Resistência falsa e manipulações verdadeiras
A geopolítica da Internet
A Google desafia o governo da República Popular da China: a grande
imprensa de "informação" aplaude com
estardalhaço o rigor moral e a coragem de uma multinacional pronta a
pagar caro em termos económicos a fim de não se submeter
às imposições da censura e a reafirmar o direito humano
à livre informação. Na verdade, ainda que de modo muito
minoritário, algumas vozes fizeram-se ouvir para pedir maior
prudência: não haverá senão nobres
motivações como explicação do golpe da Google ou
será que considerações de outra natureza estão em
jogo? O grande gesto poderia não ser senão um golpe de teatro de
uma astuta campanha de relações públicas: virar as costas
com ostentação a um mercado certamente muito prometedor, mas pelo
qual a concorrência local é aguerrida e conquistadora, pode afinal
de contas beneficiar a imagem e os lucros da multinacional estado-unidense,
abrindo-lhe o caminho para uma expansão em outros países e ao
nível mundial... Portanto, no cenário tratado na Itália
pelos órgãos de imprensa mais "anti-conformistas",
emerge assim o cálculo utilitário ao lado dos direitos humanos. A
geopolítica, em contrapartida, continua a estar ausente, a qual no
entanto, para um observador mais atento, verifica-se se o autêntico
protagonista. Para perceber, façamos um salto atrás de cerca de
sessenta anos, concentrando-os num caso, aqui reconstruído a partir de
um artigo recente de Alessandra Farkas no
Corriere della Sera.
"Um misterioso vento de loucura colectiva"
A 16 de Agosto de 1951, fenómenos estranhos e inquietantes vieram
perturbar Pont-Saint-Esprit, "uma aldeia tranquila e pitoresca"
situada "no Sudeste da França". Sim, "o país foi
sacudido por um misterioso vento de loucura colectiva. Morreram pelo menos
cinco pessoas, dezenas acabaram no asilo, centenas deram sinais de
delírio e de alucinações [...] Muitos acabaram no hospital
com a camisa de força". O mistério, que desde há
muito cerca esta explosão de "loucura colectiva", está
agora desvendado: tratou-se de um "experimento efectuado pela CIA, com a
Special Operation Division (SOD), a unidade secreta do Exército dos EUA
de Fort Detrick, Maryland". Os agentes da CIA "contaminaram com LSD
as baguetes vendidas nas padarias do lugar", provocando os resultados que
vimos acima. Estamos no princípio da Guerra Fria: os Estados eram com
certeza aliados da França, mas é justamente por isso que esta se
prestava às experimentações de guerra psicológica
que tinham como objectivo o "campo socialista" (e a
revolução anti-colonial) mas dificilmente podiam ser efectuados
nos países situtados além da cortina de ferro.
[1]
Coloquemos então esta questão: a excitação das
massas não pode ser produzida senão por via farmacológica?
Os acontecimentos que, no fim da Guerra Fria, varrem o "campo
socialista", em grande medida desacreditado e enfraquecido, dão o
que pensar. A 17 de Novembro de 1989, a "revolução de
veludo" triunfava em Praga, com uma palavra de ordem aparentemente
gandiana: "Amor e verdade". Na realidade confessa nos nossos
dias o
International Herald Tribune
um papel decisivo foi desempenhado pela falsa notícia segundo a
qual um estudante fora "morto brutalmente" pela polícia. Se no
caso da Checoslováquia revelaram-se suficientes duas
"pequenas" manipulações (por um lado a
transfiguração dos líderes da revolta em gandianos devotos
do culto da verdade e da não violência, por outro a
produção sagaz e a difusão de "notícias"
destinadas a provocar a indignação em massa), mais complicada foi
a promoção, algumas semanas mais tarde, da revolta na
Roménia derrubou a ditadura de Ceausescu. A encenação, nas
suas linhas gerais, não mudou: tratava-se sempre de desacreditar e mesmo
diabolizar o poder a derrubar, para fazê-lo um alvo fácil da
indignação em massa alimentada astutamente e sem sombras de
escrúpulos. Sim, mas como atingir este objectivo na
situação concreta da Roménia no fim de 1989? O que se
passou na realidade? Deixemos a palavra com um prestigiado filósofo
(Giorgio Agamben), que nem sempre demonstra vigilância crítica em
relação à ideologia dominante mas que sintetizou aqui de
modo magistral o caso que tratamos:
"Pela primeira vez na história da humanidade, cadáveres
recém enterrados ou alinhados nas mesas das morgues foram desenterrados
às pressas e torturados para simular diante das câmaras o
genocídio que devia legitimar o novo regime. Aquilo que o mundo inteiro
tinha diante dos olhos em directo como verdade nos écrans de
televisão era a absoluta não-verdade. E apesar de que por vezes a
falsificação foi evidente, ela era de qualquer forma autenticada
como verdadeira pelo sistema mundial dos media, para a qual, ficou claro, a
verdade doravante não era senão um momento do movimento
necessário do falso".
O fim da Guerra Fria não foi o fim do Grande Jogo. Para os EUA, liquidar
o "campo socialista" e desmembrar a União Soviética
não bastava. Era preciso também promover impor na Europa Oriental
a ascensão ao poder de líderes totalmente ligados a Washington.
Na Geórgia, num certo momento mesmo Eduard Chevarnadze (até
então estimado e apreciado no Ocidente pelo papel
"democrático" que havia desempenhado ao lado de Gorbachev na
dissolução do "campo socialista" e mais tarde indo
mesmo para além do próprio Gorbachev, e na
dissolução da União Soviética) tornava-se um
líder indesejável e a substituir. A tarefa foi confiada à
famosa "revolução das rosas" [2]. Centro-me em alguns
dos seus momentos chave, servindo-me da reconstrução aparecida
numa reputada revista francesa de geopolítica. As televisões
georgianas nas mãos da oposição e os media ocidentais
dedicam-se a uma campanha conjunta e incessante:
"A corrupção do regime mostrou-se sob todos os seus
aspectos. Não hesitando em mentir em caso de necessidade. Em meados de
Novembro, revistas alemãs afirmam que próximos do sr. Chervanadze
comprara para ele uma luxuosa villa na estância termal de Baden-Baden, no
Sul da Alemanha. O
Bild
afirma que a residência é estimada em 11 milhões de euros.
A informação não é confirmada. Que importa [...]
Uma das nossas fontes saberá mais tarde que a foto mostrada foi tomada
ao acaso na Internet".
Após a proclamação dos resultados eleitorais que assinalam
a vitória de Chevarnadze e que são classificados de fraudulentos
pela oposição, esta decide organizar uma marcha sobre
Tíflis, que deveria marcar "a chegada simbólica, e mesmo
pacífica, na capital, de todo o país em cólera".
Apesar de convocada por todos os cantos do país com grandes
reforços de meios propagandísticos e financeiros, naquele dia
afluem à marcha entre 5 e 10 mil pessoas: "isto não é
nada para a Geórgia"! E, contudo, graças a uma
encenação refinada e de grande profissionalismo, a cadeia da
televisão mais difundida do país consegue comunicar uma mensagem
totalmente diferente: "A imagem, poderosa, de um povo inteiro que segue
seu futuro presidente". Daí em diante as autoridades
políticas são deslegitimadas, o país é desorientado
e estupefacto e a oposição mais arrogante e agressiva do que
nunca, tanto mais que os media internacionais e as chancelarias estrangeiras
encorajam-na e protegem-na. O golpe de Estado está maduro, ele vai levar
ao poder Mikhail Saakashvili, que estudou nos EUA, fala um inglês
perfeito e está em condições de compreender rapidamente as
ordens dos seus superiores.
As "guerras sobre a Internet"
Vimos até aqui a transformação da "não verdade
absoluta" em "verdade verdadeira" e incontestável passar
em primeiro lugar através do "écrans de
televisão" ao passo que o papel da Internet foi secundário e
irrelevante. Mas é interessante notar que desde o fim dos anos 90, no
International Herald Tribune
um jornalista (Bob Schmitt) observava: "As novas tecnologias mudaram a
política internacional". Aqueles que estavam em
condições de controlá-los viam aumentam desmesuradamente o
seu poder e a sua capacidade para desestabilizar países mais fracos e
tecnologicamente menos avançados. Com efeito, com o advento e a
generalização da Internet, do Facebook e do Twitter, uma nova
arma emergiu, susceptível de modificar profundamente as
relações de força no plano internacional. Isto não
é mais segredo para ninguém. Nos nossos dias, nos EUA, um rei da
sátira televisiva como Jon Stewart proclama: "Mas porque enviamos
exércitos se é tão fácil abater as ditaduras via
Internet quando comprar um par de sapatos?" O significado militar das
novas tecnologias é aqui explicitamente enfatizado e reivindicado: o
direito de Washington de julgar e condenar soberanamente permanecendo
inalterada, agora é possível recorrer a armas novas e mais
refinadas para punir os culpáveis e os rebeldes.
Mas a Internet não é a própria expressão da
liberdade de expressão? Aqueles que assim argumentam não
são os mais destituídos (e os menos escrupulosos). Na realidade
reconheceu Douglas Paal, ex-colaborador de Reagan e de Bush senior
a Internet actualmente é "gerida por uma ONG que é de
facto uma emanação de Departamento de Comércio dos
EUA". Trata-se apenas de comércio? O semanário alemão
Die Zeit
pede esclarecimentos a James Bamford, um dos maiores peritos em matéria
de serviços secretos estado-unidenses: "Os chineses também
temem que firmas americanas como a Google sejam em última análise
ferramentas dos serviços secretos americanos no território
chinês. Será uma atitude paranóica?" "Nada
disso", é a resposta imediata. A contrário acrescenta
o perito mesmo "organizações e
instituições estrangeiras estão infiltradas" pelos
serviços secretos estado-unidenses, os quais estão de todos os
modos em condições de interceptar as comunicações
telefónicas em todos os cantos do planeta e devem ser consideradas como
"os maiores hackers do mundo". Doravante afirmam ainda no Die
Zeit dois jornalistas alemães não há qualquer
dúvida:
"Os grandes grupos Internet tornaram-se uma ferramenta da
geopolítica dos EUA. Antes, havia necessidade de laboriosas
operações secretas para apoiar movimentos políticos em
países longínquos. Hoje basta muitas vezes um pouco de
técnica de comunicação operada a partir do Ocidente [...]
O serviço secreto tecnológico dos EUA, a Nationl Security Agency,
está em vias de montar uma organização completamente nova
para as guerras sobre a Internet".
À luz de tudo isto, convém reler certos acontecimentos recentes
de explicação não fácil. Em Julho de 2009
incidentes sangrentos verificaram-se em Urumqi e no Xinjiang, a região
da China habitada sobretudo por uigúres. Será a
discriminação e a opressão das minorias étnicas e
religiosas que os explicam? Uma abordagem deste tipo não parece muito
plausível, a julgar pelo menos pelo que menciona de Pequim o
correspondente de
La Stampa
(Francesco Sisci):
"Numerosos hans de Urumqi queixam-se dos privilégios de que
desfrutam os uigúres. Estes, de facto, enquanto minoria nacional
muçulmana, tem a nível igual condições de trabalho
e de vida bem melhores que os seus colegas hans. Um uigúr tem, no seu
escritório, autorização de suspender o seu trabalho
várias vezes por dias para cumprir as cinco orações
muçulmanas tradicionais da jornada [...] Além disso eles podem
não trabalhar na sexta-feira, o dia feriado muçulmano. Em teoria
deveriam recuperar o domingo. Mas no domingo os escritórios estão
de facto desertos [...] Outro ponto doloroso para os hans, submetidos à
dura política familiar que impõe um filho único, é
o facto de que os uigúres podem ter dois ou três filhos. Como
muçulmanos, a seguir, eles têm acréscimos no seu
salário uma vez que, não podendo comer porco, devem recorrer ao
cordeiro que é mais caro".
Não tem portanto nenhum sentido, como o faz a propaganda ocidental,
acusar o governo de Pequim de querer apagar a identidade nacional e religiosa
dos uigúres. Então? Reflictamos sobre a dinâmica dos
incidentes. Numa vila costeira da China onde, apesar das diferentes
tradições culturais e religiosa pré-existentes, hans e
uigúres trabalham lado a lado, difunde-se de repente o rumor de que uma
rapariga han foi violada por operários uigúres, do que resultam
incidentes no decorrer dos quais dois uigúres perdem a vida. O rumor que
provocou esta tragédia é falso mas eis que se difunde um segundo
rumor mais forte e ainda mais funesto: a Internet difunde a notícia
segundo a qual na cidade costeira da China centenas de uigúres teriam
perdido a vida, massacrados pelos hans nas indiferença e mesmo sob o
olhar complacente da polícia. Resultado: tumultos étnicos no
Xinjiang, que provocam a morte de quase 200 pessoas, desta vez quase todos
hans. Pois bem, estamos na presença de um caso intricado, infeliz e
fortuito de circunstâncias ou será que a difusão de rumores
falsos e tendenciosos visava o resultado que a seguir foi efectivamente
constatado? Retorna então à memória o "experimento
efectuado pela CIA" durante o Verão de 1951, que produziu "um
misterioso vento de loucura colectiva" na "aldeia pitoresca e
tranquila" de Pont-Saint-Esprit. E, mais uma vez, eis-nos aqui obrigados a
colocar a questão inicial: a "loucura colectiva" pode ser
produzida somente pela via farmacológica ou hoje pode também ser
o resultado do recurso às "novas tecnologias" da
comunicação de massa?
Quem são os "ciber-idiotas"?
Uma coisa é certa: os que são os alvos das "guerra pela
Internet" não ficam de braços parados: como em toda guerra
os fracos procuram colmatar a sua desvantagem aprendendo com os mais fortes. E
eis que estes últimos gritam com escândalo: "No
Líbano" lê-se no
Corriere della Sera
de 20 de Março "os que mais dominam os novos media e redes
sociais não são as forças políticas
pró-ocidentais que apoiam o governo de Saad Hariri, mas os do
Hezbollah". Esta observação deixa despontar um suspiro: ah,
como seria belo se, como aconteceu com a bomba atómica e as armas
(propriamente ditas) mais refinadas, para as "novas tecnologias" e as
novas armas de informação e de desinformação em
massa também aqueles com o monopólio fossem os países que
infligem um interminável martírio ao povo palestino e que querem
continuar a exercer no Médio Oriente uma ditadura terrorista! O facto
é lamenta-se Moisés Naim, director da
Foreign Policy
que os EUA, Israel e o Ocidente não têm mais pela frente
os "ciber-idiotas de outrora". Estes "contra-atacam com as
mesmas armas, fazem contra-informação, envenenam os
poços": uma verdadeira tragédia do ponto de vista dos
campeões da "liberdade de informação" e do
"pluralismo". Infelizmente, as estratégias e os
ideólogos do Pentágono e do Departamento de Estado ainda podem
encontrar nos nossos dias algum motivo sólido de
consolação: bem longe de estarem dispersados, os ciber-idiotas
mostram-se mais vivos que nunca à "esquerda": estão
empenhados em apresentar as manobras perturbadoras da Google como o desafio
lançado pelo David da liberdade e da verdade contra o Golias da
autocracia e da censura!
22/Setembro/2010
Textos citados:
Thomas FISCHERMANN, entrevista com James BAMFORD, " Passen Sie auf, was
Sie tippen ", in
Die Zeit,
18 février 2010, pp. 20-21.
Alessandra FARKAS, " La Cia drogò il pane dei francesi ".
Svelato il mistero delle baguette che fecero ammattire un paese nel '51,
("A CIA drogou o pão dos franceses". O mistério das
baguetes que enlouqueceram uma aldeia em 1951!), in
Corriere della Sera,
13 mars 2010, p. 25.
Thomas FISCHERMANN, Götz HAMANN, Angriff aus dem Cyberspace, in
Die Zeit,
18 février 2010, pp. 19-21.
Massimo GAGGI, Un'illusione la democrazia via web. Estremisti e despoti
sfruttano Internet (Uma ilusão a democracia via web. Extremistas e
déspotas exploram a Internet), in
Corriere della Sera,
20 mars 2010, p. 21.
Domenico LOSURDO, La non-violenza. Una storia fuori dal mito, Roma-Bari,
Laterza, 2010, cap. IX (para a Checoslováquia, a Roménia e o
quadro geral).
Maurizio MOLINARI, entrevista com Douglas PAAL, " Questo è l'inizio
di uno scontro tra due civiltà " ("Aqui está um choque
entre duas civilizações"), in
La Stampa,
23 janvier 2010, p. 7.
Bob SCHMITT, The Internet and International Politics, in
The International Herald Tribune,
2 avril 1997, p. 7.
Francesco SISCI, Perché uno han non sposerà mai una uigura
(Porque um han nunca casará com uma uigúr), in
La Stampa,
8 juillet 2009, p. 17.
Artigo redigido em Março de 2010 e publicado na revista Belfagor.
Rassegna di varia umanità, dirigida por Carlo Ferdinando Russo, 31
juillet 2010, p. 489-494. Rome.
[1] Sobre este tema, ver o artigo
"Quand la CIA menait des expériences sur des cobayes français"
, por Hank P. Albarelli Jr., Voltairenet, 16 mars 2010
[2] Ver o artigo
"Les dessous du coup d'État en Géorgie"
, par Paul Labarique, Voltairenet, 7 janvier 2004.
[*]
Professor de história da filosofia na Universidade de Urbino
(Itália). Dirige desde 1988 a Internationale Gesellschaft Hegel-Marx
für dialektisches Denken e é membro fundador da Associazione Marx
XXIesimo secolo.
Obras de Domenico Losurdo
.
A versão em francês encontra-se em
http://www.voltairenet.org/article167047.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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