A razão à prova das grandes crises históricas
Como explicar a grande crise histórica que principia com a
Revolução Francesa e que, um quarto de século mais tarde,
é concluída (provisoriamente) com o retorno dos Bourbons?
Friedrich Schlegel e a cultura a Restauração não cessaram
de denunciar a "doença política" e o "flagelo
contagioso dos povos" que estrondeiam a partir de 1789; mas é o
próprio Metternich que alerta contra a "peste" ou o
"cancro" que devasta os espíritos
[1]
. Para sermos mais exactos indo mais longe do que este outro
ideólogo da Restauração que é Baader estamos
na presença de uma "loucura de possessão
satânica"; ao derrube do Antigo Regime sucedeu não a
democracia mais sim a "demonocracia"
[2]
, ou seja, o poder de Satã.
Mais tarde, após a vaga da revolução de 1848 e sobretudo
da revolta operária, Tocqueville vai desenvolver a abordagem
psicopatologisante: o que vai explicar a "doença da
Revolução Francesa" é a propagação de
um "vírus de uma espécie nova e desconhecida"
[3]
. Nos seus
Souvenirs,
referindo-se ao momento em que começa a subir a agitação
que desembocará nas jornadas de Junho, o liberal francês faz dizer
a "um médico de mérito que dirigia então um dos
principais hospitais de loucos de Paris": "Que infelicidade e como
é estranho pensar que são loucos, verdadeiros loucos, que
provocaram isto! A todos operei ou tratei. Blanqui é um louco,
Barbès é um louco, Sobrier é um louco, Huber sobretudo
é um louco, todos loucos, senhor, que deveriam estar no meu [hospital
de] Salpêtrière e não aqui". Tocqueville acrescenta a
seguir: "Sempre pensei que nas revoluções e sobretudo nas
revoluções democráticas, os loucos, não aqueles aos
quais se dá este nome por cortesia, mas os verdadeiros, desempenharam um
papel político muito considerável"
[4]
.
A referência a forças de alguma forma infernais não
faltará daí em diante: nas jornadas de Junho, Tocqueville ouve
soar "uma música diabólica" nos bairros que se
preparavam para resistir e que convocam os habitantes à luta tocando a
"generala". Os habitantes ouvem e preparam-se com um "ar
sinistro", perdendo seus traços humanos. Eis a agitar-se de modo
insensato uma "velha" que parece uma feiticeira: "A
expressão odiosa e terrível do seu rosto fez-me horror, tanto o
furor das paixões demagógicas e a raiva das guerras civis estavam
nele bem representados".
Na véspera da Comuna de Paris, a abordagem psicopatológica
celebra o seu triunfo com Taine:
"Se há para os corpos doenças epidémicas e
contagiosas, há também para os espíritos e esta é
então a doença revolucionária. Ela se encontra em
simultâneo sobre todos os pontos do território e cada ponto
infectado contribui para a infecção dos outros [...] Em todas as
partes as mesma febre, o mesmo delírio e as mesmas convulsões
indicando a presença do mesmo vírus, e este vírus é
o dogma jacobina".
[5]
Não só a Comuna como todo o ciclo revolucionário
francês é posto na conta do "vírus" e da
"alteração do equilíbrio normal das faculdades"
[6]
. Lancemos um olhar a tal ou tal actor da revolução: "O
médico reconheceria de imediato um destes loucos lúcidos que
não encerra, mas que são os mais perigosos" (VII, 205). Com
efeito, Marat comporta-se como "seus companheiros [do hospital] de
Bicêtre" (VII, 208). Como se pode ver, passámos do
Sapetrière de Tocqueville para o Bicêtre, mas a
explicação das crises revolucionárias continua a ser
procurada nos hospícios. Aos olhos de Taine também a loucura
revolucionária tem algo de diabólico. Se Voltaire é um
"demónio encarnado", Saint-Just e o protagonista de uma
espécie de rito satânico: "Esmagar e subjugar torna-se uma
voluptuosidade intensa, saboreada pelo orgulho íntimo, um fumo de
holocausto que o déspota queima no seu próprio altar; neste
sacrifício quotidiano, ele é em simultâneo o ídolo e
o padre, e oferece-se vítimas para ter consciência da sua
divindade"
[7]
.
O ciclo que principia na Rússia em 1905 é comparável ao
ciclo revolucionário francês. A cultura dominante vai então
reactualizar o "diagnóstico" já efectuado. O
"vírus de uma espécie nova e desconhecida" migra da
França para a Rússia: é assim, num retorno
explícito a Tocqueville, que argumentam François Furet e o
sovietólogo estadunidense Richard Pires
[8]
.
A leitura em termos psicopatológicos das grandes crises
históricas está de tal modo difundida actualmente que até
se pode observá-las nas categorias centrais do discurso político.
Em 1964, Adorno vê no "totalitarismo psicológico" o
fundamento do totalitarismo propriamente dito: há indivíduos que
"não têm à sua disposição senão
um eu fraco e em consequência têm necessidade, como substitut, da
identificação com um grande colectivo e da sua cobertura".
Não só desvanece-se assim a situação objectiva, a
geopolítica e a história, mas os próprios ideólogos
não desempenham qualquer papel: "Os caracteres submetidos à
autoridade são avaliados de modo totalmente erróneo ainda que
sejam construídos a partir de uma ideologia
político-económica determinada"
[9]
.
A deriva psicologista acaba por emergir também em Arendt. Com efeito,
é recorrente nas
Origens do totalitarismo
a denúncia do "desprezo totalitário pela realidade e pelos
próprios factos", pela "loucura" que a "sociedade
totalitária" demonstra. Esta não é a busca com
métodos brutais e sem nenhum escrúpulo moral de objectivos em
todo caso logicamente compreensíveis. Não, no totalitarismo
tratamos dos "paranóicos" (10): "A agressividade do
totalitarismo não nasce do apetite de poder e o seu expansionismo
ardente não visa a expansão para si mesmo, não mais do que
o lucro; suas razões são unicamente ideológicas: trata-se
de tornar o mundo mais coerente, de provar o bom fundamento do seu mau
entendimento" (p. 810). Por outras palavras, o totalitarismo é a
loucura que quer a loucura.
Eis-nos chegados de alguma forma à cultura da Restauração,
como se verifica a partir de um pormenor ulterior. Quanto aos "regimes
totalitários" (não só o regime hitleriano como
também o staliniano), Arendt faz intervir a categoria de "mal
absoluto", que já não podem mais explicar "as vis
motivações do interesse pessoal, da culpabilidade, da
cobiça, do ressentimento, do apetite de potência e da
covardia" (p. 811) e que portanto não pode ser explicado
racionalmente. O Satã de que fala a cultura da Restauração
é aqui tornado o
mysterium iniquitatis.
Mas porque a abordagem psicologisante deve ser considerada como errónea
e mistificadora? Vejamos o que se passa nos Estados Unidos, nas vésperas
da Guerra de Secessão, ou seja, deste trágico conflito que acaba
por desembocar numa revolução abolicionista. Nos campeões
do Sul escravocrata, comparam-se os abolicionistas aos jacobinos, eles
próprios afectados pela loucura. Mas ocorre aqui uma novidade. Faz-se
também um diagnóstico psicopatológico para os escravos. O
número dos escravos fugitivos aumenta e os ideólogos da
escravatura espantam-se: como é possível que pessoas
"normais" se subtraiam a uma sociedade tão bem ordenada?
Eis-nos claramente na presença de um espírito perturbado. Mas de
que se trata? Em 1851, Samuel Cartwright, eminente cirurgião e
psicólogo da Luisiânia, partindo do facto de que em grego
clássico
drapetes
é o escravo fugitivo, conclui triunfalmente que a
perturbação psíquica que leva os escravos negros à
fuga é precisamente a
drapetomania
[11]
. Outros ideólogos constatam que os escravos não obedecem mais
às ordens dos mestres com a mesma celeridade anterior. O
diagnóstico psicopatologisante intervém de novo: a doença
em questão é agora a
"disestesia",
ou seja, a incapacidade dos escravos para compreender e reagir com celeridade
às ordens do mestre
[12]
.
No século XIX vemos desenvolver-se uma outra revolução, a
revolução feminista. E novamente caímos na denúncia
da loucura e da degenerescência que estaria na base desta novidade
incrível. É um grande filósofo, Friedrich Nietzche, que
fala das protagonistas desta revolução como mulheres falhadas que
desconhecem a sua natureza de mulheres e são mesmo incapazes de
engendrar: "Emancipação da mulher eis o que é
o ódio instintivo da mulher falhada, ou seja, incapaz de procriar,
contra a mulher de bom comportamento". A polémica contra o
movimento feminista é tão rude que leva o filósofo a
declarações de um filistinismo desarmante. As
"emancipadas" seriam "mulheres fracassadas" ou então
"aquelas que não o estofo para terem filhos"
[13]
. Pode-se tirar uma conclusão: historicamente, não se encontra
desafio à opressão que não tenha sido taxado de loucura,
de deformação da saúde e da normalidade.
De resto, o diagnóstico psicopatologisante caracteriza-se pelo seu lado
arbitrário. Pode-se constatá-lo até nos grandes autores.
Em 1950, ao publicar seus estudos sobre a "personalidade
autoritária", Adorno sublinha a "correlação
entre anti-semitismo e anti-comunismo" e acrescenta a seguir:
"Durante os últimos anos todo o mecanismo de propaganda na
América foi consagrado a desenvolver o anti-comunismo no sentido de um
"terror" irracional"
[14]
. Naquele momento, aqueles que foram afectados por perturbações
psíquicas eram os anti-comunistas; em 1964, em contrapartida, Adorno
inserirá exactamente os comunistas, com os fascistas, entre as
personalidades intrinsecamente autoritárias e inclinadas ao
totalitarismo!
O diagnóstico psicopatologisante toma habitualmente como alvo os
campeões da revolução, nunca os da guerra
Também vale a pena notar que o diagnóstico psicopatológico
toma habitualmente como alvo os campeões da revolução,
nunca os da guerra. Os loucos são Robespierre e os jacobinos, mas
não os girondinos feitores da guerra, cujas consequências
devastadora para a liberdade civil e política são denunciadas de
modo antecipado e com uma grande lucidez exactamente por Robespierre. Os loucos
são os bolcheviques que invocam a Revolução para por fim
à carnificina da Primeira Guerra Mundial, não aqueles que,
prolongando a participação da Rússia nesta carnificina,
não hesitam em sacrificar milhões de pessoas e em provocar no
país uma crise política, económica e social de
proporções espantosas. Mais ainda, a Primeira Guerra Mundial
é saudada não só na Rússia mas em todo o Ocidente
como um momento de regeneração espiritual exaltante e os maiores
intelectuais da época empenham-se nesta obra de celebração
e de transfiguração.
Finalmente. Vimos Tocqueville identificar na obra de um "vírus de
uma espécie nova e desconhecida" a causa do interminável
ciclo revolucionário francês. Mas porque o autor desta
explicação não poderia ser submetido, também ele, a
um diagnóstico psicopatológico? Para demonstrar a loucura da
"raça de revolucionários que parece nova no mundo" e
que está a actuar em França, ele observa que esta
"não só pratica a violência, o desprezo do direitos
individuais e a opressão das minorias, mas, o que é novo,
professa que assim deve ser" (II, 2, p. 337). E vejamos agora como o
liberal francês celebra a primeira guerra do ópio:
"Trata-se de um grande acontecimento, sobretudo se se sonha que não
é senão a sequência, o último termo de uma
multidão de acontecimentos da mesma natureza que, todos eles, empurram
gradualmente a raça europeia para fora da sua casa e submetem
sucessivamente ao seu império e à sua influência todas as
outras raças [...]; é a submissão de quatro partes do
mundo pela quinta. Não difamemos nosso século e nós
próprios; os homens são pequenos mas os acontecimentos são
grandes".
Ou então vejamos qual comportamento Tocqueville sugere ao
exército francês empenhado na conquista da Argélia:
"Destruir tudo o que se pareça a uma agregação
permanente de população, ou por outras palavras, a uma cidade.
Creio da mais alta importância não deixar subsistir ou elevar-se
nenhuma cidade nos domínios de Abd-el-Kader" (o líder da
resistência)."
[15]
Nestas duas declarações ressoa esta celebração da
violência e da lei do mais forte de que se censura a "raça
dos revolucionários" em acção em França. Por
outras palavras, é de modo não só arbitrário mas
também dogmático que procedem os fazedores da abordagem
psicopatológica: eles não aplicam a si mesmos os critérios
que fazem valer para os outros.
Poder-se-ia objectar com Furet que o carácter patológico da
violência jacobina (e bolchevique) reside no facto de que ela devora os
seus próprios filhos. Se não fosse a dialéctica de Saturno
que está bem presente na Reforma protestante na primeira
revolução inglesa e que se manifesta também, com
modalidades particulares, na revolução americana. Por
ocasião da Guerra de Secessão, os dois campos reclamam-se da luta
pela independência conduzida em conjunto contra a Coroa inglesa. Os
abolicionistas referem-se ao princípio proclamado pela
Declaração de independência segundo a qual "todos os
homens foram criados iguais" e ao
incipit
solene da Constituição de Filadelfia na qual o "povo dos
Estados Unidos" declara querer ulteriormente "aperfeiçoar a
União". A propaganda da Confederação reivindica a
herança da luta dos patriotas contra um poder central opressivo,
sublinha a centralidade do tema dos direitos de cada estado singular no
processo de fundação e na tradição jurídica
do país, e observa que Washington, Jefferson e Monroe eram todos
proprietários de escravos. Os dois campos opostos declaram
avançar no rastro dos Pais Fundadores, mas isso não evita o
choque e o torna mesmo mais rude. Não há dúvida:
também neste caso, Saturno devora os seus filhos.
É preciso notar igualmente que os colonos americanos protagonistas da
guerra de independência contra o governo de Londres são definidos
pelos seus contemporâneos ingleses, quer num julgamento positivo ou
negativo, como "os dissidentes do desacordo". E se Burke denuncia a
"doença" francesa desde a primeira da revolução
[16]
, Mallet du Pan põe em causa nesta revolução a
"inoculação americana"
[17]
. Como se vê, a remessa à dialéctica de Saturno e à
psicopatologia para explicar as revoluções não esperou o
jacobinismo para vir à luz!
Mas coloquemos agora uma pergunta: qual é o ponto de partida da loucura
ideológica que teria assolado primeiro o ciclo revolucionário
francês e depois o ciclo revolucionário russo? Furet, tal como
Pipes, partem da França das Luzes e das sociedades de pensamento. E
é do mesmo modo que argumenta Taine, que vimos criticar Voltaire como
demónio incarnado e que vê a França revolucionária
"intoxicada pela má aguardente do Contrato Social" de Rousseau
[18]
. Pode-se agora considerar como terminada a investigação para
trás das origens do maldito vírus revolucionário? Nada
disso! Bem antes da revolução que em França liquida o
Antigo Regime, verifica-se na Alemanha a Guerra dos Camponeses que, conduzidos
por Müntzer, insurgem-se contra os senhores feudais e querem abolir a
servidão de gleba. Os protagonistas desta revolução
são estigmatizados por Lutero como "profetas loucos"
(tolle Propheten)
que excitam a "populaça louca"
(tolle Pöbel),
como "visionários"
(Schwärmerer, Geister, Schwarmgeister),
loucos que perderam totalmente o sentido da realidade
[19]
. Mas esta campanha contra o ex-discípulo que se tornou louco não
impede Lutero de ser por sua vez classificado por Nietzche entre os
"espíritos doentes", a saber, entre os
"epilépticos das ideias" (com Savonarole, Luther, Rousseau,
Robespierre et Saint-Simon) (
O Anticristo,
54).
Sim, segundo Nietzche, para encontrar as primeiras origens da doença
revolucionária convém remontar bem mais para trás do que o
fazem os críticos habituais da revolução: a loucura que
desejaria o advento de um mundo perfeito e igualitário e que condena a
riqueza e o poder enquanto tais começou a manifestar-se já com o
cristianismo e mesmo, ainda antes, com os profetas judeus. Convencido da longa
duração do ciclo revolucionário que assola o Ocidente,
Nietzche convida a proceder finalmente ao acerto de contas com "estes
milhares de anos de um mundo de choças" e com as
"doenças mentais" que o assolam a partir do
"cristianismo"
(O Anticristo,
38). Poder-se-ia ler esta conclusão como a involuntária
reductio ad absurdum
da interpretação psicopatologisante do conflito político
e, em particular, das grandes crises históricas. Mas não
esqueçamos que Nietzche declara ter "passado pela escola de
Tocqueville e de Taine" (B, III, 5, p.28), e que tem com este
último relações epistolares marcadas por uma estima
recíproca
[20]
.
Nos nossos dias, igualmente, na esteira do filósofo alemão, um
ilustre historiador das religiões (Mircea Eliade) e um eminente
filósofo (Karl Löwith) explicam a loucura sanguinária do
século XX partindo de longe, de muito longe: tudo teria começado
em tempos bastante recuados com a recusa do mito do retorno eterno e com o
advento da visão unilinear do tempo e da fé no progresso que a
acompanha: tudo teria começado com, uma vez mais, a
afirmação da cultura judia e cristã. A tendência
para liquidar as grandes crises históricas (e em última
análise a história universal) enquanto expressões de
loucura caracteriza a cultura actual de modo talvez ainda mais forte do que a
cultura da Restauração.
Mas como explicar o facto de que as explosões de loucura manifestam-se
mais frequentemente e numa escala mais vasta em certos países do que em
outros? Conhece-se em Tocqueville a tendência para celebrar um sentido
moral e prático superior e um mais forte apego à liberdade que
caracterizariam os cidadãos estado-unidenses, em oposição
aos franceses. Quer dizer que a leitura psicopatológica do conflito
tende a desembocar numa leitura de cariz etnológico (e de
tendência racial). É uma tendência que se manifesta
também fortemente na historiografia e na cultura contemporânea.
Segundo Norman Cohn (2000, p. 21), a Inglaterra "faz-se notar por uma
ausência quase total de tendências chiliásticas" e de
"
chiliaísmo
revolucionário", que em contrapartida assolam a França e a
Alemanha
[21]
. Mais radical na deriva etnológica (e, em última análise,
racial) é Robert Conquest (2001, p.15), que vê na França e
na Rússia (e na Alemanha) os lugares das "aberrações
mentais", das quais em contrapartida estão imunes as
revoluções inglesa (não se fala senão da
Revolução Gloriosa de 1688) e americana. Além disso, a
civilização autêntica encontra sua expressão mais
acabada na "comunidade de língua inglesa" e o primado desta
comunidade tem seu fundamento étnico preciso, constituído pelos
"angloceltas"
[22]
. Então coloca-se aqui uma questão: por o culto dos
"angloceltas" deveria ser mais aceitável do que o culto dos
"arianos", particularmente caro aos nazis?
Pois. Para se dar conta do absurdo da remessa à psicopatologia basta
reflectir no facto de que o carácter catastrófico da crise
revolucionária na Rússia foi previsto com décadas de
antecipação por autores muito diferentes entre si. Em 1811, na
São Petesburgo ainda abalada pela revolta camponesa de Pugatchev,
Maistre vê perfilar-se uma revolução (desta vez apoiada por
"Pougatcheve de Universidade", isto é, por intelectuais de
origem popular) de uma amplitude e de uma radicalidade de fazer empalidecer a
Revolução Francesa. Em 1859 previne: se a nobreza continuar a se
opor a uma emancipação real dos camponeses, emergirá um
cataclismo social "sem precedentes na história". Em 1905,
mesmo o primeiro-ministro russo Serge Witte exprime-se em termos semelhantes!
Podem-se fazer considerações análogas para a crise que na
Alemanha acabou no advento de Hitler ao poder. Pouco tempo após a
assinatura do Tratado de Versalhes, o marechal Ferdinand Foch observa:
"isto não é a paz, isto não é senão um
armistício para vinte anos". O imperialismo alemão
não ia tardar em tentar a sua desforra; e ele vai tanto mais facilmente
obter um consenso de massa na medida em que os vencedores da Primeira Guerra
Mundial se mostram vindicativos e míopes. Neste mesmo período o
grande economista John Maynard Keynes, que fez parte da delegação
inglesa em Versalhes, põe em guarda contra as consequências de uma
"paz cartaginesa":
"A vingança, ouso prever, não tardará. Nada
poderá então retardar por muito tempo esta guerra civil final
entre as forças da reacção e as convulsões
revolucionárias desesperadas; face a que os horrores da última
guerra alemã desaparecerão no nada e destruirão, qualquer
que seja o vencedor, a civilização e o progresso da nossa
geração".
[23]
Portanto: "Que o céu nos proteja a todos!" Uma prova de
força ia-se perfilando para a hegemonia ainda mais brutal e
bárbara que do que aquela que se havia desencadeado no decorrer do
primeiro conflito mundial.
O nazismo caracteriza-se também por sua pretensão a retomar a
tradição colonial para realizá-la também, nas suas
formas mais bárbaras, na Europa oriental. Pois bem, a partir já
do século XIX a cultura europeia mais avançada colocou-se uma
questão angustiante: o que teria acontecido se os métodos de
governo e de guerra em acção nas colónias tivessem acabado
por se impor também nas metrópoles? O próprio
genocídio dos judeus não acontece de modo de algum de modo
improvisado. Basta-nos dizer que na Rússia devastada pela guerra civil,
os judeus, estigmatizados como fantoches do bolchevismo, tornam-se as
vítimas de massacres desencadeados pelas tropas brancas apoiadas pela
Entente: isto é o prelúdio observam eminentes
historiadores do que será a seguir a "solução
final"
[24]
.
Concluamos. A leitura psicopatologisante das grandes crises históricas
permite por um lado liquidar como uma expressão de loucura o gigantesco
processo de emancipação que vai da Revolução
Francesa (das Luzes mesmo) à Revolução de Outubro; por
outro lado, ela atribui o Terceiro Reich a uma personalidade doente individual
(Hitler), absolvendo indirectamente o sistema político-social e a
tradição ideológica que o produziram. A crítica da
leitura psisopatologisante (mesmo demonológica) das grandes crises
históricas é um hoje um dever essencial da crítica da
ideologia e da luta pela razão.
[1] cf. Heinrich von Treitschke, Deutsche Geschichte im neunzehnten
Jahrhundert, Leipzig, 1879-1894, vol. III, p. 153.
[2] Benedikt F. X. von Baader, Sämtliche Werke, présenté par
F. Hoffmann et alt. (Leipzig 1851-1860), réédition anastatique,
Scientia, Aalen, vol. 6, pp. et 26.
[3] Alexis de Tocqueville, uvres complètes,
présentées par J. P. Mayer, Gallimard, Paris, 1951 et suivantes,
vol. XIII, 2, pp. 337-38.
[4] Pour les Souvenirs nous renvoyons le lecteur à l'anthologie de
Tocqueville de F. Mélonio et J. C. Lamberti, Laffont, Paris, 1986, pp.
798 et 812.
[5] Hippolyte Taine, Les origines de la France contemporaine (1876-94),
Hachette, Paris, 1899, vol. 6, p. 64.
[6] Ibidem., vol. 5, pp. 21 et suivantes.
[7] Ibidem.,vol. 7, pp. 205, 208 et 347-8 et vol. 1, p. 295.
[8] Domenico Losurdo, Le révisionnisme en histoire. Problèmes et
mythes, traduit de l'italien par Jean-Michel Goux, Albin Michel, Paris, 2006,
chap. 1,1.
[9] Theodor W. Adorno, Eingriffe. Neun kritische Modelle, Suhrkamp, Frankfurt
a. M., 1964, pp. 132-3.
[10] Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism (1951) Harcourt, Brace &
World, New York, 3° ed., 1966, pp. 457-9.
[11] Cf. Emily Eakin, Is Racism Abnormal ? A Psychiatrist Sees It as a Mental
Disorder, in International Herald Tribune du 17 janvier 2000, p. 3.
[12] Wyn C. Wade, The Fiery Cross. The Ku Klux Klan in America, Oxford
University Press, New York-Oxford, 1997, p. 11.
[13] Ecce Homo, « Pourquoi j'écris de si bons livres ».
[14] Cf. Theodor W. Adorno, Studies in the Authoritarian Personality, in Id.,
Gesammelte Schriften, Suhrkamp, Frankfurt a. M., vol. 9, 1, p. 430.
[15] Alexis de Tocqueville, uvres complètes, cit., vol. 2, 2, p.
337 ; vol. 6, 1, p. 58 et vol. 3, 1, p. 229.
[16] Domenico Losurdo, Controstoria del liberalismo, Laterza, Roma-Bari, 2005,
chap. VIII, § 7.
[17] Alphonse Aulard, Histoire politique de la Révolution
française (1926), Scientia, Aalen (reproduction anastatique), 1977, p.
19, note 1.
[18] Cf. Hippolyte Taine, Les origines de la France contemporaine, cit., vol.
4, p. 262.
[19] Martin Luther, Ermahnung zum Frieden auf die zwölf Artikel der
Bauernschaft in Schwaben (1525), in Die Werke, présenté par Kurta
Aland, Klotz-Vandenhoeck & Ruprecht, Stuttgart-Göttingen, 1967, vol. 7,
pp. 165, 168, 174 et 180 ; Martin Luther, Daß diese Worte : Das ist mein
Leib etc. noch feststehen. Wider die Schwarmgeister (1527), in Werke,
présenté par Diaconus Dr. Buchwald et alt., Schwetschke,
Braunschweig, 1890, vol. 4, pp. 342 et suivantes.
[20] Domenico Losurdo, Nietzsche, il ribelle aristocratico. Biografia
intellettuale e bilancio critico, Bollati Boringhieri, Torino, 2002, cap. 28,
§ 2 .
[21] Cf. N. Cohn, The Pursuit of the Millennium (1957), tr. it., de Amerigo
Guadagnin, I fanatici dell'Apocalisse, Comunità, Torino, 2000, p. 21.
[22] R. Conquest, Reflections on a Ravaged Century (1999), tr. it., de Luca
Vanni, Il secolo delle idee assassine, Mondadori, Milano, 2001, pp. 15, 275 et
suivantes et 307.
[23] John M. Keynes, The economic consequences of the peace (1920), Penguin
Books, London, 1988, pp. 56 et 267-68.
[24] Cf. Domenico Losurdo, Staline. Histoire et critique d'une légende
noire, traduit de l'italien par Marie-Ange Patrizio, Aden, Bruxelles, 2011,
chap. 3, 1 et 5, 6.
[*]
Professor de história da filosofia da Universidade de Urbino
(Itália). Dirige desde 1988 a Internationale Gesellschaft Hegel-Marx
für Dialektisches Denken e é membro fundador da Associazione Marx
XXIesimo secolo.
Extracto de
Psicopatologia e demonologia: A leitura das grandes crises históricas da
Restauração aos nossos dias,
ensaio publicado na revista
Belfagor. Rassegna di varia umanità,
dirigida por Carlo Ferdinando Russo, Editions Leo S. Olschki, Florence,
Maço 2012, p. 151-172.
Como se sabe, a Belfagor encerrou. Com esta homenagem agradeço ao meu
amigo Carlo Ferdinando Russo e a toda redacção pela hospitalidade
que me foi seguidamente oferecida. Domenico Losurdo.
O original encontra-se em
http://domenicolosurdo.blogspot.fr/
e a versão em francês em
http://www.voltairenet.org/article177087.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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