incluir um programa de reivindicação de políticas de emprego e rendimento dignos para todos, de impulso e ampliação crescente da democracia participativa e da democracia social, assim como de extensão da educação em todos os níveis e da cultura a todo o povo, da defesa e respeito absoluto dos direitos humanos.

11- Criar redes cada vez mais amplas de auto-organização, consciencialização, gestão e controlo a partir da base, para ir construindo desde agora as vias e as estruturas de um autêntico poder popular.

12- Os eixos fundamentais da estrutura do socialismo do século XXI devem ser: PRODUTIVIDADE, EQUIDADE, LIBERDADE, DEMOCRACIA, FRATERNIDADE E SOLIDARIEDADE, na economia, no poder e no saber.

Com base em tudo o que atrás se expôs, afirmamos que a grande tarefa da etapa actual é impulsionar a transição e a construção para o socialismo do século XXI.

[*] Responsáveis do Partido do Trabalho (México).   Comunicação apresentada no X Seminário "Os partidos e uma nova sociedade", Cidade do México, 17-19 de Março de 2006.
Tradução de Carlos Coutinho.


Esta comunicação encontra-se em http://resistir.info/ .
14/Jul/06