O referendo italiano, o Euro e a soberania... (1)
por Jacques Sapir
Alexis Feertchak apresentou-me várias perguntas cujas respostas foram
publicadas em
FigaroVox
[1]
. Considerando a vastidão das perguntas, que vão do referendo
italiano às consequências de uma eventual saída do euro e
que exigem respostas aprofundadas, o texto publicado foi cortado por ser
demasiado longo. Publico aqui as minhas respostas na íntegra.
(1) Este domingo haverá na Itália o referendo sobre a reforma
constitucional pretendida pelo presidente do Conselho de Ministros italiano
Matteo Renzi. Quais são as apostas europeias deste referendo?
As apostas deste referendo são em simultâneo locais e europeias.
É a combinação destes dois aspectos que inquieta
actualmente os mercados financeiros e explica porque os dirigentes europeus
encaram este escrutínio (e em menor medida a eleição
presidencial austríaca) com a maior atenção
[2]
. E, num certo sentido, eles não estão errados. Uma
vitória do "Não" abriria um período de
incertezas para a zona euro assim como para a União Europeia. Mas mesmo
que o "Sim" triunfasse, a situação não seria
resolvida de todo.
Efectivamente, a Itália atravessa desde há numerosos anos uma
crise grave. Esta crise não toma a forma aguda da crise grega, ela
é mais surda mas não menos profunda. Constata-se que a
introdução da moeda única matou a economia italiana. Isso
se vê quando se olha o crescimento e sobretudo o crescimento por
habitante. Hoje a Itália está ao nível que havia atingido
em 2000. Dito de outra forma, estes dezasseis últimos anos não
viram qualquer crescimento. O fraco crescimento registado de 2000 a 2007 foi
inteiramente destruído nos anos seguintes. A constatação
é ainda pior se se examinar o crescimento por habitante. Em PIB per
capita o rendimento da Itália está hoje no nível de 1997.
Aqui não se trata de uma crise brutal como na Grécia. A
produtividade do trabalho, cujo crescimento era comparável ao da
França e da Alemanha de 1971 a 1999, estagnou desde 2000. O afastamento
alargou-se maciçamente em relação aos seus vizinhos
imediatos. Se se adoptar 1999 como índice 100, o ano de 2015 está
em 117 na Alemanha e na França, mas apenas em 104,5 na Itália. A
razão desta situação é, como no caso da
França, o afastamento que se criou entre a taxa de câmbio virtual
do Deutsch Mark, que se pode calcular pela evolução da
produtividade e da inflação na Alemanha, e a taxa de câmbio
virtual da Lira. Um estudo do Fundo Monetário Internacional mostra que o
Marco está virtualmente sub-avaliado em 15% (à taxa de
câmbio do Euro) quando a Lira está super-avaliado em 10%. Este
afastamento de 25% é a causa de muitas das infelicidades da economia
italiana, assim como para a França onde o afastamento atinge 21%.
Esta crise tem portanto consequências internas mas também
europeia. Na própria Itália há doravante o sentimento de
que esta situação não pode durar mais. A personalidade de
Matteo Renzi é a partir de agora muito contestada. As diferentes
reformas, quer sejam elas executadas pelo governo de Mario Monti ou aquelas
aplicadas pelo actual primeiro-ministro, Matteo Renzi, atingiram durante a
população mas não puderam relançar a máquina
económica. Elas traduziram-se mesmo por um agravamento da crise
experimentada pela economia italiana.
A ascensão das dívidas podres no balanço dos bancos
italianos, quer seja o Unicredit ou o Monte di Paschi de Siena, que é a
causa principal dos problemas que experimentam, vem daí. Os bancos
emprestaram a empresários e famílias que, devido à crise,
não podem reembolsar estas dívidas. Esta crise é agravada
pelo facto de que os principais accionistas destes bancos são pessoas
privadas e não "investidores institucionais" como acontece em
França. Uma crise aberta destes bancos, sua falência, arruinaria
centenas de milhares de italianos. A gestão desta crise bancária
mostrou uma classe política italiana que mal mudou desde os anos 1990. A
família de Matteo Renzi foi implicada directamente em vários
escândalos.
Esta é uma das razões que levaram Matteo Renzi a submeter um
projecto de reforma constitucional a referendo. Se o projecto for aceite, ele
terá as mãos livres para proceder a uma reforma bancária e
poderá redesenhar um sistema político à sua medida. Se ele
fracassar, a reforma bancária não se verificará, pelo
menos como ele deseja, e não terá outra escolha senão
suplicar à Alemanha que proceda a uma política de
relançamento maciço se quiser salvar a economia italiana. Como
há probabilidades muito pequenas de ser ouvido em Berlim, ele poderia
não ser outra escolha para a Itália senão uma saída
catastrófica do euro. Esta saída não seria feita pelo
próprio Renzi. Pensa-se que em caso de êxito do
"Não" no referendo, seu governo cairia muito rapidamente e
isso abriria caminho para novas eleições onde partidos
eurocépticos, como o Movimento 5 Estrelas de Beppe Grillo, a Liga (ex
"Liga do Norte") de Salvini, mesmo o Forza Italia, o partido de
Berlusconi, poderiam ter a maioria.
Vê-se como a situação italiana poderia, os próximos
dias e semanas, ter consequências consideráveis sobre a
situação da zona euro e da União Europeia. Se tivermos um
êxito do "Não", os investidores se afastarão da
Itália, mas também e o fenómeno do contágio
vai actuar muito rapidamente da França e da Espanha. As taxas
subirão outra vez, apesar da acção do Banco Central
Europeu. Experimentaremos um novo episódio da crise do euro, mas numa
situação política onde a União Europeia, já
enfraquecida pelo "Brexit" e pela eleição de Donald
Trump, provavelmente não terá mais meios de reagir.
(2) Mais genericamente, o cenário de um Italexit é crível?
É preciso distinguir a saída do euro de uma eventual saída
da União Europeia. A Itália tem uma necessidade vital de
recuperar sua soberania monetária. Isto para a sua economia, tal como em
menor medida para a economia francesa, uma questão de vida ou morte. Mas
uma saída do euro, que hoje é encarada seriamente nos meios
industriais italianos, e sabe-se que a confederação patronal
italiana, a Cofindustria, é sorrateiramente favorável, não
implica uma saída automática da UE. O maior pragmatismo
reinará então. Pode-se sempre pretender que não se pode
sair do euro sem sair da UE. Mas, na realidade, isso não é
verdade. Os países da UE têm interesse em que a Itália
fique e perceber-se-á nesta ocasião que os tratados são,
em período de crise, aquilo que Bismarck dizia: pedaços de papel.
Se a Itália tiver de sair do euro, é evidente que se
encontrarão diversas acomodações que não se
conduzirá pela letra formal dos textos.
Entretanto, está claro que esta saída da Itália do euro,
se se concretizasse, enfraqueceria consideravelmente a União Europeia.
Esta então não teria praticamente a opção de se
reformar de maneira fundamental, convocando todos os países membros a um
novo tratado fundador, ou de explodir. Ora, os dirigentes da União
Europeia são fundamentalmente conservadores, pessoas que são
incapazes de imaginar um outro mundo senão aquele das vantagens e da
prebendas com que se beneficiam.
(3) A zona euro poderia resistir ao choque da saída da terceira
economia, que é a Itália, da União Económica e
Monetária?
Economicamente, a resposta é claramente não. A Itália
não é a Grécia. Ela pesa consideravelmente mais na zona
euro. A Itália é o terceiro país da zona euro, tanto pela
importância do seu PIB como pela sua população, após
a Alemanha e a França. Mas o problema aqui não é puramente
económico.
Admitamos que a Itália esteja na obrigação de abandonar o
euro no próximo Verão, ou no Outono, o que é uma
possibilidade que é preciso tomar a sério em caso de
vitória do "não". Pode-se duvidar então que os
dirigentes políticos dos outros países da zona euro tirem
imediatamente as consequências e decidam dissolvê-la. Esta seria,
entretanto, a escolha razoável. Para os dirigentes alemães,
não há claramente interesse. Uma dissolução da zona
euro implicaria uma forte apreciação do Marco (sem dúvida
de 20%, mesmo mais) que faria desaparecer o imenso excedente comercial de que
desfruta a Alemanha. É preciso compreender que o euro foi, desde a sua
criação, uma máquina para sub-avaliar a moeda
alemã, tanto em relação ao "resto do mundo", ou
seja, os países fora da zona euro, como no seio da zona euro. Os
dirigentes franceses, pelo seu lado, opor-se-iam a esta
dissolução pois estão ideologicamente persuadidos de que
um retorno às moedas nacionais é uma catástrofe e
também porque a partir de agora estão
politicamente
dependentes da Alemanha, pelo menos quanto aos dirigentes saídos do PS
e dos "Republicanos". Esta combinação de ideologia, que
as múltiplas intervenções de François Hollande
testemunham, e de dependência política pode pesar fortemente na
sua reacção face a uma vontade de saída expressa pela
Itália. O risco portanto é que a França seja um factor de
bloqueio político, simétrico à Alemanha que será
pelo seu lado um factor de bloqueio económico, e isso por interesse.
Mas esta posição não poderia ser mantida por um tempo
demasiado longo. Certamente não mais de 18 meses. Com efeito, com uma
Itália a deixar o Euro, e a depreciar sua moeda em pelo menos 25% (se
não houver apreciação da moeda alemã), o choque
concorrencial sobre a França será considerável e suas
consequências catastróficas. Se este choque for combinado com os
efeitos recessivos da política de François Fillon, poder-se-ia
ter em França uma baixa do crescimento de -1,5% a -2,5% e uma alta do
desemprego só no ano de 2018 de pelo menos 500 a 700 mil novos
desempregados, podendo atingir e mesmo ultrapassar o milhão (com os
desempregados "induzidos" pelos desempregados "directos").
As empresas francesas então farão pressão sobre o governo
quer para obter novas ajudas quer para que saia do euro.
Estou convencido de que o governo francês será constrangido, a
prazo, a encarar uma saída da França do Euro pois ele não
tem mais margens de manobra para ajudas suplementares às empresas. Mas
quanto mais ele demorar mais elevado será o custo em termos de
desemprego e de quebra económica. A hipótese mais
favorável seria, então, a eleição de um presidente
favorável a uma saída do euro e sabe-se que três candidatos
defendem aproximadamente esta posição, ou seja, Marine le Pen,
Jean-Luc Mélenchon e Nicolas Dupont-Aignan. Se tivéssemos, no
Verão de 2017, um presidente convencido de que é preciso sair do
euro poderíamos exercer, em concertação com os italianos,
uma pressão decisiva para conseguir que os alemães aceitassem uma
dissolução
ordenada
da zona euro. Esta dissolução ordenada traduzir-se-ia por uma
menor depreciação das moedas da França, da Itália,
da Espanha e de Portugal, pois no mesmo tempo haveria uma
depreciação do Marco alemão. O excedente comercial
alemão desapareceria e alimentaria um crescimento forte nos outros
países, o que permitiria ao mesmo tempo resolver a crise bancária
italiana e relançar as economias dos diferentes países da Europa
do Sul. Admitamos agora que o governo alemão não queira ouvir a
razão. Estaríamos então, de qualquer forma, numa
posição bem melhor, com um presidente convencido de que uma
saída do euro é necessária, para nos entender com o
governo italiano e deixar a zona euro, evitando assim o choque que provocaria
uma saída apenas da Itália sobre a França se esta
última persistissem em querer ficar na zona euro.
Uma consequência disto é portanto que o referendo italiano de 4 de
Dezembro constitui na realidade o verdadeiro prelúdio da
eleição presidencial francesa. É nessa altura que teremos
um acontecimento decisivo e não na renúncia de François
Hollande a recandidatar-se. Esta renúncia não muda nada na
situação da França. Ela apenas representa a
constatação da perda maciça de credibilidade do presidente
e do campo de ruínas, tanto políticas como ideológicas,
que ele deixa à "esquerda" parlamentar. Se o
"não" vencer, isso também tornará imediatamente
obsoleto o programa económico de François Fillon (assim como o de
Emmanuel Macron e de quaisquer candidatos saídos do PS) antes mesmo de
poder ser aplicado. A partir desse momento, ou François Fillon
ganhará consciência e considerará que as novas
circunstâncias clamam por uma mudança radical do seu programa
económico que inclua uma saída do euro, ou dará de facto
uma vantagem decisiva aos candidatos que defendem desde há muito a ideia
de uma saída do euro e perderá a eleição
presidencial.
(4) O sr. profetiza desde há muito o fim do euro e explica que a moeda
única impede o retorno do crescimento na Europa. Como chegou a esta
conclusão?
Esta conclusão é a de numerosos economistas. Insiro-me assim numa
corrente em que se encontra o antigo governador do Banco da Inglaterra assim
como Joseph Stiglitz
[3]
, prémio Nobel de economia, e de numerosos economistas quer em
França
[4]
, nos Países Baixos, na Espanha, na Itália, na Polónia ou
na Alemanha.
O euro desempenha um papel muito nefasto sobre o crescimento dos países
da zona euro por duas razões. Por um lado, ele bloqueia a taxa de
câmbio num nível artificial que não beneficia senão
a Alemanha. Tenho dito que o euro é uma máquina para sub-avaliar
maciçamente o valor da moeda alemã. Desde que esta última
tenha pôs ordem nos seus assuntos, isto tornou-se absolutamente evidente.
Economistas já o mostraram
[5]
. Além disso, o euro impõe aos outros países
políticas depressivas, aquilo a que se chama políticas de
austeridade, e impõe igualmente uma corrida à austeridade para os
países que querem fazer parte do euro. Este é o sentido profundo
do projecto económico defendido por François Fillon (e bem mais
hipocritamente por seus adversário, quer seja Alain Juppé ou seus
adversários potenciais como Emmanuel Macron e o candidato potencial do
partido socialista). O impacto do euro sobre o comércio e a actividade
na Europa foi muito negativo, que se trate da actividade intra-europeia ou dos
intercâmbios entre a Europa e o resto do mundo
[6]
.
É preciso constatar que o euro foi vendido às
populações europeias na base de contra-verdades e de mentiras,
é claro que empacotadas numa aparência de raciocínio
científico, mas de que era fácil mostrar os erros e os
preconceitos ideológicos
[7]
. Estas mentiras conduziram-nos ao impasse em que estamos hoje. Vê-se bem
que a Alemanha não
pode
conceder aos outros países da zona euro a ajuda que seria
necessária para compensar a fixidez das taxas de câmbio, uma ajuda
que é avaliada conforme os autores entre 8% e 12% do PIB anual da
Alemanha. Vê-se bem, também, que não há
harmonização social e fiscal entre os países da zona euro.
Hoje, estamos numa situação em que o afastamento das taxas de
câmbio virtuais entre os países atingiu um nível
insuportável. Eis porque a crise do Euro, que estava latente no
começo dos anos 2000, e que se tornou visível a partir do Inverno
de 2009-2010, migrou dos países da periferia, como Portugal, a
Grécia ou a Espanha, para países do centro histórico da
zona, ou seja, a Itália e a França. Um documento do FMI datado
deste Verão mostra isso
[8]
. De facto, o euro acabou por recriar a
mesma
situação que se tinha na Europa em 1930-1932 com o "Bloco
Ouro", uma situação cujos efeitos desastrosos no contexto da
crise induzida pelo crash de 1929 são bem conhecidos. Os diferentes
países europeus tiveram de abandonar, uns a seguir aos outros, o
"Bloco Ouro" e aqueles que o fizeram primeiro foram aqueles que se
saíram melhor. Passar-se-á o mesmo com o euro. Aqueles que
abandonarem o navio primeiro serão os mais beneficiados.
02/Dezembro/2016
(continua)
Notas
[1]
www.lefigaro.fr/vox/...
[2]
/www.lefigaro.fr/vox/...
[3] Stiglitz J.E.
L'Euro : comment la monnaie unique menace l'avenir de l'Europe,
Paris, Les Liens qui Libèrent, 2016.
[4] Ver Coll.,
L'Euro est-il mort?,
Paris, Editions du Rocher, 2016.
[5] Ver J.& Bibow, «Global Imbalances,
Bretton Woods II and Euroland's Role in All This»,
in
J. Bibow et A. Terzi (dir.),
Euroland and the World Economy: Global Player or Global Drag?
, New York (N. Y.), Palgrave Macmillan, 2007.
[6] Berger H et Nitsch V.,
The Euro's effect on trade imbalance
, IMF Working Paper, WP 10/226, IMF, octobre, Washington DC, 2010.
[7] Sapir J
L'Euro contre la France, l'Euro contre l'Europe,
Paris, éditions du Cerf, 2016.
[8] IMF, 2016 EXTERNAL SECTOR REPORT, International Monetary Fund, juillet
2016, Washington DC, téléchargeable à:
www.imf.org/external/pp/ppindex.aspx
O original encontra-se em
russeurope.hypotheses.org/5484
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
.
|