A "democracia para o povo dos senhores", no passado e no presente
Mas esta pode facilmente transformar-se numa
ditadura para os deste povo
Andrew Jackson era o presidente do Estados Unidos no momento em que Tocqueville
fez a viagem que levou à publicação da "Democracia na
América". É verdade que este presidente liquida em grande
parte a discriminação censitária
[1]
dos direitos políticos. Mas, paralelamente, encontramo-nos com um
proprietário de escravos que, igualmente, ordena a
deportação dos Peles Vermelhas (os cherokees). Foram homens,
mulheres, velhos, crianças: um quarto morreu durante a viagem.
Deveríamos considerar que Jackson é um democrata? Os autores da
Declaração da Independência e da Constituição
de 1787 são igualmente proprietários de escravos, logo, durante
trinta e dois dos primeiros trinta e seis anos de existência dos Estados
Unidos, a função de presidente é ocupada por
proprietários de escravos, muitas vezes implicados na
expropriação e deportação dos Peles Vermelhas.
Os Estados Unidos daquela época eram uma democracia?
Em geral, afastam-se estas questões através do recurso a um
historicismo vulgar: as sociedades liberais teriam herdado práticas e
relações sociais universalmente difundidas. Mas os factos
são inteiramente diferentes. Tocqueville publica o primeiro livro da
"Democracia na América" em 1835. Nesta data, a
escravidão havia desaparecido em grande parte do continente. Na esteira
da Revolução Francesa, a revolução dos escravos
negros em São Domingos dá o impulso do processo de
emancipação. Depois a revolução da América
Latina explode a dominação espanhola: ela também se
conclui com a abolição da escravatura. A revolução
dos colonos ingleses que conduziu à fundação dos Estados
Unidos é a única do continente americano a manter e mesmo
reforçar e estender a instituição da escravatura: depois
de ter arrancado o Texas ao México, a república norte-americana
ali reintroduz a escravatura anteriormente abolida. Mais uma vez coloca-se a
questão: os Estados Unidos daquela época eram uma democracia?
É mais adequado falar de
Herrenvolk democracy,
ou seja, de democracia que vale somente para o "povo dos senhores".
Quando este regime acabou nos Estados Unidos? Com o fim da Guerra de
Secessão e a abolição da escravatura que se seguiu? Na
realidade, um dos capítulos mais trágicos da história dos
afro-americanos foi escrito entre o fim do século XIX e
princípios do século XX. O linchamento era um horrível
espectáculo de massa. Quero citar aqui um historiador americano:
"As notícias de linchamento eram publicadas nas folhas locais e
vagões suplementares eram acrescentados aos comboios para [transportar]
os espectadores, por vez milhares, vindos de localidades situadas a
quilómetros de distância. Para assistir ao linchamento, as
crianças das escolas podiam ter um dia de liberdade. O
espectáculo podia incluir a castração, o esfolamento, a
assadura, o enforcamento, os tiros. As recordações para os
compradores podiam incluir os dedos das mãos e dos pés, os ossos
e mesmo os órgãos genitais da vitimas, assim como cartões
postais ilustrados do acontecimento".
Outro historiador americano (George M. Fredrickson) observa que "os
esforços para manter a "pureza da raça" no Sul dos
Estados Unidos antecipam certos aspectos da perseguição
lançada pelo regime nazi contra os judeus nos anos 1930". Nos
Estados Unidos, o Estado racial sobreviverá algum tempo após o
afundamento do Terceiro Reich: em 1952, uma trintena de estados da União
ainda proibiam o casamento e as relações sexuais inter-raciais,
por vezes consideradas como delitos graves.
A "democracia para o povo dos senhores" e a história do
Ocidente
Contudo, seria errado concentrar a atenção exclusivamente nos
Estados Unidos. A categoria
Herrenvolk democracy
também pode ser útil para explicar a história da
Inglaterra que, imediatamente após a Gloriosa Revolução
liberal de 1688-89, arrebata à Espanha o monopólio do
tráfico dos escravos negros e reforça sua opressão sobre
os irlandeses impondo-lhes uma condição comparável
àquela dos Peles Vermelhas. Ou melhor, a categoria
Herrenvolk democracy
pode ser útil para explicar a história do Ocidente enquanto tal.
Com efeito, entre o fim do século XIX e os princípios do XX, a
extensão do sufrágio na Europa caminha a par com o processo de
colonização e a imposição de
condições de trabalho servis ou semi-servis às
populações submetidas: a
rule of law,
o governo da lei na metrópole capitalista entrelaça-se com o
poder arbitrário e policial e mesmo com o terror imposto nas
colónias. Se se examinar bem, é o mesmo fenómeno que
caracteriza a história dos Estados Unidos com esta diferença: no
caso da Europa as populações colonizadas ao invés de
viverem na metrópole são dela separadas pelo oceano. De modo
significativo, na segunda metade do século XIX, um liberal de esquerda
como John Stuart Mill por um lado celebra a liberdade e justifica-a, por outro
lado celebra o "despotismo" do Ocidente sobre as raças ainda
"menores" destinadas a observar uma "obediência
absoluta".
A "democracia para o povo dos senhores" tem vida dura!
Chegado a este ponto, sintetizando e actualizando os resultados do meu livro,
Contre-histoire du libéralisme
(La Découverte, 2013 na tradução francesa), coloco-me
três perguntas: a ultrapassagem da "democracia para o povo dos
senhores" resulta de uma evolução espontânea do
liberalismo? A resposta deve ser um não categórico. Em Dezembro
de 1952, o ministro americano da Justiça envia uma carta eloquente ao
Tribunal Supremo que está em vias de discutir a questão da
integração nas escolas públicas: "a
discriminação racial leva água ao moinho da propaganda
comunista" que se difunde entre os afro-americanos (assim como entre todos
os povos submetido à dominação colonial e racista). No
século XX, o movimento comunista foi o grande adversário do
colonialismo, da "democracia para o povo dos senhores" e do Estado
racial.
E agora a segunda pergunta: o Estado racial americano exerceu influência
sobre a Europa? Em 1930, um ideólogo do nazismo de primeiro plano, como
Alfred Rosenberg, exprime sua admiração pela América da
white supremacy,
este "esplêndido país do futuro" que teve o
mérito de formular a feliz "nova ideia de um Estado racial",
ideia que era pois questão de também por em prática
"com a força da juventude" na Alemanha. Hitler também
se reclama explicitamente do modelo americano: na Europa Oriental, os
índios a submeter são os eslavos que é preciso dizimar a
fim de permitir a germanização do território e aqueles que
serão poupados serão destinados a trabalhar como os escravos
negros ao serviço da raça dos senhores (os judeus, ao
contrário, são assimilados aos bolcheviques, tanto uns como
outros devendo ser eliminados enquanto ideólogos e instigadores da
revolta das "raças inferiores"). Naturalmente, é
preciso manter em mente a distinção entre democracia (ainda que
limitada somente à raça dos senhores) e ditadura. E contudo...
Retornemos aos Estados Unidos nos anos que antecedem a Guerra de
Secessão. Tocqueville observa a dureza das pensa infligidas
àqueles que ensinavam os escravos a ler e escrever. Naturalmente, a
proibição visava excluir a raça dos servos de toda forma
de instrução. E em caso de violação desta regra, os
proprietários brancos eram os primeiros a serem atingidos. Além
disso, as regras proibiam a miscigenação, as
relações sexuais e os casamentos inter-raciais. Ou, mais uma vez,
visando tornar hereditária e invariável a condição
dos escravos, estas regras acabavam por trazer um grave atentados à
liberdade dos proprietários. Por outras palavras, o regime da
"democracia para o povo dos senhores" limitava profundamente a
liberdade dos proprietários de escravos, confirmando a grande
fórmula de Marx e Engels segundo a qual um povo que oprime outro
não poderia ser livre.
Pode-se pensar do que acontecia quando os escravos se rebelavam ou quando os
proprietários temiam serem privados da sua "propriedade" de um
modo ou de outro. As testemunhas da época relatam: "o
serviço militar [das patrulhas brancas] é assegurado noite e dia,
Richmond parece uma cidade sitiada [...] Os negros [...] não se arriscam
a comunicarem entre si por medo de serem punidos". Os abolicionistas
brancos também eram afectados porque eram considerados como traidores da
raça branca e por isso eram assimilados aos negros. Vamos dar, mais uma
vez, a palavra às testemunhas da época: aqueles que criticam a
instituição da escravatura "não ousam sequer
intercambiar opiniões com aqueles que pensam como eles por medo de serem
traídos". Todos são constrangidos pelo terror a
"não abrirem as bocas, a abafar suas próprias dúvidas
e a enterrar suas próprias reticência". Como se vê, a
dominação terrorista que os proprietários de escravos
exerciam sobre os negros acabava por atingir duramente os membros e as
fracções da classe dominante. Em condições de crise
aguda, a "democracia para o povo dos senhores" pode facilmente
transformar-se numa ditadura para o povo dos senhores. Entre o Estado racial
nos EUA e o Estado racial na Alemanha, há elementos de continuidade e de
descontinuidade.
Finalmente, a última pergunta: a "democracia para o povo do
senhores" desapareceu totalmente dos nossos dias? Inegavelmente, muitas
coisas mudaram a gigantesca vaga de revoluções anti-coloniais
irrompendo no mundo a partir de Outubro de 1917 e, sobretudo, de Estalingrado.
Contudo, a ideologia dominante celebra Israel como a única democracia
autêntica do Médio Oriente. Salvo que a
rule of law,
o governo da lei para os cidadãos israelenses de pleno direito caminha
a par com a expropriação, a deportação, a
prisão arbitrária e mesmo a execução extra-judicial
perpetrados contra os palestinos: é a democracia para o povo dos
senhores. E à escala internacional? Pisoteando de modo explícito
o princípio da igualdade entre as nações, os Estados
Unidos e o Ocidente continuam a arrogar-se o direito soberano de invadir,
bombardear, submeter a embargo e à fome este o aquele país mesmo
sem a autorização do Conselho de Segurança da ONU.
Às proclamações vibrantes prestando homenagem à
liberdade e à democracia corresponde a tentativa de exercer uma ditadura
no plano internacional. Infelizmente, a "democracia para o povo dos
senhores" tem a vida dura!
[1] Discriminação censitária: sufrágio que exclui
categorias de eleitores com base em factores como riqueza, classe de
tributação, classe social, religião, conhecimento,
raça, idade, criminalidade, residência, nacionalidade,
naturalização, função.
O original encontra-se em
http://projet.pcf.fr/38614
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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