A educação para além do capital
1- A lógica incorrigível do capital e o seu impacto sobre a educação
2- Os remédios não podem ser só formais; eles devem ser essenciais
3- "A aprendizagem é a nossa vida, desde a juventude até à velhice"
4- A educação como a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho"
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"A aprendizagem é a nossa vida, desde a juventude até
à velhice, de facto quase até à morte; ninguém vive
durante dez horas sem aprender".
Paracelso
"Se viene a la tierra como cera, y el azar nos vacía en
moldes prehechos. Las convenciones creadas deforman la existencia
verdadera
Las redenciones han venido siendo formales: - es necesario que
sean
esenciales . La liberdad política no estará asegurada, mientras
no se
asegura la libertad espiritual.
La escuela y el hogar son las dos
formidables cárceles del hombre".
José Martí
"A doutrina materialista relativa à mudança de
circunstâncias e à educação esquece que elas
são alteradas pelo homem e que o educador deve ser ele próprio
educado. Portanto, esta doutrina deve dividir a sociedade em duas partes, uma
das quais [os educadores] é
superior à sociedade. A coincidência da mudança de
circunstâncias e da
actividade humana ou da auto-mudança
pode ser concebida e racionalmente entendida apenas como
prática revolucionária".
Marx
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Escolhi estas três epígrafes a fim de antecipar alguns dos pontos
principais deste discurso. A primeira, do grande pensador do século
XVI, Paracelso; a segunda, de José Martí e a terceira de Marx. A
primeira diz, em contraste agudo com a concepção actual
tradicional e tendencialmente estreita da educação, que "
A aprendizagem é a nossa vida, da juventude à velhice, de facto
quase até à morte; ninguém vive durante dez horas sem
aprender
"
[1]
. Relativamente a José Martí, ele escreve, podemos estar certos,
com o mesmo espírito de Paracelso quando insiste que "
La educación empieza com la vida, y non acaba sino con la muerte
". Mas ele acrescenta algumas qualificações cruciais,
criticando rigorosamente os remédios tentados na nossa sociedade e
também conclamando à tarefa maciça pela frente. É
assim que ele perspectiva o nosso problema: "Se viene a la tierra como
cera, - y el azar nos vacía en moldes prehechos. Las convenciones
creadas deforman la existencia verdadera
Las redenciones han venido
siendo formales; - es necesario que sean esenciales. La liberdad
política no estará asegurada, mientras no se asegura la libertad
espiritual.
La escuela y el hogar son las dos formidables cárceles
del hombre."
[2]
E a terceira epígrafe, escolhida de entre as "Teses sobre
Feuerbach" de Marx, põe em evidência a linha divisória
que separa os socialistas utópicos, como Robert Owen, daqueles que no
nosso tempo têm que ultrapassar os graves antagonismos estruturais da
nossa sociedade. Porque estes antagonismos bloqueiam o caminho para a
mudança absolutamente necessária sem a qual não pode haver
esperança para a própria sobrevivência da humanidade, muito
menos para a improvisação das suas condições de
existência. Estas são as palavras de Marx: "A doutrina
materialista relativa à mudança de circunstâncias e
à educação esquece que elas são alteradas pelo
homem e que
o educador deve ser ele próprio educado.
Portanto, esta doutrina deve dividir a sociedade em duas partes, uma das
quais é
superior à sociedade.
A coincidência da mudança de circunstâncias e da
actividade humana ou da
auto-mudança
pode ser concebida e racionalmente entendida apenas como
prática revolucionária".
[3]
A ideia que pretendo sublinhar é a de que não apenas na
última citação mas à sua maneira em todas as
três, durante um intervalo temporal de quase cinco séculos, se
sublinha a imperatividade de se instituir tornando-a ao mesmo tempo
irreversível a mudança estrutural radical. Uma
mudança que nos leve
para além do capital
no sentido genuíno e educativamente viável do termo.
1. A lógica incorrigível do capital e o seu impacto sobre a educação
Poucos negariam hoje que a educação e os processos de
reprodução mais amplos estão intimamente ligados.
Consequentemente, uma reformulação significativa da
educação é inconcebível sem a correspondente
transformação do quadro social no qual as práticas
educacionais da sociedade devem realizar as suas vitais e historicamente
importantes funções de mudança. Mas para além do
acordo sobre este simples facto os caminhos dividem-se severamente. Pois, caso
um determinado modo de reprodução da sociedade seja ele
próprio tido como garantido, como o necessário quadro de
intercâmbio social, nesse caso apenas são admitidos alguns
ajustamentos menores em todos os domínios em nome da reforma, incluindo
o da educação. As mudanças sob tais
limitações conjecturais e apriorísticas são
admissíveis apenas com o único e legitimo objectivo de
corrigir
algum detalhe defeituoso da ordem estabelecida, de forma a manter-se as
determinações estruturais fundamentais da sociedade como um todo
intactas, em conformidade com as exigências inalteráveis de um
sistema reprodutivo na sua
totalidade lógico.
É-se autorizado a ajustar as formas através das quais uma
multiplicidade de interesses particulares conflitantes se devem
conformar
com a
regra geral
pré-estabelecida da reprodução societária, mas
nunca se pode alterar a
própria regra geral.
Esta lógica exclui, com finalidade categórica, a possibilidade de
legitimar o concurso entre as
forças hegemónicas fundamentais rivais
de uma dada ordem social como
alternativas viáveis
umas das outras, quer no campo da produção material quer no
domínio cultural/educacional. Portanto, seria bastante absurdo esperar
uma formulação de um ideal educacional, do ponto de vista da
ordem feudal em vigor, que contemplasse a dominação dos servos,
como classe, sobre os senhores da classe dominante bem estabelecida.
Naturalmente, o mesmo vale para a alternativa hegemónica fundamental
entre capital e trabalho. Não surpreendentemente, portanto, até
as mais nobres utopias educacionais, formuladas no passado a partir do ponto de
vista do capital, tiveram que permanecer estritamente dentro dos limites da
perpetuação do domínio do capital como um modo de
reprodução social metabólica. Os interesses objectivos de
classe tinham de prevalecer mesmo quando os autores subjectivamente bem
intencionados destas utopias e discursos críticos observavam claramente
e ridicularizavam as manifestações desumanas dos interesses
materiais dominantes. A suas posições críticas poderiam
apenas chegar até ao ponto de utilizar as
reformas educativas
que propusessem para remediar os piores efeitos da ordem reprodutiva
capitalista estabelecida sem, contudo, eliminar os seus
fundamentos causais
antagónicos profundamente enraizados.
A razão porque todos os esforços passados destinados a instituir
grandes reformas na sociedade por meio de reformas educacionais esclarecidas,
reconciliadas com o ponto de vista do capital, tiveram de soçobrar
e que ainda hoje permanece é o facto de as
determinações fundamentais do sistema capitalista serem
irreformáveis.
Como sabemos através da triste história da estratégia
reformista, já com mais de 100 anos, desde Edward Bernstein
[4]
e seus associados que outrora prometeram a transformação
gradual da ordem capitalista numa ordem qualitativamente diferente, socialista
o capital é irreformável porque pela sua própria
natureza, como totalidade reguladora sistemática, é totalmente
incorrigível.
Ou tem êxito em impor aos membros da sociedade, incluindo as
personificações "carinhosas" do capital, os imperativos
estruturais do seu sistema como um todo, ou perde a sua viabilidade como o
regulador historicamente dominante do modo de reprodução social
metabólico bem estabelecido e universal. Consequentemente, quanto aos
seus parâmetros estruturais fundamentais o capital deve permanecer sempre
incontestável,
mesmo que todos os tipos de correctivos marginais sejam não só
compatíveis mas também benéficos, e realmente
necessários, para ele importando a sobrevivência continuada do
sistema. Limitar uma mudança educacional radical às margens
correctivas auto-servidoras do capital significa abandonar de uma só
vez, conscientemente ou não, o objectivo de uma
transformação social qualitativa. Do mesmo modo, procurar
margens de
reforma sistemática
no próprio enquadramento do sistema capitalista é uma
contradição em termos.
É por isso que é necessário
romper com a lógica do capital
se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional
significativamente diferente.
Devido à limitação de tempo posso aqui referir-me apenas a
duas grandes figuras da burguesia iluminista, a fim de ilustrar os limites
objectivos inultrapassáveis mesmo quando casados com a melhor das
intenções subjectivas. A primeira é um dos maiores
economistas políticos de todos os tempos, Adam Smith, e a segunda o
extraordinário reformador social e educacional utópico que
também tentou pôr em prática aquilo que pregava, até
cair em bancarrota económica Robert Owen.
Adam Smith, apesar do seu profundo compromisso com a forma de
organização da economia e da reprodução social
capitalista, condenou de forma clara o impacto negativo do sistema sobre a
classe trabalhadora. Falando acerca do "Espírito Comercial",
como a causa do problema, ele insistia em que este
"limita as visões do homem. Onde a divisão do trabalho
é levada até à perfeição, todo o homem tem
apenas uma operação simples para realizar; a isto se limita toda
a sua atenção, e poucas ideias passam pela sua cabeça
senão aquelas que com ela têm
ligação imediata.
Quando a mente é empregue numa variedade de objectos, ela é de
certa forma ampliada e aumentada, e devido a isto geralmente reconhece-se que
um artista do campo tem um alcance de pensamentos bastante superior a um
citadino. O primeiro é talvez um artesão, um carpinteiro e um
marceneiro, tudo em um, e a sua atenção deve ser empregue em
vários objectos de diferentes tipos. O último é talvez
apenas um marceneiro; esse tipo específico de trabalho emprega todos os
seus pensamentos, e como ele não teve a oportunidade de comparar
vários objectos, as suas visões das coisas para além do
seu trabalho de forma alguma são tão extensas como as do
primeiro. Este deve ser ainda mais o caso quando
a atenção de uma pessoa é empregue na décima
sétima parte de um alfinete ou a octogésima parte de um
botão,
de tão divididas que estão estas manufacturas.
Estas
são as desvantagens de um espírito comercial. As mentes dos
homens são
contraídas
e tornadas incapazes de elevação.
A educação é desprezada, ou no mínimo negligenciada,
e o espírito heróico praticamente extinto na totalidade.
Remediar estes defeitos seria um assunto digno de séria
atenção."
[5]
Contudo, a "séria atenção" advogada por Adam
Smith chega a ser muito pouco, senão mesmo nada. Porque este astuto
observador das condições da Inglaterra sob o avanço
triunfante do "Espírito Comercial", não encontra outro
remédio senão uma denúncia moralizante dos
efeitos
degradantes das forças secretas, culpando os próprios
trabalhadores em vez do sistema que lhes impõe essa
situação infeliz. Com este espírito Smith escreve que
"Quando o rapaz passa a adulto ele
não tem ideias com as quais se possa divertir.
Portanto quando ele está afastado do seu trabalho, ele tem que
entregar-se à
embriaguez e ao tumulto.
Consequentemente concluímos que, nos locais de comércio da
Inglaterra, os comerciantes estão, na maior parte do tempo, neste estado
desprezível; o seu trabalho durante metade da semana é suficiente
para os manter, e devido à
falta de educação eles não se divertem com outras coisas
senão com o tumulto e a boémia
."
[6]
Assim a exploração capitalista do "tempo de lazer"
levada hoje à perfeição, sob o domínio de um
"Espírito Comercial" mais actualizado, parecia ser a
solução, sem alterar nem um pouco o núcleo alienante do
sistema. A consideração de que Adam Smith gostaria de ter
instituído algo que conduzisse a uma maior elevação do que
a exploração cruel e insensível do "tempo de
lazer" dos jovens não altera o facto de que até o discurso
desta grande figura do Iluminismo Escocês é bastante incapaz de se
dirigir às causas mas tem que permanecer armadilhado no círculo
vicioso dos efeitos condenados. Os limites objectivos da lógica
capitalista prevalecem mesmo quando falamos acerca de grandes figuras que
conceptualizam o mundo a partir do pontos de vista capitalista, e mesmo quando
eles tentam expressar subjectivamente, com um espírito iluminado, uma
preocupação humanitária genuína.
O nosso segundo exemplo, Robert Owen, meio século após Adam
Smith, não restringe as suas palavras quando denuncia a busca do lucro e
o poder do dinheiro, insistindo que "o empregador vê o empregado
como um mero instrumento de ganho".
[7]
Contudo, na sua experiência educacional prática ele espera a
cura a partir do impacto da "razão" e do
"esclarecimento", pregando não aos
""convertidos" mas aos "não
convertíveis" que não conseguem pensar no trabalho em
qualquer outro termo que não seja "mero instrumento de ganho".
É assim que Owen fundamenta a sua tese:
"Devemos então continuar a reter a instrução nacional
dos nossos camaradas, que, como foi mostrado, podem facilmente ser treinados
para serem industriosos, inteligentes, virtuosos e membros valiosos do Estado?
De facto, a verdade é
que todas as medidas agora propostas são apenas um acordo com os erros
do actual sistema; uma vez que estes erros existem agora quase universalmente,
e têm que ser ultrapassados apenas através da força da
razão; e como a razão, para influenciar os objectivos mais
benéficos, faz os seus avanços através de pequenos
degraus, e consubstancia progressivamente uma verdade de alto significado
após outra, será evidente, para mentes de pensamento amplo e
rigoroso, que apenas através destes e de outros acordos similares pode o
sucesso ser racionalmente esperado na prática. Dado que tais acordos
apresentam a verdade e o erro ao público; e sempre que eles são
razoavelmente exibidos em conjunto, no final das contas a verdade tem que
prevalecer.
Espera-se com segurança que este período
está próximo, quando o homem, através da ignorância,
não mais infligirá a miséria desnecessária sobre o
homem; porque a massa da humanidade tornar-se-á iluminada, e irá
claramente discernir que ao agir assim irá inevitavelmente criar
miséria para ela própria"
[8]
O que torna este discurso extremamente problemático, não obstante
as melhores intenções do autor, é que ele tem que se
conformar com os limites debilitantes do capital. É também por
isto que a nobre experiência prática utópica de Owen em
Lanark está condenada ao fracasso. Porque tenta conseguir o
impossível: a reconciliação de uma concepção
utópica liberal/reformista com as regras implacáveis da ordem
estrutural incorrigível do capital.
O discurso de Owen revela a inter-relação estreita entre a utopia
liberal e a defesa do procedimento "através de pequenos
passos", "apenas através de acordos", e de querer
ultrapassar os problemas existentes "apenas através da força
da razão". Contudo, uma vez que os problemas em causa são
abrangentes, correspondendo aos requisitos inalteráveis da
dominação estrutural e da subordinação, a
contradição entre o carácter global que aceita tudo dos
fenómenos sociais criticados e a parcialidade e o gradualismo dos
remédios propostos que apenas são compatíveis com o
ponto de vista do capital têm que ser substituídos de modo
fictício através da generalidade abrangente de alguns "deve
ser" utópicos. Assim, vemos na caracterização de Owen
de "o que tem de ser feito?" uma mudança dos originalmente bem
apontados fenómenos sociais específicos por exemplo, a
condição deplorável em que "o empregador vê o
empregado como um mero instrumento de ganho" para a generalidade
vaga e intemporal do "erro" e da "ignorância", para
concluir de forma circular que o problema da "verdade versus o erro e a
ignorância" (o qual é afirmado como uma questão de
"razão e esclarecimento") pode ser solucionado "apenas
através da força da razão". E, claro, a garantia que
recebemos do êxito do remédio educacional "Owenita"
é, mais uma vez, circular: a afirmação de que "no
final das contas a verdade tem que prevalecer, porque a massa da humanidade
tornar-se-á iluminada". Nas raízes da generalidade vaga da
concepção medicinal de Owen vemos que o seu gradualismo
utópico é, reveladoramente, motivado pelo medo, e pela
angústia, da alternativa sócio-histórica hegemónica
emergente do trabalho. Com este espírito, ele insiste que sob as
condições em que os trabalhadores estão condenados a viver
eles "adquirem uma ferocidade bruta de carácter, a qual, se
não houver planeamento criterioso de medidas legislativas para prevenir
o seu aumento, e melhorar as condições desta classe, mais cedo ou
mais tarde mergulhará o país num formidável e talvez
complexo estado de perigo. A finalidade directa destas
observações é influenciar a melhoria e evitar o
perigo".
[9]
Quando os pensadores castigam o "erro e a ignorância", eles
devem também indicar o fundamento a partir do qual se elevam os pecados
intelectuais criticados, em vez de os assumir como seus, base última e
irredutível na qual a questão do "porquê?"
não pode e não deve ser endereçada. Do mesmo modo,
também o apelo à autoridade da "razão e do
esclarecimento", como a solução futura e infalível
para os problemas analisados esquiva-se falaciosamente à pergunta:
"porque é que a razão e o esclarecimento não
funcionaram no passado?", e se assim foi, "qual é a garantia
de que eles funcionarão no futuro?" Para ter a certeza, Robert Owen
não é de forma alguma o único pensador que oferece o
"erro e a ignorância" como o último fundamento
explicativo dos fenómenos denunciados, para ser felizmente rectificado
pela força toda-poderosa da "razão e do
esclarecimento". Ele partilha esta característica e a associada
crença positiva longe de fundamentada seguramente com a
tradição iluminista liberal no seu conjunto. Isto torna a
contradição subjacente ainda mais significativa e difícil
de ultrapassar. Consequentemente, quando nos opomos à circularidade de
tais diagnósticos finais e declarações de fé, que
insistem em que para além do ponto explicativo assumido possivelmente
ninguém pode ir, não podemos satisfazer-nos com a ideia,
encontrada demasiadas vezes nas discussões filosóficas, de que
estas respostas duvidosas surgem do "erro" dos pensadores criticados
que por sua vez deve ser corrigido através do "raciocínio
adequado". Agir assim seria cometer o mesmo pecado que o nosso
adversário.
O discurso crítico de Robert Owen e o seu remédio educacional
nada têm a ver com o "erro lógico". A
diluição da sua diagnose social num ponto crucial, e a
circularidade das soluções vagas e intemporais oferecidas por
Owen, são
descarrilamentos práticos necessários,
devidos não à lógica formal defeituosa do auto mas sim
à
incorrigibilidade da lógica perversa do capital.
É este último que categoricamente lhe nega a possibilidade de
encontrar respostas numa genuína associação
comunitária com o sujeito social cujo potencial "carácter de
ferocidade bruta" ele teme. É assim que ele acaba com a
contradição não lógica mas de fundamento
prático de querer mudar as relações desumanas
estabelecidas enquanto rejeita, como um perigo sério, a única e
possível alternativa social hegemónica. A
contradição insolúvel reside na concepção de
Owen da mudança significativa como a perpetuação do
existente. A circularidade que vimos no seu raciocínio é a
consequência necessária da assunção de um
"resultado": "razão" triunfante (prosseguindo em
segurança através de "pequenos passos"), que prescreve
o "erro e a ignorância" como o problema adequadamente
rectificado, para o qual se supõe ser a razão eminentemente
adequada a resolver. Desta forma, mesmo que inconscientemente, a
relação entre o problema e a sua solução na verdade
está revertida, com isso redefinindo ahistoricamente o primeiro de
maneira a ajustar-se à solução capitalisticamente
permissível que fora conceptualmente preconcebida. É isto
o que acontece mesmo quando um reformador social e educacional iluminado, que
honestamente tenta remediar os efeitos alienantes e desumanizantes do
"poder do dinheiro" e da "procura do lucro" que ele
deplora, não pode escapar ao colete-de-forças auto-imposto das
determinações causais do capital.
O impacto da lógica incorrigível do capital sobre a
educação tem sido grande ao longo do desenvolvimento do sistema.
Apenas as modalidades de imposição dos imperativos estruturais do
capital no domínio educacional mudaram desde os primeiros dias
sangrentos da "acumulação primitiva" até ao
presente, em sintonia com as circunstâncias históricas alteradas,
como veremos na próxima secção. É por isso que hoje
o significado da mudança educacional radical não pode ser
senão o rasgar do colete-de-forças da lógica
incorrigível do sistema: através do planeamento e da
prossecução consistente da estratégia de quebrar a regra
do capital com todos os meios disponíveis, assim como com todos aqueles
que ainda têm de ser inventados neste espírito.
2. Os remédios não podem ser só formais; eles devem ser essenciais
Parafraseando a epígrafe retirada de José Martí, podemos
com ele dizer que "os remédios não podem ser apenas
formais;
eles devem ser essenciais".
[10]
A educação institucionalizada, especialmente nos últimos
cento e cinquenta anos, serviu no seu todo o propósito de
não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário
à maquinaria produtiva em expansão do sistema capitalista mas
também o de gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os
interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhum tipo de
alternativa à gestão da sociedade ou na forma
"internacionalizada" (i.e. aceite pelos indivíduos
"educados" devidamente) ou num ambiente de dominação
estrutural hierárquica e de subordinação reforçada
implacavelmente. A própria História tinha que ser totalmente
adulterada, e de facto frequentemente falsificada de modo grosseiro, para este
propósito. Fidel Castro, falando sobre a falsificação da
história cubana após a guerra de independência do
colonialismo espanhol, dá um exemplo impressionante:
"¿Qué nos dijeron en la escuela? ¿Qué nos
decían aquellos inescrupulosos libros de historia sobre los hechos? Nos
decían que la potencia imperialista no era la potencia imperialista,
sino que, lleno de generosidad, el gobierno de Estados Unidos, deseoso de
darnos la liberdad, había intervenido en aquella guerra y que, como
consecuencia de eso, éramos libres. Pero no éramos libres por
cientos de miles de cubanos que murieron durante 30 años en los
combates, no éramos libres por el gesto heroico de Carlos Manuel de
Céspedes, el Padre de la Patria, que inició aquella lucha, que
incluso prefirió que le fusiliaran al hijo antes de hacer una sola
concesión; no éramos libres por el esfuezo heroico de tantos
cubanos, no éramos libres por la predica de Martí, no
éramos libres por el esfuerzo heroico de Máximo Gómez,
Calixto García y tantos aquellos próceres ilustres; no
éramos libres por la sangre derramada por las veinte y tantas heridas de
Antonio Maceio y su caída heroica en Punta Brava; éramos libres
sencillamente porque Teodoro Roosevelt desembarcó con unos quantos
rangers
en Santiago de Cuba para combatir contra un ejército agotado y
prácticamente vencído, o porque los acorazados americanos
hundieron a los 'cacharros' de Cerveza frente a la bahia de Santiago de Cuba. Y
esas monstruosas mentiras, esas increíbles falsedades eran las que se
enseñaban en nuestras escuelas."
[11]
As deturpações deste tipo constituem a normalidade quando os
riscos são realmente elevados, e é particularmente assim quando
eles respeitam directamente à racionalização e
legitimação da ordem social estabelecida como a "ordem
natural" supostamente inalterável. A história tem
então que ser reescrita e propagandeada de uma forma ainda mais
distorcida não só nos órgãos amplamente difundidos
de formação da opinião política, desde os jornais
de massas aos canais de rádio e de televisão, mas até nas
supostamente teorias académicas objectivas. Marx oferece uma
caracterização devastadora de como uma questão vital da
história do capitalismo, conhecida como a
acumulação primitiva ou original do capital,
é tratada pela ciência da Economia Política. Ele escreve
num poderoso capítulo de
O Capital:
"A acumulação primitiva desempenha na economia
política quase o mesmo papel que o pecado original na teologia.
Adão mordeu a maçã e por isso o pecado abateu-se sobre a
espécie humana. Pretende-se explicar a origem da
acumulação por meio de uma anedota ocorrida num passado distante.
Havia outrora, em tempos muito remotos, duas espécies de gente: uma
elite laboriosa, inteligente e sobretudo frugal, e uma população
constituída de vadios, trapalhões que gastavam mais do que
tinham. A lenda teológica conta-nos que o homem foi condenado a comer o
pão com o suor do seu rosto. Mas a lenda económica explica-nos o
motivo porque existem pessoas que escapam a esse mandamento divino.
Aconteceu que a elite foi acumulando riquezas e a população vadia
acabou por ficar sem ter outra coisa para vender além da própria
pele. Temos aí o pecado original da economia. Por causa dele, a grande
massa é pobre e, apesar de se esfalfar, só tem para vender a
própria força de trabalho, enquanto cresce continuamente a
riqueza de poucos, embora esses poucos tenham cessado de trabalhar há
muito. Tal
infantilidade insípida
nos é pregada todos os dias para a defesa da propriedade.
Na
história real, é um facto notório que
a conquista, a escravização, o roubo, o assassinato,
em resumo,
a força,
desempenha o maior papel. Nos delicados anais da economia política, o
idílico reina desde tempos imemoriais.
Como matéria de
facto, os métodos da acumulação primitiva são tudo
menos idílicos.
O proletariado criado pela
separação dos bandos de servos feudais e pela
expropriação forçada
dos solos às pessoas, este proletariado 'livre' [
vogelfrei,
i.e., 'livre como um pássaro'] não podia ser absorvido pelas
manufacturas nascentes tão depressa como foi atirado ao mundo. Por
outro lado, estes homens, repentinamente arrancados do seu modo de vida
habitual, não podiam adaptar-se repentinamente à disciplina da
sua nova condição. Eles foram,
em massa,
transformados em pedintes, ladrões e vagabundos, em parte por
inclinação, na maioria dos casos devido ao stress das
circunstâncias. Portanto no final do século XV e durante todo o
século XVI, por toda a Europa ocidental [foi instituída] uma
legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da
presente classe trabalhadora foram punidos pela sua
transformação forçada
em vagabundos e pobres. A legislação tratava-os como
criminosos 'voluntários',
e assumia que dependia
da sua boa vontade continuarem a trabalhar
sob as anteriores condições que de facto
já não existiam
.
Dentre os pobres fugitivos, acerca dos quais Thomas More diz que foram
forçados a roubar,
'72.000 grandes e pequenos ladrões foram mortos'
no reinado de Henrique VIII.
[12]
Naturalmente, nem mesmo os altamente respeitados pensadores da classe dominante
podiam adoptar uma atitude que divergisse do modo cruel de subjugar aqueles que
têm de ser mantidos sob o mais estrito controle no interesse da ordem
estabelecida. Não até que a própria mudança das
condições de produção modificasse a necessidade de
uma força de trabalho grandemente ampliada sob as
condições expansionistas da revolução industrial.
No tempo em que John Locke escrevia, havia uma maior procura de pessoas
empregáveis lucrativamente do que no tempo de Henrique VIII, mesmo que
ainda muito distante do que veio a suceder durante a revolução
industrial. Portanto a "população excedentária"
em diminuição significativa não teve de ser fisicamente
eliminada como anteriormente. Todavia, tinha de ser tratada de uma forma mais
autoritária, racionalizando-se ao mesmo tempo a brutalidade e a
desumanidade recomendadas em nome de uma alta e bombástica moralidade.
Deste modo, nas últimas décadas do século XVII, em
conformidade com o ponto de vista capitalista da economia política da
época, o grande ídolo do liberalismo moderno, John Locke
um latifundiário absenteísta em Somersetshire bem como o
responsável do governo mais generosamente pago pregava a mesma
"infantilidade insípida", tal como descrita por Marx. Locke
insistiu em que a causa para "O crescimento dos pobres
não
pode ser nada mais do que o relaxamento da disciplina e a
corrupção dos hábitos; estando a virtude e a
indústria como companheiros constantes de um lado assim como o
vício e a ociosidade estão do outro. Portanto, o primeiro passo
no sentido de colocar os pobres no trabalho
deve ser a
restrição da sua libertinagem através de uma
execução estrita das leis contra ela existentes [por Henrique
VIII e outros].
[13]
Recebendo anualmente a remuneração quase astronómica de
cerca de £1,500 pelos seus serviços ao governo (como
Comissário no Board of Trade, um dos seus vários cargos), Locke
não hesitou em louvar a perspectiva de os pobres ganharem "um
centavo por dia"
[14]
(a penny per diem),
ou seja, uma soma aproximadamente 1.000 vezes inferior ao seu próprio
vencimento em apenas um dos seus cargos governamentais. Não
surpreendentemente, portanto, "O valor dos seus bens quando faleceu
quase £20,000, das quais £12,000 eram em dinheiro era
comparável ao de um comerciante próspero de Londres".
[15]
Um grande feito para uma pessoa cuja principal fonte de receitas era
ordenhar confessadamente de bom grado o Estado!
Além disso, sendo um verdadeiro cavalheiro, com um muito elevado
interesse a proteger, ele também queria regular os movimentos dos pobres
através da medida perversa dos
passes,
propondo que: "Todos os homens a mendigar nos municípios
marítimos sem passes, que sejam
aleijados
ou tenham
mais que 50 anos
de idade, e todos os de
qualquer idade
também mendigando sem passes nos municípios do interior sem
qualquer orla marítima, devem ser enviados para uma casa de
correcção próxima, para aí serem mantidos em
trabalhos pesados
durante três anos".
[16]
E enquanto as leis brutais de Henrique VIII e de Eduardo VI pretendiam
cortar apenas "
metade
da orelha" dos criminosos
reincidentes,
o nosso grande filósofo liberal e responsável do Estado
uma das figuras dominantes do Iluminismo inglês sugeriu uma
melhoria de tais leis ao recomendar solenemente a perda de
ambas
as orelhas, a ser administrada àqueles que cometessem um crime
pela primeira vez.
[17]
Ao mesmo tempo, no seu
Memorandum on the Reform of the Poor Law,
Locke também propôs a instituição de casas de
trabalho para os filhos dos pobres ainda de tenra idade, argumentando que:
"Os filhos das pessoas trabalhadoras são um fardo comum para a
paróquia, e habitualmente são mantidas na ociosidade, de forma
que o seu trabalho também é geralmente perdido para o
público até que eles atinjam doze ou catorze anos de idade. O
remédio mais eficaz para isto que somos capazes de conceber, e o qual
deste modo humildemente propomos, é o de que, na acima mencionada lei a
ser decretada, seja além disso determinado que se criem escolas de
trabalho em todas as paróquias, às quais os filhos de todos tal
como exige o alívio da paróquia,
acima dos três e abaixo dos catorze anos de idade
devem ser
obrigados
a ir".
[18]
Não sendo ele próprio um homem religioso, a principal
preocupação de Locke era combinar disciplina de trabalho severa e
doutrinação religiosa com a máxima frugalidade financeira
municipal e estatal. Ele argumentava que "Também outra vantagem de
levar as crianças a uma escola prática é que desta forma
elas podem ser obrigadas a ir à igreja todos os domingos, juntamente com
os seus professores ou professoras, na qual podem ser levados a ter algum
sentido de religião; ao passo que agora, de forma geral, no seu
ócio e na sua educação descontraída, eles
são totalmente estranhos tanto à
religião e à moralidade
como o são para a
indústria
".
[19]
Obviamente, então, as medidas que tinham de ser aplicadas aos
"trabalhadores pobres" eram radicalmente diferentes daquelas que os
"homens da razão" consideravam adequadas para si
próprios. No final tudo se reduzia a relações de poder
nuas, impostas com extrema brutalidade e violência no decurso dos
primeiros desenvolvimentos capitalistas, desprezando a forma como eram
racionalizadas nos "delicados anais da economia política", nas
palavras de Marx.
Naturalmente, as instituições de educação tiveram
de ser adaptadas no decorrer do tempo, de acordo com as
determinações reprodutivas em mutação do sistema
capitalista. Deste modo, teve de se abandonar a extrema brutalidade e a
violência legalmente impostas como meio educativo anteriormente
não só inquestionavelmente aceite mas até activamente
promovida por figuras do início do Iluminismo, como o próprio
Locke, como acabámos de ver. Elas foram abandonadas não devido a
considerações humanitárias, mesmo que tenham sido
frequentemente racionalizadas em tais termos, mas porque a
manutenção da maquinaria da imposição severa se
mostrou economicamente devastadora ou pelo menos supérflua. E isto era
verdadeiro não só para as instituições formais de
educação mas também em alguns domínios
indirectamente ligados às ideias educacionais. Para mostrar apenas um
exemplo significativo, o êxito inicial da experiência de Robert
Owen deveu-se não ao humanitarismo paternalista deste capitalista
esclarecido, mas à vantagem produtiva relativa aproveitada inicialmente
pela iniciativa industrial da sua comunidade utópica. Graças
à redução da absurdamente longa jornada de trabalho que
prevalecia como regra geral na época, a aproximação
"Owenística" ao trabalho resultou numa muito maior intensidade
de realização produtiva durante o horário reduzido.
Contudo, quando práticas similares foram mais amplamente difundidas, uma
vez que eles tinham de aceitar as regras da concorrência capitalista, a
sua empresa passou a estar condenada e foi à falência, não
obstante as indubitavelmente avançadas visões de Robert Owen em
matéria educacional.
As determinações abrangentes do capital afectam profundamente
cada domínio singular
com algum peso na educação, e de forma alguma apenas as
instituições educacionais formais. Estas últimas
estão estritamente integradas na totalidade dos processos sociais. Elas
não podem funcionar adequadamente, excepto se estiverem em sintonia com
as
determinações educacionais abrangentes da sociedade
como um todo.
Aqui a questão crucial, sob a regra do capital, é assegurar a
adopção por cada indivíduo das aspirações
reprodutivas objectivamente possíveis da sociedade como "o seu
próprio objectivo". Por outras palavras, num sentido
verdadeiramente amplo do termo
educação,
trata-se de uma questão de "interiorização"
pelos indivíduos como indicado no segundo parágrafo desta
secção da legitimidade do posto que lhes foi
atribuído na hierarquia social, juntamente com as suas
"próprias" expectativas e as formas de conduta
"certas" mais ou menos explicitamente estipuladas nessa base.
Enquanto a
interiorização
pode fazer o seu bom trabalho, para assegurar os parâmetros reprodutivos
abrangentes do sistema capitalista, a brutalidade e a violência podem ser
postas de parte (embora de modo algum permanentemente abandonadas) como
modalidades dispendiosas de imposição de valor, como de facto
aconteceu no decurso dos desenvolvimentos capitalistas modernos. Apenas em
períodos de
crise aguda
se dá de novo projecção ao arsenal da brutalidade e da
violência com o objectivo de impor valores, como o demonstraram em tempos
recentes as tragédias dos muitos milhares de
desaparecidos
no Chile e na Argentina.
Para terem a certeza, as instituições de educação
formais são uma parte importante do sistema global da
interiorização. Mas apenas uma parte. Quer os indivíduos
participem ou não durante menores ou maiores, mas sempre bastante
limitados, números de anos nas instituições de
educação formais, eles devem ser induzidos a uma
aceitação activa (ou mais ou menos resignada) dos
princípios reprodutivos orientadores dominantes da própria
sociedade, adequados aos seu posto na ordem social, e de acordo com as tarefas
reprodutivas que lhe foram assinaladas. Sob as condições da
escravidão ou da servidão feudal isto é, naturalmente, um
problema bastante diferente daquele que deve prevalecer sob o capitalismo,
mesmo quando os indivíduos trabalhadores formalmente não
são de todo, ou são muito pouco, educados no sentido formal do
termo. Todavia, ao interiorizarem as pressões exteriores omnipresentes,
eles têm de adoptar as perspectivas globais da sociedade de consumo como
os limites individuais inquestionáveis das suas próprias
aspirações. Apenas
a mais consciente acção colectiva
pode destrinça-los desta grave situação paralisante.
Vista nesta perspectiva, torna-se bastante claro que a educação
formal não é a força ideologicamente
primária
que cimenta o sistema capitalista; nem é capaz de, por si só,
fornecer uma alternativa emancipadora radical. Uma das funções
principais da educação formal nas nossas sociedades é
produzir tanta conformidade ou "consenso" quanto for capaz a partir
de dentro e através dos seus próprios limites institucionalizados
e legalmente sancionados. Esperar da sociedade mercantilizada a
promulgação activa ou mesmo a mera tolerância
de um mandato às suas instituições de
educação formal que as convidasse a abraçar plenamente a
grande tarefa histórica do nosso tempo: ou seja, a tarefa de
romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência
humana,
seria um milagre monumental. É por isso que, também no
domínio educacional, os remédios "não podem ser
formais;
eles devem ser
essenciais
". Por outras palavras, eles devem abarcar a totalidade das
práticas educacionais da sociedade estabelecida.
Os remédios educacionais formais, mesmo alguns dos maiores, e mesmo
quando são sacramentados pela lei, podem ser completamente invertidos,
desde que a lógica do capital permaneça intacta como
enquadramento orientador da sociedade. Na Grã-Bretanha, por exemplo,
durante várias décadas, os principais debates acerca da
educação centraram-se na questão das "
Escolas Abrangentes
"
("Comprehensive Schools"),
a serem instituídas em substituição do sistema educativo
elitista há muito estabelecido. Durante aqueles debates o Partido
Trabalhista Britânico não só adoptou como chave do programa
eleitoral a estratégia geral de substituir o anterior sistema
privilegiado de aprendizagem pelas "Escolas Abrangentes", como de
facto também consagrou legalmente esta política depois de ter
constituído como governo, embora mesmo então não tenha
ousado tocar no mais privilegiado sector da educação, as
"Escolas Públicas".
[20]
Hoje, contudo, o governo britânico do "New Labour"
está inclinado a
desmantelar
o sistema da escola abrangente, não só através da
reedição das antigas instituições educacionais
elitistas como também, em acréscimo a estas, através da
instituição de uma nova variedade de "academias"
favoráveis à classe média, apesar de todo o criticismo
mesmo entre os seus próprios apoiantes acerca do estabelecimento de um
sistema de "duas vias"
("two-tier system"),
tal como está em vias de ser estabelecido e reforçado pelo
governo um sistema de duas vias no "Serviço Nacional de
Saúde" britânico.
Assim, ninguém pode realmente escapar da "formidável
prisão" do sistema escolar estabelecido (condenado nestes termos
por José Martí) simplesmente reformando-o. Pois o que lá
estava antes de tais reformas mais cedo ou mais tarde será certamente
restabelecido devido ao fracasso absoluto em desafiar através de
qualquer mudança institucional isolada a lógica agressiva global
do próprio capital. O que precisa ser confrontado e alterado
fundamentalmente é
todo
o sistema de
interiorização,
com todas as suas dimensões visíveis e escondidas. Romper a
lógica do capital no campo da educação é portanto
sinónimo da substituir as formas omnipresentes e profundamente
enraizadas de interiorização mistificante por uma alternativa
positiva
abrangente.
Esta é a questão para a qual agora nos devemos voltar.
3. "A aprendizagem é a nossa vida, desde a juventude até à velhice"
Na sua época Paracelso estava absolutamente certo, e não
está menos certo actualmente:
"A aprendizagem é a nossa vida, desde a juventude até
à velhice, de facto quase até à morte; ninguém vive
durante dez horas sem aprender."
A grande questão é: o que é que aprendemos de uma forma
ou de outra? Será ela conducente à auto-realização
dos indivíduos como "indivíduos socialmente ricos"
humanamente (nas palavras de Marx), ou está ela ao serviço da
perpetuação, consciente ou não, da ordem social alienante
e finalmente incontrolável do capital? Será o conhecimento
necessário para transformar em realidade o ideal da
emancipação humana, em conjunto com a determinação
sustentada e a dedicação dos indivíduos para conduzir a
auto-emancipação da humanidade até à sua
conclusão com êxito, apesar de todas as adversidades, ou é,
pelo contrário, a adopção por indivíduos
particulares de modos de comportamento que apenas favorecem a
realização dos fins reificados do capital? Neste mais vasto e
mais profundo significado da educação, que inclui de forma
proeminente todos os momentos da nossa vida activa, podemos concordar com
Paracelso em que tanto (praticamente tudo) é decidido, para o bem e para
o mal não apenas para nós próprios como
indivíduos mas simultaneamente também para a humanidade em
todas aquelas inelutáveis horas em que não podemos passar
"sem aprender". Isto é assim porque "a aprendizagem
é, verdadeiramente, a nossa vida". E como tanto é decidido
desta forma para o bem e para o mal, o êxito depende de tornar este
processo de aprendizagem, no sentido amplo do "Paracelsiano", um
processo
consciente,
de forma a maximizar o
melhor
e a minimizar o
pior.
Apenas a mais vasta concepção de educação nos pode
ajudar a insistir no objectivo de uma mudança verdadeiramente radical
proporcionando alavancas que rompam a lógica mistificadora do capital.
Esta maneira de abordar os assuntos é, de facto, tanto a
esperança como a garantia do êxito possível. Por
contraste, cair na tentação dos arranjos institucionais formais
"a pouco e pouco", como afirma a sabedoria reformista desde
tempos imemoráveis significa permanecer aprisionado dentro do
círculo vicioso institucionalmente articulado e protegido desta
lógica auto-interessada do capital. Esta última forma de encarar
tanto os problemas em si mesmos como as suas soluções
"realistas" é cuidadosamente cultivada e propagandeada nas
nossas sociedades, enquanto que a alternativa genuína e de alcance amplo
e prático é desqualificada aprioristicamente e afastada
bombasticamente como sendo "gestos políticos". Esta
espécie de aproximação é incuravelmente
elitista
mesmo quando se pretende democrática. Porque limita tanto a
educação como a actividade intelectual da maneira mais estreita
possível, como a única forma certa e adequada de preservar os
"padrões civilizados" daqueles destinados a "educar"
e governar, contra a "anarquia e a subversão".
Simultaneamente exclui a esmagadora maioria da humanidade do âmbito da
acção como
sujeitos,
e condena-os para sempre a serem apenas influenciados como
objectos
(e
manipulados
no mesmo sentido), em nome da presumida superioridade da elite:
"meritocrática", "tecnocrática",
"empresarial", ou o que quer que seja.
Contra a concepção tendencialmente estreita de
educação e da vida intelectual, cujo fim obviamente é
manter o proletariado "no seu lugar", Gramsci argumentava
energicamente há muito tempo atrás que "Não há
qualquer actividade humana da qual se possa excluir toda a
intervenção intelectual o
homo faber
não pode ser separado do
homo sapiens.
Também todo o homem, fora do seu emprego, desenvolve alguma
actividade intelectual; ele é, por outras palavras, um
'filósofo', um artista, um homem experiente, ele partilha a
concepção do mundo, ele tem uma linha consciente de conduta
moral, e portanto
contribui no sentido de manter ou mudar a concepção do mundo,
isto é, no sentido de encorajar novas formas de pensamento"
[21]
Como podemos observar, a posição de Gramsci é
profundamente democrática. É a única defensável.
A sua conclusão é dupla. Primeiro, ele insiste em que todo o ser
humano contribui, de uma forma ou de outra, para a formação da
concepção predominante do mundo. E, segundo, ele sublinha que
tal contribuição pode cair nas categorias contrastantes da
"manutenção" e da "mudança". Pode
não ser apenas uma ou outra mas ambas em simultâneo. Qual das
duas é mais acentuada, e em que grau, irá obviamente depender da
forma como as forças sociais conflitantes se confrontam e sustêm
os seus interesses alternativos importantes. Por outras palavras, a
dinâmica da história não é uma qualquer força
externa misteriosa mas a intervenção de uma enorme multiplicidade
de seres humanos no actual processo histórico, na linha da
"manutenção e/ou mudança" num
período relativamente estático bastante mais de
"manutenção" do que de "mudança", ou
vice-versa na altura de uma grande elevação na intensidade de
confrontações hegemónicas antagonistas uma dada
concepção do mundo, e por conseguinte atrasando ou apressando a
chegada de uma mudança social significativa.
Isto coloca em perspectiva as reivindicações elitistas de
políticos auto-nomeados e educadores. Pois eles não podem mudar
à vontade a "concepção do mundo" da sua
época, não importa o quanto gostariam de o fazer, e não
importa quão maciço possa ser o aparelho de propaganda à
sua disposição. Um
processo colectivo
inelutável de proporções elementares não pode ser
expropriado por bem mesmo pelos mais espertos e mais generosamente financiados
operadores políticos e intelectuais. Se não fosse por este
inconveniente "facto brutal", posto tão poderosamente em
evidência por Gramsci, o domínio da educação
institucional formal estreita poderia reinar para sempre em favor do capital.
Nenhuma quantidade de
manipulação vinda de cima
pode transformar o imensamente complexo processo de modelar a visão
geral do mundo dos nossos tempos constituída de
incontáveis concepções particulares na base de interesses
hegemónicos alternativos irreconciliáveis objectivamente,
independentemente do quão conscientes possam estar os indivíduos
envolvidos acerca dos antagonismos estruturais subjacentes num
dispositivo
homogéneo e uniforme,
funcionando como o promotor
permanente
da lógica do capital. Nem mesmo o aspecto da "
manutenção
" pode ser considerado um constituinte
passivo
da concepção do mundo dominante do indivíduo. Mesmo que
de uma maneira muito diferente do aspecto da "mudança", a
visão do mundo de uma época é contudo
activa
e benéfica para o capital apenas enquanto se mantém activa.
Isto significa que a "manutenção" tem (e deve ter) a
sua própria base de racionalidade, independentemente de quão
problemática é em relação à alternativa
hegemónica do trabalho. Isto é, ela não só tem de
ser produzida pelas classes estruturalmente dominadas de indivíduos em
determinado momento no tempo, mas do mesmo modo tem de ser
constantemente reproduzida
por eles, sujeitas (ou não) à permanência à sua
base de racionalidade original. Quando uma maioria significativa da
população algo aproximada aos 70 por cento em muitos
países se afasta com desdém do "processo
democrático" do ritual eleitoral, tendo lutado no passado pelo
direito ao voto durante décadas, isto mostra uma mudança real de
atitude face à ordem dominante; pode-se dizer que é uma rachadura
nas espessas camadas de gesso cuidadosamente depositadas sobre a fachada
"democrática" do sistema. Contudo, de modo algum se poderia
ou deveria interpretar isto como um afastamento radical da
"manutenção" da concepção do mundo
actualmente dominante.
Naturalmente, as condições são muito mais
favoráveis à atitude da "mudança" e à
emergência de uma concepção do mundo alternativa a meio de
uma crise revolucionária, descrita por Lenin como o tempo "em que
as classes dominantes já não podem governar à maneira
antiga, e as classes subordinadas já não querem viver à
maneira antiga". Estes são momentos absolutamente
extraordinários na história, e não podem ser prolongados
como se poderia desejar, como o demonstraram no passado os fracassos das
estratégias voluntaristas.
[22]
Portanto, em relação quer à
"Manutenção" quer à "mudança"
de uma dada concepção do mundo, a questão fundamental
é a necessidade de modificar, de uma forma
duradoura,
o modo de
interiorização
historicamente prevalecente. Romper a lógica do capital no
âmbito da educação é absolutamente
inconcebível sem isto. E, mais importante, esta relação
pode e tem de ser expressa também de uma forma
positiva.
Pois através de uma mudança radical no modo de
interiorização agora repressivo, que sustenta a
concepção dominante do mundo, o domínio do capital pode
ser e será quebrado.
Nunca é demasiado sublinhar a importância estratégica da
concepção mais ampla de educação, expressa na
frase: "a aprendizagem é a nossa própria vida". Pois
muito do nosso processo continuado de aprendizagem se situa, felizmente, fora
das instituições educacionais formais. Felizmente, porque esses
processos não podem ser prontamente manipulados e controlados pela
estrutura educacional formal legalmente salvaguardada e sancionada. Eles
comportam tudo, desde o brotar das nossas respostas críticas
relativamente aos ambientes materiais mais ou menos desprovidos na nossa
infância, assim como o nosso primeiro encontro com poesia e a arte,
até às nossas diversas experiências de trabalho, sujeitas a
um escrutínio equilibrado por nós próprios e pelas pessoas
com quem as partilhamos, e, claro, até ao nosso envolvimento de muitas
maneiras diferentes em conflitos e confrontos durante a nossa vida, incluindo
as disputas morais, políticas e sociais dos nossos dias. Apenas uma
pequena parte disto está directamente ligada à
educação formal. Contudo eles têm uma enorme
importância não só nos nossos anos precoces de
formação como durante a nossa vida, quando tanto tem que ser
reavaliado e trazido a uma unidade coerente, orgânica e viável sem
a qual não poderíamos possuir uma personalidade, mas
tombaríamos em peças fragmentárias: não presta,
defeituoso mesmo para o serviço de fins sócio-políticos
autoritários. O pesadelo em
1984
de Orwell não é realizável precisamente porque a
esmagadora maioria das nossas experiências constitutivas permanece
e permanecerá sempre fora do domínio do controlo e
coerção institucional formal. Para ter a certeza, muitas escolas
podem causar um grande prejuízo, portanto merecendo totalmente as
severas críticas de Martí como "prisões
terríveis". Mas mesmo as suas piores redes não podem
prevalecer uniformemente. Os jovens podem encontrar alimento intelectual,
moral e artístico noutros lados. Pessoalmente fui muito afortunado por
encontrar, com oito anos de idade, um professor notável. Não na
escola mas quase por acaso. Ele tem sido meu companheiro desde então,
todos os dias. O seu nome é Attila József: um gigante da
literatura mundial. Aqueles que leram a epígrafe do meu livro,
Beyond Capital,
já conhecem o seu nome. Mas deixem-me citar algumas linhas de outro
dos seus grandes poemas, escolhido para epígrafe do meu próximo
livro. Em espanhol elas lêem-se como se segue:
Ni Dios ni la mente, sino
el carbón, el hierro y el petróleo,
la materia real nos ha creado
echándonos hirvientes y violentos
en los moldes de esta
sociedad horrible,
para afincarnos, por la humanidad,
en el eterno suelo.
Después los sacerdotes, los soldados y los burgueses,
al fin nos hemos vuelto fieles
oidores de las leyes:
por eso el sentido de toda obra humana
zumba en nosotros
como el violón.
[23]
Estas linhas foram escritas há setenta anos, em 1933, quando Hitler
conquistou o poder na Alemanha. Mas elas falam hoje a todos nós com
maior intensidade do que em qualquer época anterior. Elas convidam-nos
a "ouvir as leis atenta e verdadeiramente" e a proclamá-las
sonora e claramente por toda a parte. Porque hoje está em jogo nada
menos do que a própria sobrevivência da humanidade. Nenhuma
prática não educacional formal pode extinguir a validade e o
poder duradouros de tais influências.
Sim, "a aprendizagem é a nossa própria vida", como
Paracelso afirmou há quase cinco séculos atrás, e nas suas
pegadas muitos outros também, que talvez nunca tenham sequer ouvido o
seu nome. Mas para tornar esta verdade auto-evidente, como deveria ser, temos
que reclamar o domínio total da educação para toda a vida,
para que seja possível colocar em perspectiva a sua parte formal, a fim
de instituir também aí uma reforma radical. Isto não pode
ser feito sem desafiar as formas actualmente dominantes de
interiorização,
grandemente reforçadas a favor do capital através do
próprio sistema educacional formal. De facto, da maneira como
estão as coisas hoje, a principal função da
educação formal é agir como um cão de guarda
autoritário ex officio
para induzir um conformismo generalizado em determinados modos de
interiorização, de forma a subordiná-los às
exigências da ordem estabelecida. O facto de a educação
formal não poder ter êxito na criação de uma
conformidade universal
não altera o facto de no seu todo estar orientada para aquele fim. Os
professores e alunos que se rebelam contra tal desígnio fazem-no com a
munição que adquiriram tanto dos seus companheiros rebeldes no
interior do domínio formal, e a partir do campo mais amplo da
experiência educacional "desde a juventude até à
velhice".
Do que necessitamos extremamente, então, é de uma actividade de
"contra-interiorização" coerente e sustentada que
não se esgote na
negação
independente do quão necessária é como uma fase
neste empreendimento mas defina os seus alvos fundamentais como a
criação de uma alternativa abrangente
positivamente sustentável
ao que existe. Há cerca de trinta anos atrás estava a editar e
a apresentar um volume de ensaios do notável historiador e pensador
político filipino, Renato Constantino. Na altura ele foi mantido sob os
mais rígidos constrangimentos autoritários do regime cliente dos
EUA encabeçado pelo "general" Marcos. Na altura ele conseguiu
passar-me a mensagem de que gostaria que o volume se intitulasse
Neo Colonial Identity and Counter-Consciousness,
[24]
o nome com que de facto o livro mais tarde apareceu. Totalmente ciente do
impacto escravizador da interiorização da consciência
colonial no seu país, Constantino tentou sempre enfatizar a tarefa
histórica de produzir um sistema de educação duradouro
alternativo, com todos os meios à disposição do povo, bem
além do domínio educacional formal. A
"contra-consciência" adquiriu assim um significado positivo.
Relativamente ao passado Constantino destacava que "Desde o seu
início, a colonização espanhola operava mais
através da religião do que através da força,
afectando portanto profundamente a consciência.
A modelagem de
consciências no interesse do controlo colonial seria repetida noutro
plano pelos americanos, que após uma década de repressão
maciça, operavam similarmente através da consciência, desta
vez usando a educação e outras instituições
culturais."
[25]
E ele tornou claro que a constituição de uma
contra-consciência descolonizada envolvia directamente as massas
populares no empreendimento crítico. Eis como ele definia o significado
da "filosofia de libertação" que defendia:
"É ela própria uma coisa em desenvolvimento dependendo dos
crescimentos de consciência.
Não é contemplativa,
é activa e dinâmica e abrange a situação objectiva
assim como a reacção subjectiva das pessoas envolvidas.
Não pode ser a tarefa de um grupo seleccionado, mesmo que este grupo se
veja motivado pelos melhores interesses do povo. Precisa da
participação da "
espinha dorsal da nação.
"
[26]
Por outras palavras, a aproximação educacional defendida tinha
que adoptar a totalidade das práticas politicas/ educacionais/ culturais
na mais ampla concepção de transformações
emancipadoras. É este o modo como uma contra-consciência
estrategicamente concebida, como a alternativa necessária à
interiorização dominada colonialmente, poderia realizar o seu
grande mandato educativo.
De facto o papel e a correspondente responsabilidade dos educadores não
poderiam ser maiores. Pelo que, como José Martí tornou claro, a
busca da cultura, no sentido próprio do termo, envolve o mais alto risco
pois é inseparável do objectivo fundamental da
libertação. Ele insistia que "
Ser cultos es el único modo de ser libres
". E resumia de uma maneira bela a
razão de ser
da própria educação: "
Educar es depositar en cada hombre toda la obra humana que le há
antecedido; es hacer a cada hombre resumen del mundo viviente hasta el dia en
que vive
".
[27]
Isto é quase impossível dentro dos limites estreitos da
educação formal como está constituída, sob todos os
tipos de pesados constrangimentos, no nosso tempo. O próprio
Martí sentiu que todo o processo de educar devia ser refeito em todos os
aspectos, desde o seu início até ao seu final sempre em aberto,
de modo a transformar a "terrível prisão" num lugar de
emancipação e de realização genuína. Foi por
isto que ele sozinho também escreveu e publicou um periódico
mensal para os jovens em 1889,
La Edad de Oro.
[28]
É neste espírito que se podem reunir todas as dimensões da
educação. Os princípios orientadores da
educação formal devem desta forma ser destrinçados do seu
envolvimento com a lógica de conformidade impositiva com o capital,
movendo-se ao invés disso na direcção de um
intercâmbio activo e positivo com práticas educacionais mais
amplas. Eles precisam muito um do outro. Sem um intercâmbio progressivo
consciente com processos de educação abrangentes como "a
nossa própria vida" a educação formal não pode
realizar as suas muito necessárias
aspirações emancipadoras.
Se, entretanto, os elementos progressistas da educação formal
forem bem sucedidos em redefinir a sua tarefa num espírito orientado em
direcção à perspectiva de uma alternativa
hegemónica à ordem existente, eles podem dar uma
contribuição vital para romper a lógica do capital
não só no seu próprio limitado domínio como
também na sociedade como um todo.
4. A educação como a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho".
Vivemos sob condições de alienação desumanizante e
de uma subversão fetichista do estado real de coisas dentro da
consciência (muitas vezes também caracterizada como
"reificação"), porque o capital não pode exercer
as suas funções sociais metabólicas de
reprodução alargada em qualquer outra direcção.
Mudar estas condições exige uma intervenção
consciente em todos os domínios e a todos os níveis da nossa
existência individual e social. É por isto que, segundo Marx, os
seres humanos devem mudar "dos pés à cabeça as
condições da sua existência industrial e política, e
consequentemente
toda a sua maneira de ser
".
[29]
Marx também enfatizou o facto de que se estivermos à
procura do ponto Arquimediano a partir do qual as contradições
mistificadoras da nossa ordem social podem ser tornadas tanto
inteligíveis como superáveis encontramos na raiz de todas
as variedades de alienação a historicamente desvelada
alienação do trabalho:
um processo de
auto-alienação
escravizante. Mas precisamente porque estamos preocupados com um
processo histórico,
imposto não por uma agência exterior mítica de
predestinação metafísica (caracterizada como a
inelutável "condição humana"
[30]
), nem sem dúvida por uma "natureza humana" imutável
o modo como muitas vezes este problema é tendenciosamente
descrito, mas pelo próprio trabalho, é possível
ultrapassar a alienação
através de uma
reestruturação radical
das nossas condições de existência há muito
estabelecidas, e por conseguinte "toda a nossa maneira de ser".
Consequentemente, a necessária intervenção consciente no
processo histórico, orientado pela tarefa adoptada de ultrapassar a
alienação através de um novo metabolismo reprodutivo
social dos "produtores livremente associados", este tipo de
acção estrategicamente sustentada não pode ser apenas uma
questão de negação, não importa quão
radical. Pois na visão de Marx todas as formas de negação
permanecem condicionadas pelo objecto da sua negação. E de facto
pior que isso. Como a amarga experiência histórica nos demonstrou
amplamente no passado recente, a inércia condicionadora do objecto
negado tende a crescer de poder com o passar do tempo, impondo primeiro a busca
de "uma linha de menor resistência" e subsequentemente
com uma cada vez maior intensidade a "racionalidade" de
regressar às "práticas testadas" do
status quo ante,
as quais são obrigadas a sobreviver nas dimensões não
reestruturadas da ordem anterior.
É aqui que a educação no sentido mais abrangente do
termo, como foi examinado acima aparece. Inevitavelmente, os primeiros
passos de uma grande transformação social na nossa época
envolvem a necessidade de manter sob controlo o estado político hostil
que se opõe, e pela sua própria natureza se deve opor, a qualquer
ideia de uma reestruturação societária abrangente. Neste
sentido a
negação radical
da estrutura completa de comando político do sistema estabelecido deve
afirmar-se, na sua inevitável negatividade predominante, na
fase inicial
da transformação planeada. Mas mesmo nessa fase, e de facto
antes da conquista do poder político, a negação
necessária é adequada para o seu papel assumido apenas se for
enformado positivamente pelo
alvo global
da transformação social contemplada, como a
bússola
de toda a caminhada. Portanto o papel da educação é de
importância vital desde o início para quebrar a
interiorização prevalecente das escolhas políticas
confinadas à "legitimação constitucional
democrática" do Estado capitalista nos seus próprios
interesses. Pois também esta
"contra-interiorização" (ou
contra-consciência") exige a antecipação dos contornos
positivos abrangentes de uma forma radicalmente diferente de gerir as
funções globais de decisão da sociedade, muito para
além da expropriação do poder de tomar todas as
decisões fundamentais há muito estabelecidas, assim como das suas
imposições sem cerimónia aos indivíduos,
através de políticas como a forma de alienação por
excelência na ordem existente.
Contudo, a tarefa histórica que temos de enfrentar é
incomensuravelmente maior que a negação do capitalismo. O
conceito de
ir para além do capital
é inerentemente
positivo.
Ele tem em vista a realização de uma ordem social
metabólica que
positivamente se sustente a si própria,
sem nenhuma referência auto-justificante aos males do capitalismo.
Deve ser este o caso dado que a negação directa das várias
manifestações de alienação é ainda
condicionado por aquilo que ela nega, e portanto permanece vulnerável em
virtude dessa condicionalidade.
A estratégia reformista da defesa do capitalismo é de facto
baseada na tentativa de postular um mudança gradual na sociedade
através da qual se removem
defeitos específicos,
de forma a sabotar a base sobre a qual as reivindicações para um
sistema alternativo
podem ser articuladas. Isto é factível só numa teoria
tendenciosamente ficcional, uma vez que os remédios preconizados das
"reformas" na prática são estruturalmente
irrealizáveis dentro da estrutura estabelecida de sociedade. Desta
forma torna-se claro que o objecto real do reformismo não é de
forma alguma aquele que reivindica para si próprio: o remédio
verdadeiro dos inegáveis defeitos específicos, mesmo que a sua
magnitude seja deliberadamente minimizada, e mesmo que o caminho projectado
para lidar com eles seja auto-indulgentemente admitido como muito lento. O
único termo que tem de facto um sentido objectivo neste discurso
é "
gradual
", e mesmo este é loucamente inflacionado dentro de uma
estratégia global, a qual não pode ser alcançada. Pois os
defeitos específicos do capitalismo não podem sequer ser
observados superficialmente, quanto mais curados genuinamente, sem os referir
ao
sistema como um todo
que necessariamente os produz e constantemente os
reproduz.
A recusa reformista em dirigir-se às contradições do
sistema
existente, em nome da legitimidade assumida de lidar
apenas com as manifestações particulares
ou nas suas variações pós-modernas, a
rejeição apriorística das chamadas "
grandes narratives
" em nome de "
petits récits
" idealizados arbitrariamente é na realidade apenas uma
forma peculiar de rejeitar sem uma análise adequada a possibilidade de
qualquer sistema rival, e uma forma igualmente apriorística de
eternizar
o sistema capitalista. O objecto real da justificação
reformista é, de forma especialmente mistificadora, o sistema dominante
como tal, e não as partes quer do sistema rejeitado quer do defendido,
não obstante o alegado zelo reformista explicitamente declarado pelos
proponentes da "mudança gradual".
[31]
O necessário fracasso em revelar a verdadeira
preocupação do reformismo decorre da sua incapacidade para
sustentar a
validade intemporal
da ordem política e sócio-económica estabelecida.
É, na realidade, totalmente inconcebível sustentar a validade
intemporal e a permanência de qualquer coisa
criada historicamente.
É isto que torna inevitável, em todas as variedades
sócio-políticas do reformismo, tentar e desviar a
atenção das determinações
sistémicas
que no final de contas definem o carácter de todos os assuntos
vitais para disputas mais ou menos aleatórias sobre
efeitos
específicos enquanto deixam a sua incorrigível
base causal
não só incontestavelmente permanente como também omissa.
Tudo isto permanece escondido pela própria natureza do discurso
reformista. E precisamente devido ao carácter mistificador de tal
discurso cujos elementos fundamentais muitas vezes permanecem escondidos
até para os seus ideólogos, não tem qualquer
importância para os fiéis deste credo que num determinado momento
da história como com a chegada do "New Labour" e do seu
irmão na Grã-Bretanha e partidos irmãos na Alemanha,
França, Itália e em qualquer outro lado a própria
ideia de uma qualquer reforma social significativa seja completamente
abandonada, e contudo as reivindicações de um
"avanço" aparente (que não levam a parte alguma
realmente diferente) são dissimuladamente reafirmadas. Assim mesmo as
antigas diferenças entre os principais partidos são
convenientemente obliteradas no agora dominante estilo americano do sistema de
"dois partidos" (um partido), não importa quantos
"sub-partidos" possam ainda encontrar-se em determinados
países. O que permanece constante é a defesa mais ou menos
oculta das actuais
determinações sistémicas
da ordem existente. O axioma pernicioso a asseverar que "
não há alternativa
" falando não apenas sobre determinadas
instituições políticas mas sobre a ordem social
estabelecida em geral é tão aceitável para a
anterior primeira-ministra do Partido Conservador Britânico, Margaret
Thatcher (que o patrocinou e popularizou), como para o chamado "New
Labour" do actual primeiro-ministro Tony Blair, assim como para muitos
outros no espectro político parlamentar mundial.
Tendo em vista o facto de que o processo de reestruturação
radical deve ser orientado pela estratégia de uma positiva reforma
abrangente de todo o sistema no qual se encontram as pessoas, o desafio que tem
de ser enfrentado não tem paralelos na história. Pois o
cumprimento desta nova tarefa histórica envolve simultaneamente a
mudança qualitativa das condições objectivas de
reprodução societária, no sentido de reconquistar o
controle total do próprio capital e não simplesmente das
personificações do capital que afirmam os imperativos do sistema
como capitalistas devotados e a
transformação progressiva da consciência
em resposta às condições necessariamente cambiantes.
Portanto o papel da educação é supremo tanto para a
elaboração de estratégias apropriadas, adequadas a mudar
as condições objectivas de reprodução, como para a
auto-mudança consciente
dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma
ordem social metabólica radicalmente diferente. É isto que se
quer dizer com a visão de uma "sociedade de produtores livremente
associados". Portanto, não é surpreendente que na
concepção marxista a
"transcendência positiva da auto-alienação do
trabalho"
seja caracterizada como uma tarefa inequivocamente educacional.
A este respeito dois conceitos chave devem ser mantidos sob a nossa
atenção: a
universalização da educação
e a
universalização do trabalho como uma actividade humana
auto-satisfatória.
De facto nem uma das duas é viável sem a outra. Nem é
possível pensar na sua estreita inter-relação como um
problema para um futuro muito distante. Ele levanta-se "aqui e
agora", e é relevante para todos os níveis e graus de
desenvolvimento sócio-económico. Podemos encontrar um exemplo
proeminente disto num discurso de Fidel Castro em 1983, relativo aos problemas
que Cuba tinha de enfrentar através da aceitação do
imperativo da
universalização da educação,
apesar das dificuldades aparentemente proibitivas não só em
termos económicos mas também em conseguir os professores
necessários. Foi assim que ele resumiu o problema:
"A la vez habíamos llegado ya a una situación en que el
estudio se
universalizaba.
Y para universalizar el estudio en un país subdesarrollado y no
petrolero digamos , desde el punto de vista económico era
necesario
universalizar el trabajo.
Pero aunque fuésemos petroleros, habría sido altamente
conveniente universalizar el trabajo,
altamente formativo
en todos los sentidos, y
altamente revolucionario.
Que por algo estas ideas fueron planteadas hace mucho tiempo por Marx y por
Martí."
[32]
As extraordinárias realizações educacionais em Cuba, desde
a eliminação rápida e total do analfabetismo até
aos mais elevados níveis de pesquisa científica criadora
[33]
num país que tinha de lutar não só contra os
constrangimentos económicos maciços do subdesenvolvimento como
também contra o sério impacto de 45 anos de bloqueio hostil
são compreensíveis apenas em face deste enquadramento.
Esta realização também demonstrou que não pode
existir justificação para esperar a chegada de um
"período favorável", no futuro indefinido.
Avançar na estrada de uma abordagem qualitativamente diferente à
educação e à aprendizagem pode e deve começar
"aqui e agora", como indicado acima, se quisermos alcançar as
mudanças necessárias no momento oportuno.
Não pode existir uma solução positiva para a
auto-alienação do trabalho sem promover conscientemente a
universalização conjunta do trabalho e da educação.
Contudo, no passado poderia não existir uma possibilidade real para
isto devido à subordinação estrutural hierárquica e
à dominação do trabalho. Nem mesmo quando alguns grandes
pensadores tentaram conceptualizar estes problemas com um espírito mais
progressista. Assim, Paracelso, um modelo para o
Fausto
de Goethe, tentou universalizar o trabalho e a aprendizagem deste modo:
"embora o homem tenha sido criado inteiro relativamente ao seu corpo, ele
não foi assim criado relativamente à sua 'arte'. Todas as artes
lhe foram dadas, mas não numa forma imediatamente reconhecível;
ele deve descobri-las através da aprendizagem.
A maneira adequada
reside no trabalho e na acção, em fazer e produzir; o homem
perverso nada faz, mas fala muito. Não devemos julgar um homem pelas
suas palavras mas antes pelo seu coração. O
coração fala através de palavras apenas quando elas
são confirmadas por acções.
Ninguém vê
o que está nele escondido, mas só o que o seu trabalho revela.
Portanto o homem deveria trabalhar continuamente para descobrir o que Deus lhe
deu".
[34]
De facto, Paracelso afirmava que o trabalho
(Arbeit)
devia ser o princípio geral ordenador da sociedade. Ele foi mesmo ao
ponto de defender a expropriação da fortuna dos bens dos ricos
ociosos, de forma a compeli-los a terem uma vida produtiva.
[35]
Como podemos ver, a ideia de universalizar o trabalho e a
educação, na sua indissociabilidade, remonta há muito na
história. É portanto muito significativo que esta ideia tenha
permanecido apenas como uma ideia bastante frustrada, dado que a sua
realização pressupõe necessariamente a
igualdade substantiva
de todos os seres humanos. O facto grave de que o desumanizante
tempo de trabalho
dos indivíduos seja também a maior parte do seu
tempo de vida,
teve de ser rigidamente ignorado. As funções
controladoras
da reprodução metabólica social tiveram de ser separadas
e opostas à esmagadora maioria da humanidade, destinada à
execução de tarefas subordinadas num determinado sistema
político e sócio-económico. No mesmo espírito,
não só o controlo do trabalho estruturalmente subordinado como
também a dimensão do controle da educação tinha de
ser mantido num compartimento separado, sob o domínio das
personificações do capital na nossa época. É
impossível mudar a relação de dominação
estrutural e subordinação sem a percepção da
verdade
substantiva
e não apenas
igualdade formal
(que é sempre profundamente afectada, se não completamente
anulada pela dimensão substantiva realmente existente). É por
isto que apenas dentro da perspectiva de ir
para além do capital
o desafio de universalizar o trabalho e a educação, na sua
indissolubilidade, pode surgir na agenda histórica.
Na concepção de educação há muito dominante
os governantes políticos e os governados, assim como os privilegiados
educacionalmente (quer se trate dos indivíduos empregados como
educadores ou como administradores no controlo das instituições
educacionais) e aqueles que têm de ser educados, aparecem em
compartimentos separados, quase estanques. Um bom exemplo desta visão
é expresso no artigo sobre "Educação" publicado
na reputada e culta última edição da
Encyclopaedia Britannica.
E diz o seguinte:
"A acção do Estado moderno não pode parar um pouco
antes da educação elementar. O princípio da
"carreira aberta ao talento" não é mais um assunto de
teoria humanitária abstracta, uma aspiração
fantástica de sonhadores revolucionários; para as grandes
comunidades industriais do mundo moderno é uma necessidade
prática convincente imposta pela concorrência internacional feroz
que prevalece nas artes e nas indústrias da vida. A nação
que não queira falhar na luta pelo êxito comercial, com tudo o que
isso implica para a vida nacional e para a civilização, deve
considerar que as suas indústrias sejam alimentadas com uma oferta
constante de trabalhadores adequadamente equipados tanto em termos de
inteligência geral como de treino técnico. Também no
terreno político, a crescente democratização das
instituições torna uma vasta difusão de conhecimentos e o
florescimento de um alto padrão de inteligência entre o povo um
cuidado evidente do estadista prudente,
especialmente para os grandes Estados imperiais, os quais confiam as mais
momentosas questões do mundo político ao arbítrio da voz
popular
".
[36]
Mesmo nos seus próprios termos de referência este artigo
académico sem dúvida impressionante na sua
avaliação histórica é bastante defeituoso,
devido a razões ideológicas claramente identificáveis.
Pois exagera grandemente os efeitos benéficos da
"concorrência internacional feroz" de capitais nacionais sobre
a educação do povo trabalhador. O livro profundo de Harry
Braverman intitulado
"The Degradation of Work in the Twentieth Century"
[37]
faz uma avaliação incomparavelmente melhor das forças
alienantes e brutalizantes em acção na moderna empresa
capitalista. Elas lançam uma luz negativa penetrante sobre a
deturpação da "luta pelo êxito comercial" acerca
da qual o autor deste artigo postula um impacto "civilizador" quando
na realidade muitas vezes o resultado necessário é diametralmente
oposto. E mesmo relativamente a empresas industriais específicas, a
chamada "gestão científica" de Frederic Winslow Taylor
revela o segredo de quão elevados devem ser os requisitos
educacionais/intelectuais das firmas capitalistas para dirigirem uma
operação competitivamente bem sucedida. Como F. W. Taylor, o
fundador deste sistema de controlo de gestão, escreve com um
indisfarçado cinismo:
"Um dos primeiros requisitos para um homem ser apto a lidar com ferro-gusa
como ocupação regular é que ele deve ser tão
estúpido
e tão fleumático que mais
se assemelhe no seu quadro mental a um boi
do que a qualquer outro tipo.
O operário que melhor se adequa a
lidar com ferro-gusa é incapaz de compreender a verdadeira ciência
de realizar esta classe de trabalho.
Ele é tão estúpido que a palavra 'percentagem' não
tem qualquer significado para ele.
"
[38]
De facto muito científico! Quanto à proposição
segundo a qual "uma ampla difusão de conhecimento e o cultivo de um
alto padrão de inteligência" é o objectivo felizmente
adoptado pelo moderno estado capitalista "
especialmente para os grandes estados imperiais que confiam os assuntos mais
importantes da política mundial à decisão da voz popular
" é ridículo demais e obviamente muito
apologético no carácter para ser considerado, sequer por um
momento, como argumento sério a favor das causas invocadas de melhoria
da educação inspiradas democraticamente e politicamente
iluminadas sob as condições de domínio do capital sobre a
sociedade.
EDUCAÇÃO
para além do capital
contempla uma ordem social qualitativamente diferente. Agora não
só é possível embarcar na estrada que nos leva até
essa ordem como também é necessário e urgente. Pois as
incorrigíveis determinações destrutivas da ordem existente
tornam imperativo contrapor aos antagonismos estruturais
irreconciliáveis do sistema capitalista uma
alternativa positiva
sustentável para a regulação da reprodução
metabólica social se quisermos assegurar as condições
elementares da sobrevivência humana. O papel da educação,
orientado pela única perspectiva positivamente viável de ir para
além do capital, é absolutamente crucial a este propósito.
A
sustentabilidade
equivale ao
controlo consciente
pelos produtores associados livremente do processo de reprodução
metabólico social, em contraste com a indefensável,
estruturalmente estabelecida
rivalidade
e destrutibilidade última da ordem reprodutiva do capital. É
inconcebível ocasionar este controlo consciente dos processos sociais
uma forma de controlo que por acaso também é a
única forma possível de
auto-controlo:
o requisito necessário para serem
produtores associados livremente
sem activar totalmente os recursos da educação no sentido
mais amplo do termo.
O grave e inultrapassável defeito do sistema capitalista consiste na
alienação de mediações de segunda ordem que
têm de ser impostas a todos os serem humanos, incluindo as
personificações do capital. De facto, o sistema capitalista
não conseguiria sobreviver durante uma semana sem as suas
mediações de segunda ordem: principalmente o Estado, a
relação de troca orientada para o mercado, e o trabalho na sua
subordinação estrutural ao capital. Elas são
necessariamente interpostos entre indivíduos e indivíduos, assim
como entre indivíduos particulares e as suas aspirações,
virando os últimos de "cabeça para baixo" e
"às avessas", de forma a conseguir subordiná-los a
imperativos fetichistas do sistema capitalista. Por outras palavras, estas
mediações de segunda ordem impõem uma
forma alienada de mediação
à humanidade. A
alternativa positiva
a esta forma de controlar a reprodução metabólica social
apenas pode ser a
auto-mediação,
na sua inseparabilidade do
auto-controlo
e da
auto-realização através da liberdade e igualdade
substantiva,
numa ordem social reprodutiva conscientemente regulada pelos
indivíduos associados. É também inseparável dos
valores
escolhidos pelos próprios indivíduos, de acordo com as suas
necessidades genuínas, em vez de lhes serem impostos sob a forma
de
apetites
perfeitamente
artificiais
pelos imperativos reificados da acumulação lucrativa do capital,
como é o caso hoje. Nenhum destes objectivos emancipadores é
concebível sem a intervenção mais activa da
educação entendida na sua orientação positiva no
sentido de uma ordem social para além do capital.
Vivemos numa ordem social na qual mesmo os requisitos mínimos da
realização humana são insensivelmente negados à
esmagadora maioria da humanidade, enquanto a produção de
desperdício assumiu proporções proibitivas, de acordo com
a mudança da reclamada "
destruição produtiva
" do capitalismo no passado para a realidade mais dominante hoje da
produção destrutiva.
As desigualdades sociais gritantes em evidência actualmente, e ainda
mais pronunciadas no seu desvelado desenvolvimento, são bem ilustradas
pelos seguintes números:
"Segundo as Nações Unidas, no seu
Relatório sobre o Desenvolvimento Humano,
o 1% mais rico do mundo recebe tanto de rendimento quanto os 57% mais pobres.
O intervalo de rendimentos entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres no
mundo aumentou dos 30 para 1 em 1960, para 60 para 1 em 1990 e para 74 para 1
em 1999, e estima-se que atinja os 100 para 1 em 2015. Em 1999-2000, 2,8
biliões de pessoas viviam com menos de 2 dólares por dia, 840
milhões estavam subnutridos, 2,4 biliões não tinham acesso
a qualquer forma melhorada de serviços de saneamento, e uma em cada seis
crianças no mundo em idade de frequentar a escola primária
não estavam na escola. Estima-se que cerca de 50% da força de
trabalho não agrícola ou está desempregada ou
sub-empregada.
[39]
O que está aqui em jogo não é simplesmente o
défice de contingente
dos recursos económicos disponíveis, a serem ultrapassados mais
cedo ou mais tarde, como prometido graciosamente, mas o
défice estrutural necessário
de um sistema que opera através dos seus
círculos viciosos de desperdício e de escassez.
É impossível sair deste círculo vicioso sem a
intervenção positiva da educação, capaz
simultaneamente de
estabelecer prioridades
e de definir as
genuínas necessidades
com as totais e livres deliberações dos indivíduos em
causa. De outro modo, a escassez pode ser e será reproduzida numa
escala sempre crescente, em conjunção com a geração
de necessidades artificiais absolutamente devastadora, como tem sido feito
actualmente, ao serviço loucamente orientada auto-expansão do
capital e da acumulação contra-producente.
Uma concepção rival positivamente articulada de
educação
para além do capital
não pode ser confinada a um número limitado de anos na vida dos
indivíduos mas, devido às suas funções radicalmente
mudadas, abarca-os a todos. A "auto-educação de
iguais" e a "auto-gestão da ordem social reprodutiva"
não podem ser separadas uma da outra. A auto-gestão pelos
produtores livremente associados das funções vitais do
processo metabólico social é um empreendimento
progressivo
e inevitavelmente
em mudança.
O mesmo vale para as práticas educacionais que habilitam o
indivíduo
a realizar essas funções como constantemente redefinidas por eles
próprios, de acordo com os requisitos em mudança dos quais eles
são agentes activos. A educação, neste sentido, é
verdadeiramente "
educação contínua
". Nem pode ser "vocacional" (o que significa nas nossas
sociedades o confinamento das pessoas envolvidas a funções
utilitaristas estreitamente pré-determinadas, privadas de qualquer poder
decisório), nem "geral" (que deve ensinar aos
indivíduos, de forma paternalista, as "artes do pensamento").
Estas noções são as presunções arrogantes de
uma concepção baseada numa totalmente insustentável
separação das dimensões prática e
estratégica. Portanto a "educação
contínua", como um constituinte necessário dos
princípios reguladores de uma sociedade para além do capital,
é inseparável da prática significativa da
auto-gestão.
É uma parte integral desta última quer como
representação no início da
fase de formação
na vida dos indivíduos, e, por outro lado, no sentido de permitir um
feedback positivo
dos indivíduos educacionalmente enriquecidos, com as suas necessidades
mudando apropriadamente e redefinidas equitativamente, para a
determinação global dos princípios orientadores e
objectivos da sociedade.
A nossa graduação histórica é definida pela
crise estrutural
do
sistema capitalista global.
Está na moda falar, com total auto-complacência, sobre o grande
êxito da globalização capitalista. Um livro recentemente
publicado e propagandeado devotamente tem o título:
Why Globalization Works.
[40]
Contudo o autor, que é o
Chief Economics Commentator
do
Finantial Times
de Londres, esquece-se de fazer a pergunta realmente importante:
Para quem é que funciona?,
se é que funciona. Certamente funciona, por enquanto, e de modo algum
assim tão bem, para os decisores do capital transnacional, mas
não para a esmagadora maioria da humanidade que tem de sofrer as
consequências. E nenhuma quantidade de
"integração jurisdicional"
advogada pelo autor isto é, em inglês simples, o controle
directo mais apertado dos deplorados "demasiados estados" por uma
mão cheia de poderes imperialistas, especialmente o maior deles
vai conseguir remediar a situação. Na realidade a
globalização capitalista não funciona nem pode funcionar.
Pois não pode ultrapassar as contradições
irreconciliáveis e os antagonismos manifestos através da crise
estrutural global do sistema. A própria globalização
capitalista é a manifestação contraditória dessa
crise, tentando vencer a relação
causa/efeito
numa tentativa vã de curar alguns efeitos negativos através de
outros
efeitos desejadamente projectados,
porque é estruturalmente incapaz de se dirigir às suas
causas.
A nossa época de
crise estrutural global
do capital é também a época histórica de
transição
da ordem social existente para uma qualitativamente diferente. Estas
são as duas características fundamentais definidoras do
espaço histórico e social no seio do qual os grandes desafios
para quebrar a lógica do capital, e ao mesmo tempo também a
elaboração de planos estratégicos para a
educação para além do capital, devem ser conhecidos.
Portanto a nossa tarefa educacional é simultaneamente a tarefa de uma
transformação social ampla emancipadora. Nenhuma das duas pode
ser posta à frente da outra. Elas são inseparáveis. A
transformação social emancipadora radical requerida é
inconcebível sem a contribuição positiva mais activa da
educação no seu sentido amplo, como foi descrito nesta palestra.
E vice-versa: a educação não pode funcionar suspensa no
ar. Ela pode e deve ser articulada adequadamente e redefinida constantemente
no seu interrelacionamento dialéctico com as condições em
mudança e as necessidades da transformação social
emancipadora progressiva. As duas têm êxito ou falham,
sustêm-se ou caem juntas. Cabe-nos a
todos
todos, porque sabemos bem demais que "os educadores também
têm que ser educados" a sua manutenção e
não a sua queda. Os riscos são demasiadamente elevados para se
contemplar a hipótese de fracasso.
Neste empreendimento as tarefas
imediatas
e os seus
enquadramentos estratégicos
globais não podem ser separados, e opostos, uns aos outros. O
êxito estratégico é impensável sem a
realização das tarefas imediatas. De facto, o próprio
enquadramento estratégico é a síntese global de
inúmeras, sempre renovadas e expandidas, tarefas imediatas e desafios.
Mas a solução dos últimos é possível apenas
se a abordagem ao imediato for informada pela sintetização do
enquadramento estratégico. Os passos mediadores em
direcção ao futuro no sentido da única forma
viável de
auto-mediação
apenas podem iniciar-se do
imediato,
mas iluminados pelo espaço que pode legitimamente ocupar na
estratégia global orientada pelo futuro contemplado.
NOTAS:
[1] Paracelso,
Selected Writings,
Routledge & Kegan Paul, Londres, 1951, p. 181;
[2] José Martí, "Libros", in
Obras Completas,
vol. 18, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1991, pp. 290-91;
[3] Marx,
Theses on Feuerbach,
in
Marx/Engels Collected Works,
vol. 5, p. 7;
[4] Para uma discussão detalhada sobre a estratégia reformista de
Bernstein ver o Capítulo intitulado "O aliado cego e representativo
de Bernstein" no meu livro:
The Power of Ideology,
Harvester/Whetsheaf, Londres, 1989; no Brasil:
O Poder da Ideologia,
Edição ampliada, Boitempo Editorial, São Paulo, 2004;
[5] Adam Smith,
Lectures on Justice, Police, Revenue, and Arms
(1763). In
A. Smith's Moral and Political Philosophy,
ed. por Herbert W. Schneider, Haffner Publishing Co., Nova Iorque, pp. 318-21;
[6] Ibid., pp. 319-20;
[7] Robert Owen, A
New View of Society and Other Writings,
Edição Everyman, p. 124;
[8] Ibid., pp. 88-89;
[9] Ibid., p. 124;
[10] Ver nota 3;
[11]
Fidel Castro,
José Martí: El autor intelectual,
Editora política, Havana, 1983, p. 162. Ver também p. 150 do
mesmo volume;
[12] Marx,
O Capital,
Vol. 1, pp. 713-14 e 734-36;
[13] Locke, "Memorandum on the Reform of the Poor Law", em R. H. Fox
Bourne,
A Vida de John Locke,
King, Londres, 1876, Vol. 2, p. 378;
[14] Ibid., p. 383;
[15] Neal Word,
The Politics of Locke's Philosophy,
University of California Press, Berkeley, 1983, p. 26;
[16] Locke, "Memorandum on the Reform of the Poor Law", Obra citada,
p. 380;
[17] Ibid.;
[18] Ibid., p. 383;
[19] Ibid., pp. 384-85;
[20] "Público" neste contexto significa
privado
na Grã-Bretanha, referindo-se às escolas
pagas com propinas exorbitantes;
[21]
Antonio Gramsci, "The formation of intellectuals", em
The Modern Prince and Other Writings,
Lawrence e Wishart, Londres, 1957, p. 121;
[22] A dificuldade é que o 'momento' de políticas radicais
é rigidamente limitado pela natureza da crise em questão e pelas
determinações temporais das duas revelações. A
brecha aberta em tempos de crise não pode ficar aberta para sempre e as
medidas adoptadas para a preencher, desde os primeiros passos em diante,
têm a sua lógica própria e impacto cumulativo nas
intervenções subsequentes. Além disso, tanto as estruturas
socio-económicas existentes como os seus correspondentes enquadramentos
nas instituições políticas tendem a agir contra
iniciativas radicais através da sua inércia assim que o pior
momento de crise está terminado e se torna, portanto, possível
contemplar uma vez mais "a linha de menor resistência".
Paradoxal como possa parecer, apenas uma auto-determinação
radical de políticos pode prolongar o momento de politicas radicais. Se
esse 'momento' não se dissipar sob o peso das pressões
económicas imediatas, deve encontrar-se uma maneira de se prolongar a
sua influência muito para além do próprio pico de crise (o
pico, isto é, quando as políticas radicais tendem a afirmar a sua
efectividade como regra). E uma vez que a duração temporal da
crise como tal não pode ser prolongada consoante a vontade nem
deveria sê-lo, posto que as políticas voluntaristas, com os seus
"estados de emergência" manipulados artificialmente, podem
apenas tentá-lo por seu risco próprio, alienando assim as massas
de pessoas em vez de assegurar o seu sustento a solução
apenas pode surgir da viragem bem sucedida do 'tempo fugaz' para o
espaço duradouro
através da reestruturação de poderes e
instituições de decisão". I. Mészáros,
Beyond Capital,
pp. 950-51.
[23] Attila József,
Al borde de la ciudad
(A város peremén), traduzido por Fayad Jamás.
[24] Renato Constantino,
Neo-Colonial Identity and Counter-Counsciousness: Essays on Cultural
Decolonization,
The Merlin Press, Londres, 1978, 307 páginas. Nos Estados Unidos
publicado por M. E. Sharpe Inc., White Plains, Nova Iorque, 1978.
[25] Ibid., pp. 20-21.
[26] Ibid., pág. 23.
[27] Citado em Jorge Lezcano Pérez, I
ntroduction to José Martí: 150 Aniversario,
Casa Editora da Embaixada de Cuba no Brasil, Brasília, 2003,
pág. 8.
[28] Pretendido por Martí como um projecto progressivo, não foi
sua culpa que apenas quatro números pudessem ser publicados, por falta
de apoio financeiro. Os quatro números estão agora reproduzidos
no Volume 18 das
Obras Completas
de José Martí, pp. 299-503. Não se pode hoje ler a
preocupação expressa nessas páginas sem se ficar
profundamente comovido.
[29] Marx,
The Poverty of Philosophy,
Lawrence e Wishart, Londres (sem data), p. 123;
[30] "Estamos condenados ao vale das lágrimas" numa
versão, e "estamos condenados à angústia da
liberdade" noutra.
[31]
A polémica de Bernstein contra Marx é absolutamente
caricatural. Em vez de se envolver com ele numa discussão
teórica apropriada, prefere seguir o caminho de atirar contra ele um
insulto gratuito condenando, sem qualquer fundamento, a
"armação dialéctica" de Marx e de Hegel.
Como se a transformação dos pesados problemas do
raciocínio dialéctico num insulto desqualificante pudesse por ele
próprio resolver os importantes assuntos políticos e sociais em
disputa. O leitor interessado pode encontrar uma discussão razoavelmente
detalhada desta controvérsia no Capítulo 8 de
The Power of Ideology
mencionado acima na Nota nº. 5. O termo "grandes narratives" na
pós-modernidade é usado analogamente ao insulto desqualificador
de Bernstein contra a condenada "armação
dialéctica".
[32] Fidel Castro,
José Martí: El autor intelectual,
Editora Política, Havana, 1983, p. 224.
[33] Até o governo hostil dos Estados Unidos teve que reconhecer de
forma desequilibrada este feito: através da concessão a uma
empresa farmacêutica americana na Califórnia do direito de
concluir um acordo comercial multi-milionário com Cuba, em Julho de
2004, para a distribuição de uma droga anti-cancerígena
salvadora de vidas, suspendendo assim a este respeito uma das suas regras de
bloqueio selvagem. Obviamente, mesmo assim o governo dos Estados Unidos manteve
a sua hostilidade ao negar o direito de transferir os fundos envolvidos em
"divisas duras", obrigando em vez disso a sua própria empresa a
negociar algum tipo de acordo de "troca"
("barter"),
fornecendo produtos agrícolas ou industriais americanos em troca da
pioneira medicina cubana.
[34] Paracelso,
Selected Writings,
Routledge & Kegan Paul, Londres, 1951, pp. 176-77, 189, 183.
[35] Ver Paracelso,
Leben und Lebensweisheit in Selbstzeugnissen,
Reclam Verlag, Leipzig, 1956, p. 134;
[36] Ver o artigo sobre "Educação" na 13ª
Edição (1926) da
Encyclopaedia Britannica.
[37] Ver Harry Braverman,
Labour and Monopoly Capital: The Degradationm of Work in the Twentieth Century,
Montlhy Review Press, Nova Iorque, 1974. Um documentário televisivo
sobre a linha de montagem de automóveis em Detroit onde um grupo de
trabalhadores entrevistava outro grupo, perguntando quanto tempo eles demoravam
a aprender os seus conhecimentos. Eles olhavam uns para os outros e
começavam a rir, respondendo com um desprezo indisfarçado:
"oito minutos; é só!". Ed. brasileira:
"Trabalho e capital monopolista: A degradação do trabalho
no século XX", Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, 379 pgs.
[38] F. W. Taylor,
Scientific Management,
Harper e Row, Nova Iorque, 1947, p.29.
Ver Capítulos 2 e 3 de
The Power of Ideology,
especialmente as Secções 2.1: "Postwar Expansion and
'Post-Ideology'", e 3.1: "Managerial Ideology and the State".
[39] Minqi Li, "After Neoliberalism: Empire, Social Democracy, or
Socialism?",
Monthly Review,
Janeiro de 2004, p. 21.
[40] Ver Martin Wolf,
Why Globalization Works,
Yale University Press, 2004.
[*]
Intervenção na abertura no Fórum Mundial de Educação,
Porto Alegre, Brasil, 28/Jul/2004. Tradução de T. Brito.
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
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