O referendo italiano, o Euro e a soberania... (1)

por Jacques Sapir

'A italiana', Van Gogh, 1887.
Alexis Feertchak apresentou-me várias perguntas cujas respostas foram publicadas em FigaroVox [1] . Considerando a vastidão das perguntas, que vão do referendo italiano às consequências de uma eventual saída do euro e que exigem respostas aprofundadas, o texto publicado foi cortado por ser demasiado longo. Publico aqui as minhas respostas na íntegra.

(1) Este domingo haverá na Itália o referendo sobre a reforma constitucional pretendida pelo presidente do Conselho de Ministros italiano Matteo Renzi. Quais são as apostas europeias deste referendo?

As apostas deste referendo são em simultâneo locais e europeias. É a combinação destes dois aspectos que inquieta actualmente os mercados financeiros e explica porque os dirigentes europeus encaram este escrutínio (e em menor medida a eleição presidencial austríaca) com a maior atenção [2] . E, num certo sentido, eles não estão errados. Uma vitória do "Não" abriria um período de incertezas para a zona euro assim como para a União Europeia. Mas mesmo que o "Sim" triunfasse, a situação não seria resolvida de todo.

Efectivamente, a Itália atravessa desde há numerosos anos uma crise grave. Esta crise não toma a forma aguda da crise grega, ela é mais surda mas não menos profunda. Constata-se que a introdução da moeda única matou a economia italiana. Isso se vê quando se olha o crescimento e sobretudo o crescimento por habitante. Hoje a Itália está ao nível que havia atingido em 2000. Dito de outra forma, estes dezasseis últimos anos não viram qualquer crescimento. O fraco crescimento registado de 2000 a 2007 foi inteiramente destruído nos anos seguintes. A constatação é ainda pior se se examinar o crescimento por habitante. Em PIB per capita o rendimento da Itália está hoje no nível de 1997.

Aqui não se trata de uma crise brutal como na Grécia. A produtividade do trabalho, cujo crescimento era comparável ao da França e da Alemanha de 1971 a 1999, estagnou desde 2000. O afastamento alargou-se maciçamente em relação aos seus vizinhos imediatos. Se se adoptar 1999 como índice 100, o ano de 2015 está em 117 na Alemanha e na França, mas apenas em 104,5 na Itália. A razão desta situação é, como no caso da França, o afastamento que se criou entre a taxa de câmbio virtual do Deutsch Mark, que se pode calcular pela evolução da produtividade e da inflação na Alemanha, e a taxa de câmbio virtual da Lira. Um estudo do Fundo Monetário Internacional mostra que o Marco está virtualmente sub-avaliado em 15% (à taxa de câmbio do Euro) quando a Lira está super-avaliado em 10%. Este afastamento de 25% é a causa de muitas das infelicidades da economia italiana, assim como para a França onde o afastamento atinge 21%.

Esta crise tem portanto consequências internas mas também europeia. Na própria Itália há doravante o sentimento de que esta situação não pode durar mais. A personalidade de Matteo Renzi é a partir de agora muito contestada. As diferentes reformas, quer sejam elas executadas pelo governo de Mario Monti ou aquelas aplicadas pelo actual primeiro-ministro, Matteo Renzi, atingiram durante a população mas não puderam relançar a máquina económica. Elas traduziram-se mesmo por um agravamento da crise experimentada pela economia italiana.

A ascensão das dívidas podres no balanço dos bancos italianos, quer seja o Unicredit ou o Monte di Paschi de Siena, que é a causa principal dos problemas que experimentam, vem daí. Os bancos emprestaram a empresários e famílias que, devido à crise, não podem reembolsar estas dívidas. Esta crise é agravada pelo facto de que os principais accionistas destes bancos são pessoas privadas e não "investidores institucionais" como acontece em França. Uma crise aberta destes bancos, sua falência, arruinaria centenas de milhares de italianos. A gestão desta crise bancária mostrou uma classe política italiana que mal mudou desde os anos 1990. A família de Matteo Renzi foi implicada directamente em vários escândalos.

Esta é uma das razões que levaram Matteo Renzi a submeter um projecto de reforma constitucional a referendo. Se o projecto for aceite, ele terá as mãos livres para proceder a uma reforma bancária e poderá redesenhar um sistema político à sua medida. Se ele fracassar, a reforma bancária não se verificará, pelo menos como ele deseja, e não terá outra escolha senão suplicar à Alemanha que proceda a uma política de relançamento maciço se quiser salvar a economia italiana. Como há probabilidades muito pequenas de ser ouvido em Berlim, ele poderia não ser outra escolha para a Itália senão uma saída catastrófica do euro. Esta saída não seria feita pelo próprio Renzi. Pensa-se que em caso de êxito do "Não" no referendo, seu governo cairia muito rapidamente e isso abriria caminho para novas eleições onde partidos eurocépticos, como o Movimento 5 Estrelas de Beppe Grillo, a Liga (ex "Liga do Norte") de Salvini, mesmo o Forza Italia, o partido de Berlusconi, poderiam ter a maioria.

Vê-se como a situação italiana poderia, os próximos dias e semanas, ter consequências consideráveis sobre a situação da zona euro e da União Europeia. Se tivermos um êxito do "Não", os investidores se afastarão da Itália, mas também – e o fenómeno do contágio vai actuar muito rapidamente – da França e da Espanha. As taxas subirão outra vez, apesar da acção do Banco Central Europeu. Experimentaremos um novo episódio da crise do euro, mas numa situação política onde a União Europeia, já enfraquecida pelo "Brexit" e pela eleição de Donald Trump, provavelmente não terá mais meios de reagir.

(2) Mais genericamente, o cenário de um Italexit é crível?

É preciso distinguir a saída do euro de uma eventual saída da União Europeia. A Itália tem uma necessidade vital de recuperar sua soberania monetária. Isto para a sua economia, tal como em menor medida para a economia francesa, uma questão de vida ou morte. Mas uma saída do euro, que hoje é encarada seriamente nos meios industriais italianos, e sabe-se que a confederação patronal italiana, a Cofindustria, é sorrateiramente favorável, não implica uma saída automática da UE. O maior pragmatismo reinará então. Pode-se sempre pretender que não se pode sair do euro sem sair da UE. Mas, na realidade, isso não é verdade. Os países da UE têm interesse em que a Itália fique e perceber-se-á nesta ocasião que os tratados são, em período de crise, aquilo que Bismarck dizia: pedaços de papel. Se a Itália tiver de sair do euro, é evidente que se encontrarão diversas acomodações que não se conduzirá pela letra formal dos textos.

Entretanto, está claro que esta saída da Itália do euro, se se concretizasse, enfraqueceria consideravelmente a União Europeia. Esta então não teria praticamente a opção de se reformar de maneira fundamental, convocando todos os países membros a um novo tratado fundador, ou de explodir. Ora, os dirigentes da União Europeia são fundamentalmente conservadores, pessoas que são incapazes de imaginar um outro mundo senão aquele das vantagens e da prebendas com que se beneficiam.

(3) A zona euro poderia resistir ao choque da saída da terceira economia, que é a Itália, da União Económica e Monetária?

Economicamente, a resposta é claramente não. A Itália não é a Grécia. Ela pesa consideravelmente mais na zona euro. A Itália é o terceiro país da zona euro, tanto pela importância do seu PIB como pela sua população, após a Alemanha e a França. Mas o problema aqui não é puramente económico.

Admitamos que a Itália esteja na obrigação de abandonar o euro no próximo Verão, ou no Outono, o que é uma possibilidade que é preciso tomar a sério em caso de vitória do "não". Pode-se duvidar então que os dirigentes políticos dos outros países da zona euro tirem imediatamente as consequências e decidam dissolvê-la. Esta seria, entretanto, a escolha razoável. Para os dirigentes alemães, não há claramente interesse. Uma dissolução da zona euro implicaria uma forte apreciação do Marco (sem dúvida de 20%, mesmo mais) que faria desaparecer o imenso excedente comercial de que desfruta a Alemanha. É preciso compreender que o euro foi, desde a sua criação, uma máquina para sub-avaliar a moeda alemã, tanto em relação ao "resto do mundo", ou seja, os países fora da zona euro, como no seio da zona euro. Os dirigentes franceses, pelo seu lado, opor-se-iam a esta dissolução pois estão ideologicamente persuadidos de que um retorno às moedas nacionais é uma catástrofe – e também porque a partir de agora estão politicamente dependentes da Alemanha, pelo menos quanto aos dirigentes saídos do PS e dos "Republicanos". Esta combinação de ideologia, que as múltiplas intervenções de François Hollande testemunham, e de dependência política pode pesar fortemente na sua reacção face a uma vontade de saída expressa pela Itália. O risco portanto é que a França seja um factor de bloqueio político, simétrico à Alemanha que será pelo seu lado um factor de bloqueio económico, e isso por interesse.

Mas esta posição não poderia ser mantida por um tempo demasiado longo. Certamente não mais de 18 meses. Com efeito, com uma Itália a deixar o Euro, e a depreciar sua moeda em pelo menos 25% (se não houver apreciação da moeda alemã), o choque concorrencial sobre a França será considerável e suas consequências catastróficas. Se este choque for combinado com os efeitos recessivos da política de François Fillon, poder-se-ia ter em França uma baixa do crescimento de -1,5% a -2,5% e uma alta do desemprego só no ano de 2018 de pelo menos 500 a 700 mil novos desempregados, podendo atingir e mesmo ultrapassar o milhão (com os desempregados "induzidos" pelos desempregados "directos"). As empresas francesas então farão pressão sobre o governo quer para obter novas ajudas quer para que saia do euro.

Estou convencido de que o governo francês será constrangido, a prazo, a encarar uma saída da França do Euro pois ele não tem mais margens de manobra para ajudas suplementares às empresas. Mas quanto mais ele demorar mais elevado será o custo em termos de desemprego e de quebra económica. A hipótese mais favorável seria, então, a eleição de um presidente favorável a uma saída do euro e sabe-se que três candidatos defendem aproximadamente esta posição, ou seja, Marine le Pen, Jean-Luc Mélenchon e Nicolas Dupont-Aignan. Se tivéssemos, no Verão de 2017, um presidente convencido de que é preciso sair do euro poderíamos exercer, em concertação com os italianos, uma pressão decisiva para conseguir que os alemães aceitassem uma dissolução ordenada da zona euro. Esta dissolução ordenada traduzir-se-ia por uma menor depreciação das moedas da França, da Itália, da Espanha e de Portugal, pois no mesmo tempo haveria uma depreciação do Marco alemão. O excedente comercial alemão desapareceria e alimentaria um crescimento forte nos outros países, o que permitiria ao mesmo tempo resolver a crise bancária italiana e relançar as economias dos diferentes países da Europa do Sul. Admitamos agora que o governo alemão não queira ouvir a razão. Estaríamos então, de qualquer forma, numa posição bem melhor, com um presidente convencido de que uma saída do euro é necessária, para nos entender com o governo italiano e deixar a zona euro, evitando assim o choque que provocaria uma saída apenas da Itália sobre a França se esta última persistissem em querer ficar na zona euro.

Uma consequência disto é portanto que o referendo italiano de 4 de Dezembro constitui na realidade o verdadeiro prelúdio da eleição presidencial francesa. É nessa altura que teremos um acontecimento decisivo e não na renúncia de François Hollande a recandidatar-se. Esta renúncia não muda nada na situação da França. Ela apenas representa a constatação da perda maciça de credibilidade do presidente e do campo de ruínas, tanto políticas como ideológicas, que ele deixa à "esquerda" parlamentar. Se o "não" vencer, isso também tornará imediatamente obsoleto o programa económico de François Fillon (assim como o de Emmanuel Macron e de quaisquer candidatos saídos do PS) antes mesmo de poder ser aplicado. A partir desse momento, ou François Fillon ganhará consciência e considerará que as novas circunstâncias clamam por uma mudança radical do seu programa económico que inclua uma saída do euro, ou dará de facto uma vantagem decisiva aos candidatos que defendem desde há muito a ideia de uma saída do euro e perderá a eleição presidencial.

(4) O sr. profetiza desde há muito o fim do euro e explica que a moeda única impede o retorno do crescimento na Europa. Como chegou a esta conclusão?

Esta conclusão é a de numerosos economistas. Insiro-me assim numa corrente em que se encontra o antigo governador do Banco da Inglaterra assim como Joseph Stiglitz [3] , prémio Nobel de economia, e de numerosos economistas quer em França [4] , nos Países Baixos, na Espanha, na Itália, na Polónia ou na Alemanha.

O euro desempenha um papel muito nefasto sobre o crescimento dos países da zona euro por duas razões. Por um lado, ele bloqueia a taxa de câmbio num nível artificial que não beneficia senão a Alemanha. Tenho dito que o euro é uma máquina para sub-avaliar maciçamente o valor da moeda alemã. Desde que esta última tenha pôs ordem nos seus assuntos, isto tornou-se absolutamente evidente. Economistas já o mostraram [5] . Além disso, o euro impõe aos outros países políticas depressivas, aquilo a que se chama políticas de austeridade, e impõe igualmente uma corrida à austeridade para os países que querem fazer parte do euro. Este é o sentido profundo do projecto económico defendido por François Fillon (e bem mais hipocritamente por seus adversário, quer seja Alain Juppé ou seus adversários potenciais como Emmanuel Macron e o candidato potencial do partido socialista). O impacto do euro sobre o comércio e a actividade na Europa foi muito negativo, que se trate da actividade intra-europeia ou dos intercâmbios entre a Europa e o resto do mundo [6] .

É preciso constatar que o euro foi vendido às populações europeias na base de contra-verdades e de mentiras, é claro que empacotadas numa aparência de raciocínio científico, mas de que era fácil mostrar os erros e os preconceitos ideológicos [7] . Estas mentiras conduziram-nos ao impasse em que estamos hoje. Vê-se bem que a Alemanha não pode conceder aos outros países da zona euro a ajuda que seria necessária para compensar a fixidez das taxas de câmbio, uma ajuda que é avaliada conforme os autores entre 8% e 12% do PIB anual da Alemanha. Vê-se bem, também, que não há harmonização social e fiscal entre os países da zona euro.

Hoje, estamos numa situação em que o afastamento das taxas de câmbio virtuais entre os países atingiu um nível insuportável. Eis porque a crise do Euro, que estava latente no começo dos anos 2000, e que se tornou visível a partir do Inverno de 2009-2010, migrou dos países da periferia, como Portugal, a Grécia ou a Espanha, para países do centro histórico da zona, ou seja, a Itália e a França. Um documento do FMI datado deste Verão mostra isso [8] . De facto, o euro acabou por recriar a mesma situação que se tinha na Europa em 1930-1932 com o "Bloco Ouro", uma situação cujos efeitos desastrosos no contexto da crise induzida pelo crash de 1929 são bem conhecidos. Os diferentes países europeus tiveram de abandonar, uns a seguir aos outros, o "Bloco Ouro" e aqueles que o fizeram primeiro foram aqueles que se saíram melhor. Passar-se-á o mesmo com o euro. Aqueles que abandonarem o navio primeiro serão os mais beneficiados.

02/Dezembro/2016
(continua)

Notas
[1] www.lefigaro.fr/vox/...
[2] /www.lefigaro.fr/vox/...
[3] Stiglitz J.E. L'Euro : comment la monnaie unique menace l'avenir de l'Europe, Paris, Les Liens qui Libèrent, 2016.
[4] Ver Coll., L'Euro est-il mort?, Paris, Editions du Rocher, 2016.
[5] Ver J.& Bibow, «Global Imbalances, Bretton Woods II and Euroland's Role in All This», in J. Bibow et A. Terzi (dir.), Euroland and the World Economy: Global Player or Global Drag? , New York (N. Y.), Palgrave Macmillan, 2007.
[6] Berger H et Nitsch V., The Euro's effect on trade imbalance , IMF Working Paper, WP 10/226, IMF, octobre, Washington DC, 2010.
[7] Sapir J L'Euro contre la France, l'Euro contre l'Europe, Paris, éditions du Cerf, 2016.
[8] IMF, 2016 EXTERNAL SECTOR REPORT, International Monetary Fund, juillet 2016, Washington DC, téléchargeable à: www.imf.org/external/pp/ppindex.aspx


O original encontra-se em russeurope.hypotheses.org/5484

Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .
05/Dez/16