Sobre a libertação da Grécia
"A crença em que um carcereiro num campo de trabalhos
forçados vai sancionar um dos prisioneiros expulsando-o desse mesmo
campo é a estupidez acabada".
por João Vilela
A tentação para acharmos que o imperialismo é uma
força indestrutível que tudo pode contra nós enquanto
nós nada podemos contra ele constitui a base das teorias kruschevistas
sobre a coexistência pacífica e, no fundo, não passa de um
convite ao atentismo e à capitulação. Alguns tentam
transformar este atentismo numa postura política digna,
disfarçando-o (mal) de postura táctica. Já houve quem
dissesse que a coexistência pacífica era pasme-se!
um instrumento da luta de classes. Que belo destino teriam tido as
revoluções do Vietname, de Cuba, das colónias africanas,
se tal tese tivesse recebido o menor crédito.
As estruturas do imperialismo dão-lhe um enorme poder. É um
facto. Mas nenhuma delas é invencível, e a crença
mágica no Apocalipse que significa a libertação dos povos
relativamente a elas, em termos de sanções e isolamento, é
só mesmo isso uma crença mágica. Uma cobertura
pseudo-teórica para uma atitude, objectivamente, reformista. Pode haver
justificações da mais variada ordem para uma atitude reformista,
reconheça-se: mas o reformismo não passa a chamar-se outra coisa
por ser justificável com a conjuntura.
As estruturas do imperialismo mostraram-se cediças recentemente, com os
acontecimentos da Grécia. Perante um Governo ciente da impossibilidade
de cumprir seja que papel histórico for, ficou exposta uma falha nos
mecanismos da dominação europeia. A arquitectura da
dominação imperialista dos países da periferia pelo centro
alemão é fruto de uma aposta na conservação
ficcional de Estados soberanos por falta de condições para o
decreto unilateral de uma qualquer República Federal Europeia. Isto
criou uma brecha que agora se expôs, e que os trabalhadores gregos
têm sabido cavar e alargar num esforço dramático,
heróico, pela sua libertação. Esforço tanto mais
importante quanto é feito quase às escuras, sob
orientações contraditórias e erradas, com uma barragem
ideológica de fogo cerrado provinda tanto do imperialismo como do
reformismo da euro-esquerda.
O caso é simples e conta-se em poucas linhas: apostado em negociar com a
Alemanha, o Syriza apanhou pela frente a irredutibilidade alemã e
começou a fazer concessões sucessivamente, temendo sair do euro,
temendo sair da UE, temendo a fome, a miséria, o caos, os filhos que
matariam mães e os pais que almoçariam filhos se deixasse de
drapejar a obscena bandeira azul com estrelinhas sobre os céus de
Atenas. Perante as cedências acumuladas, a reacção dos
gregos não se fez esperar, desde logo dentro do Syriza:
históricos como Manolis Glezos pediram desculpas por apelar ao voto em
Tsipras; membros do Comité Central do Syriza, como Stathis Kouvelakis,
vieram referir que de há muito vinham sendo denunciadas as
ilusões europeístas da direcção de Tsipras;
enquanto isso, o movimento sindical de classe da Grécia, organizado na
central PAME (Frente Militante de Todos os Trabalhadores), desenvolveu uma
avassaladora ofensiva popular contra a capitulação do Syriza.
Contam por dezenas as manifestações, as greves, com especial
incidência no sector da saúde e da indústria; foram
desenvolvidas formas de luta cada vez mais avançadas, de que a
ocupação do Ministério das Finanças no passado dia
13 de Junho constituiu um exemplo importante. Ao mesmo tempo, é justo
referir aqui o papel desempenhado por outra estrutura anticapitalista grega, a
Conspiração das Células de Fogo, de raiz
anarco-sindicalista, que invadiu e ocupou a sede nacional do Syriza e cujos
activistas, em Abril, cercaram e procuraram agredir o ministro das
Finanças, Yannis Varoufakis, à saída de um restaurante em
Atenas.
Ante esta reacção popular abrupta e determinada, o Syriza
não pôde prosseguir a senda de concessões e cedências
com que iniciou o seu mandato. Teve de mudar de estratégia, e agir como
se estivesse a fazer músculo perante as instituições
europeias. A resposta destas foi uma ameaça de expulsão,
ameaça que a não ser na cabeça dos Franciscos
Louçãs deste mundo não cabe na cabeça de
ninguém: a crença em que um carcereiro num campo de
trabalhos
forçados vai sancionar um dos prisioneiros expulsando-o desse mesmo
campo é a estupidez acabada. A ameaça (que põe o Syriza em
guarda e provavelmente assusta uma parte dos trabalhadores gregos, apesar de
tudo intoxicados pela propaganda do "a UE ou o caos"), é
estúpida, como se vê, e exprime o limite material que a UE
encontrou para continuar a espoliar o povo grego dentro da actual
configuração do sistema. Mas nem por isso deixou de desencadear
uma série de protestos por toda a Europa exigindo solidariedade europeia
para com os gregos e... a refundação do projecto europeu,
depurado da austeridade, e posto ao serviço dos povos...
Se queremos ser solidários com os gregos, não podemos dizer-lhe
que fiquem no campo de prisioneiros connosco, assegurando-lhe que usaremos toda
a nossa influência junto dos carcereiros do sítio para obter
melhor tratamento para eles. Se conseguiram fazer uma pequena abertura na
parede da sua cela, aproveitando uma debilidade da estrutura, o incentivo a
dar-lhes é o de que continuem a alargar esse buraco, a cavar essa
brecha, a alargar o caminho por onde passarão rumo à liberdade
deste pesadelo prisional que a UE significa. Se não querem troika,
libertem-se. Se não querem tratado orçamental, libertem-se. Se
não querem austeridade, libertem-se. Aqueles que cá ficarem, por
teimosia ou dolo dos seus Governos, nunca se livrarão de tal coisa, e
é ridículo se se convencerem do contrário.
Isto coloca duas tarefas centrais aos trabalhadores gregos e às suas
organizações na luta por uma efectiva ruptura anti-imperialista:
a primeira é a compreensão de que esta debilidade estrutural da
arquitectura da UE não um erro insanável, mas apenas um
percalço da estrutura, facilmente resolúvel da forma como,
usualmente, quer os Estados quer as organizações internacionais
da burguesia geralmente resolvem estes assuntos ou com golpes de Estado
a favor de quem manda contra o Governo que hesita, ou com invasões
liminares e imposição da vontade do centro imperialista. A
segunda hipótese pode ser mais improvável, mas a primeira, por
mecanismos mais ou menos palacianos, tem campo aberto para ser aplicada. As
massas devem ter organização, capacidade de
mobilização de massas, de tomar as ruas, de enfrentar a
repressão mas o seu objectivo histórico não
é resistir. A missão histórica do proletariado é
tomar o poder e edificar o socialismo e o comunismo. O momento em que o
proletariado grego ou se lança no assalto dos céus ou é
cilindrado pelo aparelho repressivo está a aproximar-se a passos largos,
e é vital que as estruturas que o representam e lideram comecem desde
já acautelar essa situação.
Um outro ponto prende-se com o dia seguinte, o tal dia em que, a fazer
fé nas previsões de Merkel e Juncker, de Rui Machete e Nuno
Rogeiro, o trigo crescerá para dentro da terra nos campos gregos, as
árvores recusarão entregar os seus frutos, e as crianças
se negarão a sair dos ventres maternos com medo desse mundo estranho com
passaportes e sem quotas leiteiras. Até Tsipras já percebeu,
embora o faça apenas por jogos florentinos (a faixa do Syriza, que corre
mundo nos protestos de solidariedade promovidos pelos outros partidos-membros
do Partido da Esquerda Europeia, onde se lê
"Change Europe",
diz tudo o que cumpre saber sobre a convicção da
diligência), que a saída, após a UE, será um dos
BRICs, e naturalmente a Rússia. Um projecto socialista e
anti-imperialista pode manter relações, tácticas e
à falta de melhor aliado, com uma potência capitalista cujas
relações com outros Estados não se pautam propriamente por
um respeito escrupuloso pela reciprocidade e a não-ingerência.
Contanto saiba conservar a sua própria autonomia e soberania,
desenvolvendo-a progressivamente, e contrapondo-a sempre a quaisquer
pretensões hegemónicas que o novo aliado revele. Será
sempre um trajecto difícil, complexo, cheio de espinhos e novidades
difíceis de ponderar, o que a Grécia vai trilhar quando sair da
União Europeia. Nunca se disse que o caminho para a
libertação não tinha perigos, convivendo com grandes
possibilidades. Tudo o que se sabe sobre esse caminho é que tem um
horizonte vermelho. E isso, para os explorados e os oprimidos, chega.
22/Junho/2015
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