A propósito do Congresso "Actuel Marx" em Paris
O autismo do marxismo europeu
por Luciano Vasapollo (entrevista)
[*]
O Congresso "Marx Internacional IV", organizado pela
Actuel Marx
, decorreu entre 29 de Setembro e 2 de Outubro último. Nas
páginas
desta prestigiosa revista apresentou-se nestes últimos anos o debate e
as contribuições marxistas europeias. O facto meritório
de não haver dado o braço a torcer durante a caça
às bruxas desencadeada nos anos noventa não impediu que a
reflexão marxista europeia tornasse a cair naquele defeito perfeitamente
identificado, já há mais de 30 anos, por Perry Anderson em
"O debate no marxismo ocidental". Anderson criticava os marxistas
europeus por haverem abandonado a sua relação com o conflito de
classes e os movimentos reais e haverem-se refugiado nos aspectos
superestruturais e académicos. A definição de
Katedhersocialisten
não é um anátema e sim algo mais que uma crítica.
Nesta entrevista, Luciano Vasapollo, estudioso marxistas italiano, autor de
numerosos trabalhos traduzidos em várias línguas, tem
contribuído para reabrir nestes últimos anos um debate sobre
questões decisivas como a teoria marxista do valor, o imperialismo ou a
centralidade do conflito entre capital e trabalho. Vasapollo participou no
congresso de Paris com a apresentação de
comunicações em várias secções e numa das
sessões plenárias finais. Em mais de uma ocasião
enfrentou as demais escolas do marxismo ocidental. Nesta entrevista explica
como foram as discussões.
Qual era o programa de debates do Congresso marxista de Paris? Houve uma
confrontação entre as diversas tendências?
LV: O tema do encontro era "Guerra imperial, guerra social" e houve
doze sessões científicas, dentre as quais economia, direito,
ecologia, género, história, filosofia e socialismo. O
enfrentamento deve lugar em grupos fechados entre as diversas tendências
e provocou um debate mais de carácter académico.
Mas quais são, em traços largos, as tendências marxistas
actuais?
LV: Poderemos definir uma primeira como académica, no sentido estrito
da palavra: não se coloca o problema da dialéctica com os
movimentos reais e sim o de uma hipotética 'originalidade cultural'.
Depois há outras duas tendências que se exprimem numa linguagem
mais radical, refiro-me aos que compartilham as reflexões de Toni Negri
e aos estudiosos mais próximos à IV Internacional. Utilizam uma
linguagem radical mas, em muitos aspectos, coincidem com a primeira quanto
à distância a que se encontram dos movimentos sociais reais.
Finalmente, existe uma quarta, na qual me incluo, que poderemos definir como de
'estudiosos militantes' que têm uma relação mais estreita
com os movimentos sociais, sindicais, etc e que se consolidou sobretudo na
América Latina.
Após os anos do silêncio e da resistência cultura -- os anos
noventa -- em que situação se encontra, na sua opinião, o
debate e a reflexão marxista na Europa?
LV: Com a experiência de vários encontros internacionais devo
admitir que a nossa posição, que após aqueles anos
encontrava-se marginalizada a nível político e cultural,
actualmente está a encontrar maiores oportunidades para o debate.
Nestes anos reabriu-se um debate amplo e também duro sobre a actualidade
da teoria do valor de Marx. A princípio o debate surgiu no âmbito
marxista em que se desenvolveram trabalhos que poderemos chamar de
'sraffianos'. Eles afirmavam desejar manter uma visão marxista mas, de
facto, haviam-no esvaziado de conteúdo mediante argumentos de escassa
relevância no plano científico. Em alguns casos estas
posições chegaram ao keynesianismo, ainda que com uma linguagem
mais radical. Os próprios keynesianos estão divididos entre
keynesianos 'de esquerda' e 'neokeynesianos', como posições
diversas. Também há outros que se aproximaram do que chamamos
pós-marxismo e que são claros partidários do abandono do
marxismo, exceptuando alguns textos anteriores a
O Capital,
como o
Grundrisse.
Há dois anos organizámos um congresso internacional da
Universidade de Roma onde, em colaboração com Carchedi, Freeman,
Kliman e Giusani, apresentámos uma reflexão colectiva que
reafirmava a validade da colocação científica marxiana
sobre o valor, enfatizando que a transformação dos valores em
preços era um falso problema. Durante três dias debatemos intensa
e duramente entre as diversas tendências, incluídas algumas
diferentes da nossa (Mogiovi, Foley, Screpanti e outros). Mas o verdadeiro
centro da divergência, na minha opinião, continua a ser a
dialéctica entre a reflexão teórica e o movimento real.
Houve ausências significativas neste congresso marxista de Paris?
LV: Por paradoxal que possa parecer, houve uma menor presença das
áreas que estão mais implicadas no conflito de classe e nos
agitados processos de mudança como na América Latina,
Ásia, Europa do Leste ou, por exemplo, na Alemanha.
Escassíssimos os estudiosos gregos. Há, claramente, um risco de
eurocentrismo.
Como explica que o nexo entre teoria e prática, entre a reflexão
marxista e a realidade do conflito de classes, se tenha 'amortecido' assim na
Europa?
LV: Há que levar em conta que os grandes partidos comunistas
desapareceram na Espanha, Itália e França. Neste, o PCF
está a voltar-se antes para a socialdemocracia apesar de haver
resistências internas. Na Espanha, a experiência da Izquierda
Unida está em crise e na Itália temos dois partidos comunistas
empatados com um quarto do peso político e eleitoral do velho PCI. Mas
na Itália, a inflexão de Bertinotti, que alguns definem como uma
nova Bolognina, podemos dizer que foi provocada e que se inscreve precisamente
neste enfraquecimento do carácter revolucionários da
reflexão marxista na Europa. Não só é o problema
do eclectismo como também, por exemplo, da renúncia a questionar
os direitos de propriedade ou a eliminação da categoria
imperialismo. Estão aplainando o caminho para o keynesianismo,
inclusive o radical, como quadro teórico da acção
política dos partidos que ainda se chamam comunistas.
Perry Anderson afirmava, já há muitos anos, que o marxismo
ocidental havia perdido, de certo modo, a sua carga revolucionária ao
passo que no Terceiro Mundo esta aumentava. O que há de certo nesta
afirmação?
LV: A tese de Perry Anderson mantem a sua actualidade trinta anos depois. O
problema não é o Terceiro Mundo e sim a relação
entre objectividade e subjectividade que se manifesta concretamente nas
situações em que o conflito de classes é mais agudo.
Tão pouco é um problema de linguagem.
Também se recorre à linguagem e a categorias radicais entre os
marxistas europeus mas, frequentemente, põem no mesmo plano terrorismo e
resistência. Isso é a demonização da
violência independentemente dos contextos no quais surge o conflito,
aceitam os anátemas e as chaves de leitura imperialistas sobre os
'Estados canalhas'. Tentam constantemente condenar o século XX à
fogueira, mas recorre-se sempre às categorias do século XX para
definir a realidade ou criticar as diversas posições. Na Europa
deu-se o comunismo como fenómeno do século XX e, no melhor dos
casos, permanece como horizonte longínquo da Humanidade. É uma
posição determinista que espera a queda do capitalismo devido
às suas contradições implícitas, omitindo o dado
decisivo da subjectividade que se move nessa direcção. Por isso,
à espera de que isto aconteça, retiram-se por trás de um
programa substancialmente reformista apesar da linguagem algo mais radical. Em
outras palavras do mundo a luta pela transformação social
coloca-se como alternativa de sobrevivência para uma parte significativa
da Humanidade, na América Latina por exemplo.
Consta que tu e outros estudiosos marxistas presentes no congresso tiveram de
brigar muito para debater e fazer debater questões como o exemplo de
Cuba e dos movimentos na América Latina. Como foi isso?
LV: É uma consequência directa do que dissemos antes. Quando se
torna necessário transferir os problemas da dimensão
teórica para a prática, muitos marxistas europeus ficam
histéricos. Isto se explica porque não compreendem a
importância da Venezuela de Chavez, da resistência de Cuba ao
projecto hegemónico estadunidense na América Latina, contrapondo
a experiência de Lula às outras experiências importantes
naquela área do mundo, ou acusando os movimentos sociais
latino-americanos de não compreenderem o processo democrático.
Os dois debates que organizámos sobre Cuba e a América Latina
tiveram como protagonistas alguns estudiosos 'militantes', como Remy Herrera ou
Al Campbell, mas sobretudo latino-americanos como Paulo Nakatami, Leda Paulani,
Flavio Bezerra de Farias, Isabel Monal, Elena Alvarez e outros, os quais
tiveram uma função decisiva de orientação da
discussão sobre os problemas conexos ao conflito de classes e à
resistência global.
Na sessão plenária, em que participaste junto com George Labica,
Samir Amin e Isabel Monal, tu e Samir Amin discutiram acerca do papel da
Europa. Quais foram os pontos de divergência?
LV: Para começar quero dizer que na minha opinião Samir Amin
é um estudioso marxista honesto e que o tenho em grande estima. A
discussão foi sobre as diferentes análises que fazemos sobre o
imperialismo europeu e o estadunidense. Numerosos estudiosos e camaradas
consideram a Europa como uma espécie de aliado táctico frente ao
inimigo principal representado pelos Estados Unidos. Esta
posição tem uma legitimidade própria mas leva a subestimar
o processo de constituição do polo imperialista europeu. Muitos
pensam que a Europa do século XXI é a mesma do século
passado, quando existia o enfrentamento EUA-URSS. Creio poder afirmar que
não é assim e que esse processo que esteve sujeito aos Estados
Unidos durante mais de meio século já não está e
não o estará nem no plano político nem no militar, dois
aspectos em que o polo imperialista europeu foram débil. É um
debate autêntico que exige um aprofundamento rigoroso. Nossa Rede
contribuiu com diversos trabalhos como 'A doce máscara da Europa', 'O
plano inclinado do capital', ou 'Eurobang'. É material para alimentar
esta discussão, e é de agradecer que estudiosos como Samir Amin,
que não compartilham necessariamente os nossos pontos de vista, se
debrucem a debater acerca disto.
A tese da competição global que propuseste, tu e outros
marxistas, reformula, actualizando-a, uma análise do imperialismo e da
competição inter-imperialista que foi distorcida ou negada no
debate marxista contemporâneo. Em que se diferencia a vossa tese de, por
exemplo a do 'Império' ou a da globalização neoliberal.
LV: Dedicámos um livro para a resposta a essas questões, com
James Petras, Mauro Casadio e eu próprio, e está a ser
lançado outro intitulado "Competição global", no
qual há uma colaboração de Henry Veltmeyer.
O 'Império' supõe, entre outras coisas, que no mundo
contemporâneo o conflito surge entre um capital colectivo e as
multidões, que os estados nação perderam sua
função estratégia e que a Europa é o 'topo' (lugar)
democrático para a transformação social. Nós, pelo
contrário, pensamos que a centralidade do conflito situa-se hoje, mais
do que nunca, entre o capital e o trabalho, e que sectores sociais bem
definidos desejam recompor seus interesses dentro de um projecto de
mudança radical das relações sociais e das de propriedade.
A tese da competição global afirma que o
Estado-nação não foi superado e sim subsumido no interior
dos pólos imperialistas supranacionais que exercem suas
funções e, sobretudo, que já não nos encontramos
perante a presença de um capital colectivo, como pode ter sido na
época da globalização e sim de pólos imperialistas
que competem entre si. Para combater os mecanismos regressivos desta renovada
competição inter-imperialista são decisivos os movimentos
de resistência popular. À competição mundial
capitalista é necessário opor hoje uma resistência global
que se desenvolveu sobretudo na América Latina e na Ásia,
resistência que pode influir na prática concreta, não tanto
sobre o terceiromundismo romântico como sobre a luta política
daqui, na Europa. Devemos salvaguardar a independência destes movimentos
de resistência sabendo congregar suas peculiaridades e os elementos de
recomposição mais avançados no terreno anti-imperialismo e
da superação do capitalismo.
[*]
Professor na Universidade La Sapienza, Roma.
O original encontra-se em
http://www.nodo50.org/cgi-bin/mailman/listinfo/diariodeurgencia
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
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