Genocídio científico e cultural no Iraque

por José Steinsleger

Manifestação de professores em Bagdad, 14/Maio/2006. No mar de textos e documentos que circulam no ciberespaço, chegou às minhas praias um da Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP) que começa assim:

"A Mossad (agência de inteligência israelense), com a participação dos ocupantes estadunidenses no Iraque, conseguiu até agora assassinar 350 cientistas nucleares iraquianos e mais de 200 professores universitários dos diferentes campos científicos, segundo um relatório do Departamento de Estado dos EUA".

A densidade atroz da denúncia e a impossibilidade de conferir a fonte levaram-me a guardar o documento, tratando com pinças as afirmações de um grupo político com interesse directo nos assuntos que comenta. Mas em Fevereiro último, um relatório semelhante, de fonte mais crível, assegura: "O Pentágono gastou 3 mil milhões de dólares na criação dos 'esquadrões da morte' que poderiam estar por trás dos assassinatos de docentes..."

Em folha actualizada até 14 de Março último, o Comité de Solidariedade com o Iraque do Tribunal de Bruxelas precisa as circunstâncias nas quais foram torturados e assassinados 141 professores de várias instituições e centros de ensino superior: Universidade de Bagdad, al-Mustansiriya, Tecnológica e al Bahrein, todas da capital iraquiana: Hilla (Babilónia), Mosul (Nínive), Diwaniya (Quadisiya), Instituto Técnico, e de Basora (Basora), Saladino (Tikrit), Baquba (Diyala), Ramada (Al-Anbar), Kufa (Nayaf), Mosul (Mosul), entre outras instituições académicas.

Acerca da situação naquele que foi o mais intelectualmente avançado país do islão, o redactor do relatório, Dick Adriansens, diz: "O pessoal universitário iraquiano está desesperado". A lista inclui nomes, apelidos e direcções de reitores, decanos, biólogos, sociólogos, médicos, historiadores, filólogos, físicos, engenheiros, pediatras, linguistas, geógrafos, economistas, educadores e cientistas nucleares que, lamentavelmente, já no poderão colaborar com o novo "governo democrático do Iraque".

Por sua vez, o Sindicato dos Jornalistas do Iraque apresenta uma relação, actualizada a 4 de Maio último, de 109 afiliados assassinados em diversas situações. Ambos os relatórios corroboram o apresentado pelo colombiano Fernando Báez , que em Maio de 2003 visitou o Iraque com uma comissão da UNESCO.

Báez é biblioclastiólogo (de biblioclastia), nome que os gregos davam à destruição de livros. Só a Biblioteca Nacional de Bagdad (três pisos uniformes de 10.240 metros quadrados construídos em 1977) perdeu com os bombardeios mais de um milhão de volumes, dezenas de milhões de documentos impressos, a quase totalidade dos arquivos microfilmados e do Arquivo Nacional do Iraque.

O perigo pergunta-se: por que as tropas de ocupação fizeram vista grossa com os saqueadores das grandes bibliotecas do país? Quem organizou os grupos de civis com apoio externo que em meio ao caos, ao humo e às chamas entraram nos recintos climatizados que guardavam os manuscritos mais importantes, pergaminhos, peças e placas de argila 2 mil anos mais antigas que o reino de David?

O antigo director da Biblioteca de Bagdad lamentou com nostalgia: "Não recordo semelhante barbaridade desde os tempos dos mongois" (1258, invasão de Bagdad, quando as tropas de Hulagu, descendente de Gengis Kan, destruíram todos os seus livros lançando-os no rio Tigre).

O líder xiita Al Sajid Abdul-Muncim al-Mussawi ordenou aos seus fieis resgatar dos bárbaros quase 300 mil livros, que foram transportados em camiões até a mesquita de Haq, "... onde se amontoaram em fileiras intermináveis que em alguns casos chegavam até ao tecto".

"Concluída a desastrosa pilhagem – acrescenta Báez – não havia literalmente nada que fazer. O secretário da Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, a modo de desculpa perante estes factos, comentou: 'as pessoa livre é livre para cometer desmandos e isso não se pode impedir'."

Entre aqueles que livremente cometem "desmandos" não há apenas militares e saqueadores. Os criminosos de guerra também contam com o apoio implícito de intelectuais "livres" como Salman Rushdie, Oriana Fallacci, Martin Amis, Bernard-Henry Lévy, Michel Houellebecq, Giovanni Sartori e outros que, com a única finalidade de vender mais livros, ignoram a consciência que a primeira destruição de livros do século XXI ocorreu na nação onde teve lugar a invenção do livro em 3200 antes de Cristo.

O original encontra-se em http://www.jornada.unam.mx/2006/05/24/028a2pol.php

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

26/Mai/06