O regresso do
ancien régime
por Thomas Patrick Wilkinson
[*]
A imprensa alemã está saturada de notícias destinadas a
reafirmar o mito dos países desmazelados, preguiçosos e corruptos
do sul da Europa que os países virtuosos e trabalhadores do norte da
aceitaram, e mal, na União Europeia. Não se dá
qualquer importância ao papel das empresas mais perversas do planeta,
visto que as inócuas investigações de fraude nos EUA
contra a "mãe de todos os mafiosos" (ao lado da JP Morgan)
nunca são referidas em relação aos seus
"serviços" de consultadoria e comerciais na Grécia ou
em qualquer outra parte da Europa. No entanto, há inúmeros fios
na teia de confusão que está a ser tecida no dilema grego. Os
criminosos andam à solta e o seu negócio prossegue.
Recordemos alguns factos significativos sem os quais a situação
grega não pode ser devidamente entendida. Quando acabou a II Guerra
Mundial, a Grã-Bretanha e os EUA intervieram com uma "ajuda"
militar aberta e encoberta para suprimir a resistência anti-fascista na
Grécia, composta principalmente mas não só por comunistas
gregos. Foi a conhecida Doutrina Truman, análoga à Doutrina
Monroe. Na verdade, o que se passou foi que os EUA reclamaram o direito de
substituir as instituições civis democráticas por
ditaduras militares na Europa para proteger os seus interesses empresariais
entretanto definidos.
Há uma tendência para esquecer que a Alemanha foi ocupada e
sujeita a um governo militar até ao final do século XX, embora
indirectamente através do regime cliente de Bona. Foi a União
Soviética, e não os EUA, que derrotou Hitler. De certa forma o
regime de Mussolini capitulou a favor da reposição de um governo
anti-comunista apoiado pela Máfia e pelos serviços secretos
americanos (provavelmente isso hoje não é tão
surpreendente, agora que sabemos que Mussolini foi financiado pelos
serviços secretos britânicos antes de conquistar o poder). No
entanto, Franco e Salazar foram firmemente apoiados e apoiaram os interesses
empresariais dos EUA/Reino Unido. A democratização da
Grécia depois da guerra teria sido um contratempo grave para os
interesses dos EUA: para não falar de que o controlo da Grécia e
de Chipre eram essenciais para o controlo do Mediterrâneo oriental.
(Tão importante como o controlo sobre o Suez, Malaca, Ormuz, e uma
série de rotas de navegação em todo o mundo).
Como em todos os outros países em que as ditaduras apoiadas pelos EUA
foram usadas para suprimir a democracia e proteger os interesses corporativos,
a corrupção tornou-se endémica. Como poderia ser o
contrário? Os militares vivem das armas e do espólio da guerra.
São elementos de crime só por si. Além disso, não
há uma única ditadura apoiada pelos EUA que não pilhe o
tesouro nacional, quer directamente quer em cooperação com os
bancos americanos (privados ou de propriedade do governo).
Quando os gregos se fartaram por fim dessa pilhagem e abuso por um governo que
de civil só tinha o nome, os militares, com a conivência dos EUA,
voltaram a conquistar o poder directamente. A economia da Grécia nunca
foi democratizada. Pelo contrário, escorregou para as mãos
habituais, as das corporações americanas ou as dos que estavam
dependentes delas. Foi a despeito desta infiltração da economia
grega pelo capital estrangeiro que, quando os civis foram autorizados a assumir
o governo, foram feitas concessões sob a forma de segurança
social, contratos de trabalho e educação. Foi a força dos
movimentos populares, sociais-democratas genuínos, comunistas e das
classes médias liberais que levaram à introdução
destas exigências ao Estado.
Mas, tal como a introdução do seguro social feita por Bismarck no
final do século XIX, os beneficiários nomeadamente os
trabalhadores tiveram que pagar por esses benefícios sob a forma
de deduções nos salários. Na Alemanha Bismarck quis
amarrar as pessoas ao estado, que era controlado de forma segura por um
rei-imperador e pela aristocracia. Nos EUA, esses "benefícios"
são privados porque
oficialmente
os EUA são uma democracia e a política dos EUA é amarrar
as pessoas ao patronato empresarial e à escravatura por dívidas e
não
às instituições democráticas. Por isso, quando os
EUA impuseram o seu controlo sobre a Grécia, primeiro através da
Doutrina Truman e depois através do apoio encapotado da NATO aos
"coronéis", estavam determinados a controlar o estado e
através dele os recursos do país. A democratização
e a subsequente integração na União Europeia tornaram
subitamente todos esses benefícios da segurança social num
direito, como noutras democracias sociais pós-guerra, em vez de serem um
privilégio. Enquanto direito reconhecido pelo estado e reconhecido na
legislação, já não era possível voltar
atrás, depois de ter gasto tanto tempo a criar o controlo do estado por
uma oligarquia militar e a utilizar a segurança social para
reforçar esse controlo.
Pode discutir-se se foi "necessária" a Goldman Sachs para
efectuar operações "tipo Enron" nas contas nacionais
gregas a fim de passar o teste monetário fiscal para o Euro. O regime do
Euro foi instituído para favorecer este tipo de contabilidade porque se
baseava em abdicar do controlo democrático sobre a economia e a
política fiscal. Todos os membros do Euro tiveram banqueiros de
investimento privados a manipular as contas nacionais a fim de obedecer
às exigências formais para ser membro do Euro. O controlo do Euro,
tal como as actividades do Banco Internacional de Pagamentos (BIS), tem
estreitas relações com as conjuras comerciais privadas (em termos
da
Lei RICO
americana
[1]
) erroneamente chamadas de "bancos". Nenhum desses países
poderia obedecer a essas exigências democraticamente visto que elas eram
contrárias a qualquer processo democrático. A
preparação das contas nacionais de acordo com critérios
como os de endividamento nacional é em si mesma mistificadora.
Os governos nacionais contraem dívidas por duas razões: a) para
gerir o suprimento da divisa interna e das despesas ou b) para transferir
riqueza ganha (a partir da força de trabalho) para rentistas
(rentiers)
(neste caso os bancos em especial) criando e impondo algemas através dos
impostos. Neste último caso, o governo nacional, controlado por
banqueiros e seus proprietários, torna-se num instrumento derivativo
usado para controlar os fluxos de fundos subjacentes duma economia interna.
Claro que a razão principal para criar dívida, por ex., a
emissão de moeda, é totalmente legítima. O governo
proporciona e gere uma ferramenta para facilitar as trocas e as
transacções, que estão sujeitas a limites de âmbito,
geograficamente, e por aí fora. Mas a segunda razão é
essencialmente criminosa.
Em toda a Europa e, a bem dizer, em todo o mundo, foi intensificada a
cobrança de impostos para garantir os pagamentos de
obrigações subscritas pelos bancos como dispositivos para sugar
as receitas ganhas com a economia. Estas obrigações são na
verdade equivalentes à Privy Purse
[2]
, são pagamentos directos feudais a uma oligarquia de dirigentes
absolutos por direito divino. Têm precedência sobre todas as outras
obrigações externas ou internas. Estas obrigações
são normalmente isentas de impostos para induzir os
rentiers
a comprá-las dado o "risco" que comportam.
Na verdade, o "risco" é uma classificação
artificial acordada pelos agentes dos
rentiers
para fixar a taxa do fluxo de fundos extractivos. Podemos compará-lo ao
"desconto de esgotamento do petróleo" dos EUA que recompensa o
explorador do petróleo por acelerar o ritmo de lucro, reduzindo o
imposto na proporção da exaustão da concessão (pela
qual a companhia petrolífera raramente paga o que quer que seja). A
verdade é que eles não podem ser sujeitos a impostos porque isso
iria frustrar o seu objectivo supremo sangrar as economias até ao
tutano. O "
rating
de crédito soberano"
[3]
é um acordo negociado secretamente entre os parasitas que sugam a
receita nacional e os agentes do governo quanto à taxa de lucro dos
impostos permissíveis antes de os bancos e os seus directores atacarem a
economia nacional através do comércio adverso de divisas,
boicotes, etc.
Os governos que recusam submeter-se ao cartel dos
ratings
são postos na lista negra: isso significa que nem eles nem qualquer
negócio ou pessoas normais no país terão acesso ao
crédito ou então que esse acesso terá simplesmente um
custo insuportável. Quando os fluxos de dinheiro não são
suficientes tal como acontece com o esgotamento de um poço de
petróleo só pode continuar a haver lucros com a entrega de
todos os activos físicos na economia. Primeiro, são vendidos ou
hipotecados os activos do sector público, a seguir as pequenas e
médias empresas são forçadas a abrir falência quando
já não conseguem cumprir as suas obrigações em
impostos ou dívidas privadas. Na Alemanha há uma política
não oficial (ocasionalmente reconhecida por algumas pessoas nas
repartições fiscais) de recusar adiamentos aos contribuintes a
fim de os forçar a procurar financiamentos bancários (em
condições quase usurárias). Os bancos, por sua vez,
têm vindo a vender os seus empréstimos a
hedge funds
[4]
não regulamentados pela lei bancária que por sua
vez executam esses empréstimos a fim de se apoderarem de terras e outros
activos. A dívida nacional da Grécia é na realidade uma
complexa cadeia alimentar em que a força de trabalho e a terra
são hipotecados aos bancos e a corporações transnacionais
e os trabalhadores são espoliados dos seus salários,
pensões e casas. Não há hipótese de pagar uma
dívida destas. Não é por comer que uma pessoa infestada de
bichas-solitárias consegue eliminar os parasitas.
Quando os bancos privados que controlam os bancos centrais, directamente no
caso do Banco de Inglaterra, do Federal Reserve, do Banco de Pagamentos
Internacionais, do Banco Mundial, etc. ou indirectamente como o Bundesbank e,
em certa medida, o Banco da França, definiram as regras para o Euro e
criaram o Banco Central Europeu como uma cópia do Fed, baseado em metas
anti-inflacionárias e limites ao empréstimo e à
dívida do sector público, estavam a estabelecer critérios
totalmente rígidos e anti-democráticos para a política
fiscal e económica em todos os estados membros. Os bancos e "o
mercado" são elevados ao estatuto de deuses em que as suas
exigências não só são unilaterais e
não-recíprocas mas também estão imunizadas contra
quaisquer reclamações democráticas. Adquirem uma
"extraterritorialidade" em todos os sentidos da palavra.
Literalmente, isso significa que entidades legais instituídas
inicialmente por força da lei passam por intermédio do que
pode ser considerado como praticamente um direito divino para
além do âmbito da própria lei que lhes atribuiu os
alvarás e licenças para efectuarem os seus negócios.
A consequência lógica e óbvia do presente estado de coisas
é nada menos do que o absolutismo da monarquia dos Bourbons derrubada em
1789.
Mas esta conclusão óbvia do estado da União Europeia,
diante da crise grega, esconde a complexidade do problema que está
à nossa frente. Em 1789, o povo francês via um rei e os seus
funcionários na igreja e na nobreza tinha um foco territorial
para a sua oposição. Hoje falta-nos essa clareza. Não
porque a questão não seja clara, mas porque temos esta grande
dificuldade de olharmos para nós mesmos e para o nosso papel nisto tudo.
Vemos as bandeiras do pico montanhoso emblemático da mitologia
democrática, violadas pela rapina viciosa das corporações
transnacionais por detrás das bandeiras do poder dos EUA. Mas não
conseguimos ver o caminho que nos leve a unirmo-nos para reconquistarmos essa
montanha e correr com os que a profanaram com a sua ganância e
violência sociopática.
A tentação de focar as atenções nas dívidas
e atirar as culpas para o endividamento que os gregos apresentavam quando
aderiram à UE e à moeda única é uma grande
mistificação. O facto de a Alemanha e os EUA terem vendido
milhões de dólares/euros de armamento às forças
militares gregas ao mesmo tempo que exigiam o cancelamento de todas as
obrigações sociais para o seu povo é apenas mais uma prova
de como somos enganados. A Europa está encharcada de
corporações ajudadas por necrófagos como George Soros e de
criptobancos como a Goldman Sachs cuja única razão de existir
é roubar o mais possível e voltar a pôr-nos na
penúria, no endividamento e na escravatura que levaram os franceses a
revoltar-se e a decapitar os corpos dos parasitas que afirmavam
governá-los.
N.T.
[1] Lei RICO (Lei Racketeer Influenced and Corrupt Organizations) é uma
lei federal dos Estados Unidos que prevê sanções agravadas
para actos de associações criminosas, inicialmente destinada a
perseguir a Máfia.
[2] Privy Purse: Na Índia era um pagamento feito às
famílias reais dos principados antigos, acordado em 1947 como pagamento
pelo acordo da integração na Índia.
[3] Rating de crédito soberano: classificação do
crédito de uma entidade
soberana, ou seja, de um governo nacional. Indica o nível de risco do
investimento num país e é utilizado por investidores que procuram
investir no estrangeiro.
[4] Hedge fund: Fundo de investimento aberto a uma gama limitada de
investidores que se responsabiliza por uma gama mais larga de investimentos e
actividades comerciais.
[*]
Escreve e ensina política e literatura na terra natal de Henrich Heine,
Düsseldorf. É autor de
Church Clothes: Or, Land, Mission and the End of Apartheid in South Africa
. Actualmente trabalha no livro
1959: Unbecoming American.
O original encontra-se em
http://www.counterpunch.org/wilkinson05142010.html
. Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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